EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL
AMORIS LÆTITIA
DO SANTO PADRE FRANCISCO
AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA
CAPÍTULO IV
O AMOR NO MATRIMÓNIO
Tudo
o que foi dito não é suficiente para exprimir o Evangelho do matrimónio e da
família, se não nos detivermos particularmente a falar do amor. Com efeito, não
poderemos encorajar um caminho de fidelidade e doação recíproca, se não
estimularmos o crescimento, a consolidação e o aprofundamento do amor conjugal
e familiar. De facto, a graça do sacramento do matrimónio destina-se, antes de
mais nada, «a aperfeiçoar o amor dos cônjuges».
Também
aqui é verdade que, «ainda que eu tenha
tão grande fé que transporte montanhas, se não tiver amor, nada sou. Ainda que
eu distribua todos os meus bens e entregue o meu corpo para ser queimado, se
não tiver amor de nada me vale».[i] Mas a palavra «amor», uma das mais usadas, muitas
vezes aparece desfigurada.
O nosso amor quotidiano.
No
chamado hino à caridade escrito por São Paulo, vemos algumas características do
amor verdadeiro:[ii]
«O amor é paciente, o amor é prestável;
não é invejoso, não é arrogante nem orgulhoso, nada faz de inconveniente, não
procura o seu próprio interesse, não se irrita, nem guarda ressentimento, não
se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê,
tudo espera, tudo suporta»[iii].
Isto
pratica-se e cultiva-se na vida que os esposos partilham dia-a-dia entre si e
com os seus filhos. Por isso, vale a pena deter-se a esclarecer o significado
das expressões deste texto, tendo em vista uma aplicação à existência concreta
de cada família.
Paciência.
A
primeira palavra usada é «macrothymei».
A
sua tradução não é simplesmente «suporta tudo», porque esta ideia é expressa no
final do versículo 7. O sentido encontra-se na tradução grega do texto do Antigo
Testamento onde se diz que Deus é «lento para a ira».[iv]
Uma
pessoa mostra-se paciente, quando não se deixa levar pelos impulsos interiores
e evita agredir. A paciência é uma qualidade do Deus da Aliança, que convida a
imitá-Lo também na vida familiar. Os textos onde Paulo usa este termo devem ser
lidos à luz do livro da Sabedoria[v]: ao mesmo tempo que se louva a moderação de Deus para
dar tempo ao arrependimento, insiste-se no seu poder que se manifesta quando
actua com misericórdia. A paciência de Deus é exercício da misericórdia de Deus
para com o pecador e manifesta o verdadeiro poder.
Ter
paciência não é deixar que nos maltratem permanentemente, nem tolerar agressões
físicas, ou permitir que nos tratem como objectos. O problema surge quando
exigimos que as relações sejam idílicas, ou que as pessoas sejam perfeitas, ou
quando nos colocamos no centro esperando que se cumpra unicamente a nossa
vontade. Então tudo nos impacienta, tudo nos leva a reagir com agressividade.
Se não cultivarmos a paciência, sempre acharemos desculpas para responder com
ira, acabando por nos tornarmos pessoas que não sabem conviver, anti-sociais
incapazes de dominar os impulsos, e a família tornar-se-á um campo de batalha.
Por isso, a Palavra de Deus exorta-nos: «Toda
a espécie de azedume, raiva, ira, gritaria e injúria desapareça de vós,
juntamente com toda a maldade.[vi]
Esta
paciência reforça-se quando reconheço que o outro, assim como é, também tem
direito a viver comigo nesta terra. Não importa se é um estorvo para mim, se
altera os meus planos, se me molesta com o seu modo de ser ou com as suas ideias,
se não é em tudo como eu esperava.
O
amor possui sempre um sentido de profunda compaixão, que leva a aceitar o outro
como parte deste mundo, mesmo quando age de modo diferente daquilo que eu
desejaria.
Atitude de serviço.
Vem
depois a palavra jrestéuetai – a
única vez que aparece em toda a Bíblia –, que deriva de jrestós (pessoa boa, que mostra a sua bondade nas acções). Mas pelo
lugar onde está, ou seja, em estrito paralelismo com o verbo anterior, é seu
complemento. Deste modo Paulo pretende esclarecer que a «paciência», nomeada em
primeiro lugar, não é uma postura totalmente passiva, mas há-de ser acompanhada
por uma actividade, uma reacção dinâmica e criativa perante os outros. Indica
que o amor beneficia e promove os outros. Por isso, traduz-se como «prestável».
No
conjunto do texto, vê-se que Paulo quer insistir que o amor não é apenas um
sentimento, mas deve ser entendido no sentido que o verbo «amar» tem em hebraico:
«fazer o bem».
Como
dizia Santo Inácio de Loyola, «o amor
deve ser colocado mais nas obras do que nas palavras». Assim poderá mostrar
toda a sua fecundidade, permitindo-nos experimentar a felicidade de dar, a nobreza
e grandeza de doar-se superabundantemente, [vii] sem calcular nem reclamar pagamento, mas apenas pelo
prazer de dar e servir.
Curando a inveja.
Em
seguida rejeita-se, como contrária ao amor, uma atitude expressa como zeloi (ciúme ou inveja).
A
inveja é uma tristeza pelo bem alheio, demostrando que não nos interessa a
felicidade dos outros, porque estamos concentrados exclusivamente no nosso
bem-estar. Enquanto o amor nos faz sair de nós mesmos, a inveja leva a
centrar-nos em nós próprios. O verdadeiro amor aprecia os sucessos alheios, não
os sente como uma ameaça, libertando-se do sabor amargo da inveja. Aceita que
cada um tenha dons distintos e caminhos diferentes na vida; e, consequentemente,
procura descobrir o seu próprio caminho para ser feliz, deixando que os outros
encontrem o deles.
Em
última análise, trata-se de cumprir o que pedem os dois últimos mandamentos da
Lei de Deus: «Não desejarás a casa do teu
próximo. Não desejarás a mulher do teu próximo, o seu servo, a sua serva, o seu
boi, o seu burro, e tudo o que é do teu próximo».[ix]
O
amor leva-nos a uma apreciação sincera de cada ser humano, reconhecendo o seu
direito à felicidade. Amo aquela pessoa, vejo-a com o olhar de Deus Pai, que
nos dá tudo «para nosso usufruto»[x], e consequentemente aceito, no meu íntimo, que ela
possa usufruir dum momento bom. Entretanto esta mesma raiz do amor leva-me a
rejeitar a injustiça de alguns terem muito e outros não terem nada, ou induz-me
a procurar que os próprios descartáveis da sociedade possam viver um pouco de
alegria. Mas isto não é inveja; são anseios de equidade. Sem ser arrogante nem
se orgulhar.
Segue-se
o termo perpereuetai, que indica
vanglória, desejo de se mostrar superior para impressionar os outros com atitude
pedante e um pouco agressiva. Quem ama não só evita falar muito de si mesmo,
mas, porque está centrado nos outros, sabe manter-se no seu lugar sem pretender
estar no centro.
A
palavra seguinte – physioutai – é
muito semelhante, indicando que o amor não é arrogante. Literalmente afirma que
não se «engrandece» diante dos outros; mas indica algo de mais subtil. Não se
trata apenas duma obsessão por mostrar as próprias qualidades; é pior: perde-se
o sentido da realidade, a pessoa considera-se maior do que é, porque se crê
mais «espiritual» ou «sábia». Paulo usa este verbo noutras ocasiões, para dizer,
por exemplo, que «a ciência incha»,
ao passo que «a caridade edifica».[xi] Por outras palavras, alguns julgam-se grandes, porque
sabem mais do que os outros, dedicando-se a impor-lhes exigências e a
controlá-los; quando, na realidade, o que nos faz grandes é o amor que compreende,
cuida, integra, está atento aos fracos.
Noutro
versículo, usa-o para criticar aqueles que «se
tornaram insolentes»,[xii] mas, na realidade, têm mais palavreado do que
verdadeiro «poder» do Espírito.[xiii]
É
importante que os cristãos vivam isto no seu modo de tratar os familiares pouco
formados na fé, frágeis ou menos firmes nas suas convicções. Às vezes, dá-se o
contrário: as pessoas que, no seio da família, se consideram mais
desenvolvidas, tornam-se arrogantes insuportáveis. A atitude de humildade
aparece aqui como algo que faz parte do amor, porque, para poder compreender,
desculpar ou servir os outros de coração, é indispensável curar o orgulho e
cultivar a humildade. Jesus lembrava aos seus discípulos que, no mundo do poder,
cada um procura dominar o outro, e acrescentava: «não seja assim entre vós».[xiv]
(cont)
(revisão
da versão portuguesa por AMA)
[ii] Catecismo da Igreja
Católica, 1641. 105 Cf. Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de Dezembro
de 2005), 2: AAS 98 (2006), 218.
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