14/03/2019

Leitura espiritual



EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL

AMORIS LÆTITIA

DO SANTO PADRE FRANCISCO

AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS

ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA 

CAPÍTULO IV


O AMOR NO MATRIMÓNIO

Tudo o que foi dito não é suficiente para exprimir o Evangelho do matrimónio e da família, se não nos detivermos particularmente a falar do amor. Com efeito, não poderemos encorajar um caminho de fidelidade e doação recíproca, se não estimularmos o crescimento, a consolidação e o aprofundamento do amor conjugal e familiar. De facto, a graça do sacramento do matrimónio destina-se, antes de mais nada, «a aperfeiçoar o amor dos cônjuges».
Também aqui é verdade que, «ainda que eu tenha tão grande fé que transporte montanhas, se não tiver amor, nada sou. Ainda que eu distribua todos os meus bens e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor de nada me vale».[i] Mas a palavra «amor», uma das mais usadas, muitas vezes aparece desfigurada.

O nosso amor quotidiano.

No chamado hino à caridade escrito por São Paulo, vemos algumas características do amor verdadeiro:[ii] «O amor é paciente, o amor é prestável; não é invejoso, não é arrogante nem orgulhoso, nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita, nem guarda ressentimento, não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta»[iii].
Isto pratica-se e cultiva-se na vida que os esposos partilham dia-a-dia entre si e com os seus filhos. Por isso, vale a pena deter-se a esclarecer o significado das expressões deste texto, tendo em vista uma aplicação à existência concreta de cada família.

Paciência.

A primeira palavra usada é «macrothymei».
A sua tradução não é simplesmente «suporta tudo», porque esta ideia é expressa no final do versículo 7. O sentido encontra-se na tradução grega do texto do An­tigo Testamento onde se diz que Deus é «lento para a ira».[iv]
Uma pessoa mostra-se paciente, quando não se deixa levar pelos impulsos interiores e evita agredir. A paciência é uma qualidade do Deus da Aliança, que convida a imitá-Lo também na vida familiar. Os textos onde Paulo usa este termo devem ser lidos à luz do livro da Sabedoria[v]: ao mesmo tempo que se louva a moderação de Deus para dar tempo ao arrependimento, insiste-se no seu poder que se manifesta quando actua com misericórdia. A paciência de Deus é exercício da misericórdia de Deus para com o pecador e manifesta o verdadeiro poder.
Ter paciência não é deixar que nos maltratem permanentemente, nem tolerar agressões físicas, ou permitir que nos tratem como objectos. O problema surge quando exigimos que as relações sejam idílicas, ou que as pessoas sejam perfeitas, ou quando nos colocamos no centro esperando que se cumpra unicamente a nossa vontade. Então tudo nos impacienta, tudo nos leva a reagir com agressividade. Se não cultivarmos a paciência, sempre acharemos desculpas para responder com ira, acabando por nos tornarmos pessoas que não sabem conviver, anti-sociais incapazes de dominar os impulsos, e a família tornar-se-á um campo de batalha. Por isso, a Palavra de Deus exorta-nos: «Toda a espécie de azedume, raiva, ira, gritaria e injúria desapareça de vós, juntamente com toda a maldade.[vi]
Esta paciência reforça-se quando reconheço que o outro, assim como é, também tem direito a viver comigo nesta terra. Não importa se é um estorvo para mim, se altera os meus planos, se me molesta com o seu modo de ser ou com as suas ideias, se não é em tudo como eu esperava.
O amor possui sempre um sentido de profunda compaixão, que leva a aceitar o outro como parte deste mundo, mesmo quando age de modo diferente daquilo que eu desejaria.

Atitude de serviço.

Vem depois a palavra jrestéuetai – a única vez que aparece em toda a Bíblia –, que deriva de jrestós (pessoa boa, que mostra a sua bondade nas acções). Mas pelo lugar onde está, ou seja, em estrito paralelismo com o verbo anterior, é seu complemento. Deste modo Paulo pretende esclarecer que a «paciência», nomeada em primeiro lugar, não é uma postura totalmente passiva, mas há-de ser acompanhada por uma actividade, uma reacção dinâmica e criativa perante os outros. Indica que o amor beneficia e promove os outros. Por isso, traduz-se como «prestável».
No conjunto do texto, vê-se que Paulo quer insistir que o amor não é apenas um sentimento, mas deve ser entendido no sentido que o verbo «amar» tem em hebraico: «fazer o bem».
Como dizia Santo Inácio de Loyola, «o amor deve ser colocado mais nas obras do que nas palavras». Assim poderá mostrar toda a sua fecundidade, per­mitindo-nos experimentar a felicidade de dar, a nobreza e grandeza de doar-se superabundantemente, [vii] sem calcular nem reclamar pagamento, mas apenas pelo prazer de dar e servir.

Curando a inveja.

Em seguida rejeita-se, como contrária ao amor, uma atitude expressa como zeloi (ciúme ou inveja).
Significa que, no amor, não há lugar para sentir desgosto pelo bem do outro.[viii]
A inveja é uma tristeza pelo bem alheio, demostrando que não nos interessa a felicidade dos outros, porque estamos concentrados exclusivamente no nosso bem-estar. Enquanto o amor nos faz sair de nós mesmos, a inveja leva a centrar-nos em nós próprios. O verdadeiro amor aprecia os sucessos alheios, não os sente como uma ameaça, libertando-se do sabor amargo da inveja. Aceita que cada um tenha dons distintos e caminhos diferentes na vida; e, consequentemente, procura descobrir o seu próprio caminho para ser feliz, deixando que os outros encontrem o deles.
Em última análise, trata-se de cumprir o que pedem os dois últimos mandamentos da Lei de Deus: «Não desejarás a casa do teu próximo. Não desejarás a mulher do teu próximo, o seu servo, a sua serva, o seu boi, o seu burro, e tudo o que é do teu próximo».[ix]
O amor leva-nos a uma apreciação sincera de cada ser humano, reconhecendo o seu direito à felicidade. Amo aquela pessoa, vejo-a com o olhar de Deus Pai, que nos dá tudo «para nosso usufruto»[x], e consequentemente aceito, no meu íntimo, que ela possa usufruir dum momento bom. Entretanto esta mesma raiz do amor leva-me a rejeitar a injustiça de alguns terem muito e outros não terem nada, ou induz-me a procurar que os próprios descartáveis da sociedade possam viver um pouco de alegria. Mas isto não é inveja; são anseios de equidade. Sem ser arrogante nem se orgulhar.
Segue-se o termo perpereuetai, que indica vanglória, desejo de se mostrar superior para impressionar os outros com atitude pedante e um pouco agressiva. Quem ama não só evita falar muito de si mesmo, mas, porque está centrado nos outros, sabe manter-se no seu lugar sem pretender estar no centro.

A palavra seguinte – physioutai – é muito semelhante, indicando que o amor não é arrogante. Literalmente afirma que não se «engrandece» diante dos outros; mas indica algo de mais subtil. Não se trata apenas duma obsessão por mostrar as próprias qualidades; é pior: perde-se o sentido da realidade, a pessoa considera-se maior do que é, porque se crê mais «espiritual» ou «sábia». Paulo usa este verbo noutras oca­siões, para dizer, por exemplo, que «a ciência incha», ao passo que «a caridade edifica».[xi] Por outras palavras, alguns julgam-se grandes, porque sabem mais do que os outros, dedicando-se a impor-lhes exigências e a controlá-los; quando, na realidade, o que nos faz grandes é o amor que compreende, cuida, integra, está atento aos fracos.
Noutro versículo, usa-o para criticar aqueles que «se tornaram insolentes»,[xii] mas, na realidade, têm mais palavreado do que verdadeiro «poder» do Espírito.[xiii]
É importante que os cristãos vivam isto no seu modo de tratar os familiares pouco formados na fé, frágeis ou menos firmes nas suas convicções. Às vezes, dá-se o contrário: as pessoas que, no seio da família, se consideram mais desenvolvidas, tornam-se arrogantes insuportáveis. A atitude de humildade aparece aqui como algo que faz parte do amor, porque, para poder compreender, desculpar ou servir os outros de coração, é indispensável curar o orgulho e cultivar a humildade. Jesus lembrava aos seus discípulos que, no mundo do poder, cada um procura dominar o outro, e acrescentava: «não seja assim entre vós».[xiv]


(cont)

(revisão da versão portuguesa por AMA)



[i] (1 Cor 13, 2-3)
[ii] Catecismo da Igreja Católica, 1641. 105 Cf. Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro de 2005), 2: AAS 98 (2006), 218.
[iii] (1 Cor 13, 4-7)
[iv] (Nm 14, 18; cf. Ex 34, 6)
[v] (cf. 11, 23; 12, 2.15-18)
[vi] » (Ef 4, 31)
[vii] Exercícios espirituais, Contemplação para alcançar o amor.
[viii] (cf. Act 7, 9; 17, 5)
[ix] (Ex 20, 17)
[x] (1 Tim 78 6, 17)
[xi] (1 Cor 8, 1)
[xii] (1 Cor 4, 18)
[xiii] (cf. 1 Cor 4, 19)
[xiv] (Mt 20, 26)

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