06/01/2019

Leitura espiritual



SOBRE A CHAMADA À SANTIDADE
NO MUNDO ACTUAL

Capítulo I

A CHAMADA À SANTIDADE

A tua missão em Cristo

19. Para um cristão, não é possível imaginar a própria missão na terra, sem a conceber como um caminho de santidade, porque «esta é, na verdade, a vontade de Deus: a [nossa] santificação» (1 Ts 4, 3). Cada santo é uma missão; é um projecto do Pai que visa reflectir e encarnar, num momento determinado da história, um aspecto do Evangelho.
20. Esta missão tem o seu sentido pleno em Cristo e só se compreende a partir d’Ele. No fundo, a santidade é viver em união com Ele os mistérios da sua vida; consiste em associar-se duma maneira única e pessoal à morte e ressurreição do Senhor, em morrer e ressuscitar continuamente com Ele. Mas pode também envolver a reprodução na própria existência de diferentes aspetos da vida terrena de Jesus: a vida oculta, a vida comunitária, a proximidade aos últimos, a pobreza e outras manifestações da sua doação por amor. A contemplação destes mistérios, como propunha Santo Inácio de Loyola, leva-nos a encarná-los nas nossas opções e atitudes. [i] Porque «tudo, na vida de Jesus, é sinal do seu mistério», [ii] «toda a vida de Cristo é revelação do Pai»,[iii] «toda a vida de Cristo é mistério de redenção», [iv] «toda a vida de Cristo é mistério de recapitulação»,[v] e «tudo o que Cristo viveu, Ele próprio faz com que o possamos viver n’Ele e Ele vivê-lo em nós». [vi]
21. O desígnio do Pai é Cristo, e nós n’Ele. Em última análise, é Cristo que ama em nós, porque a santidade «mais não é do que a caridade plenamente vivida».[vii] Por conseguinte, «a medida da santidade é dada pela estatura que Cristo alcança em nós, desde quando, com a força do Espírito Santo, modelamos toda a nossa vida sobre a Sua». [viii] Assim, cada santo é uma mensagem que o Espírito Santo extrai da riqueza de Jesus Cristo e dá ao seu povo.
22. Para identificar qual seja essa palavra que o Senhor quer dizer através dum santo, não convém deter-se nos detalhes, porque nisso também pode haver erros e quedas. Nem tudo o que um santo diz é plenamente fiel ao Evangelho, nem tudo o que faz é autêntico ou perfeito. O que devemos contemplar é o conjunto da sua vida, o seu caminho inteiro de santificação, aquela figura que reflecte algo de Jesus Cristo e que sobressai quando se consegue compor o sentido da totalidade da sua pessoa. [ix]
23. Isto é um vigoroso apelo para todos nós. Também tu precisas de conceber a totalidade da tua vida como uma missão. Tenta fazê-lo, escutando a Deus na oração e identificando os sinais que Ele te dá. Pede sempre, ao Espírito Santo, o que espera Jesus de ti em cada momento da tua vida e em cada opção que tenhas de tomar, para discernir o lugar que isso ocupa na tua missão. E permite-Lhe plasmar em ti aquele mistério pessoal que possa reflectir Jesus Cristo no mundo de hoje.
24. Oxalá consigas identificar a palavra, a mensagem de Jesus que Deus quer dizer ao mundo com a tua vida. Deixa-te transformar, deixa-te renovar pelo Espírito para que isso seja possível, e assim a tua preciosa missão não fracassará. O Senhor levá-la-á a cumprimento mesmo no meio dos teus erros e momentos negativos, desde que não abandones o caminho do amor e permaneças sempre aberto à sua acção sobrenatural que purifica e ilumina.

A actividade que santifica

25. Dado que não se pode conceber Cristo sem o Reino que Ele veio trazer, também a tua missão é inseparável da construção do Reino: «procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça» (Mt 6, 33). A tua identificação com Cristo e os seus desígnios requer o compromisso de construíres, com Ele, este Reino de amor, justiça e paz para todos. O próprio Cristo quer vivê-lo contigo em todos os esforços ou renúncias que isso implique e também nas alegrias e na fecundidade que te proporcione. Por isso, não te santificarás sem te entregares de corpo e alma, dando o melhor de ti neste compromisso.
26. Não é saudável amar o silêncio e esquivar o encontro com o outro, desejar o repouso e rejeitar a actividade, buscar a oração e menosprezar o serviço. Tudo pode ser recebido e integrado como parte da própria vida neste mundo, entrando a fazer parte do caminho de santificação. Somos chamados a viver a contemplação mesmo no meio da acção, e santificamo-nos no exercício responsável e generoso da nossa missão.

27. Poderá porventura o Espírito Santo enviar-nos para cumprir uma missão e, ao mesmo tempo, pedir-nos que fujamos dela ou que evitemos doar-nos totalmente para preservarmos a paz interior? Obviamente não; mas, às vezes, somos tentados a relegar para posição secundária a dedicação pastoral e o compromisso no mundo, como se fossem «distracções» no caminho da santificação e da paz interior. Esquecemo-nos disto: «não é que a vida tenha uma missão, mas a vida é uma missão». [x]

28. Um compromisso movido pela ansiedade, o orgulho, a necessidade de aparecer e dominar, certamente, não será santificador. O desafio é viver de tal forma a própria doação, que os esforços tenham um sentido evangélico e nos identifiquem cada vez mais com Jesus Cristo. Por isso, é usual falar, por exemplo, duma espiritualidade do catequista, duma espiritualidade do clero diocesano, duma espiritualidade do trabalho. Pela mesma razão, na Evangelii gaudium, quis concluir com uma espiritualidade da missão, na Laudato si’ com uma espiritualidade ecológica, e na Amoris laetitia com uma espiritualidade da vida familiar.

29. Isto não implica menosprezar os momentos de quietude, solidão e silêncio diante de Deus. Antes pelo contrário! Com efeito, as novidades contínuas dos meios tecnológicos, o fascínio de viajar, as inúmeras ofertas de consumo, às vezes, não deixam espaços vazios onde ressoe a voz de Deus. Tudo se enche de palavras, prazeres epidérmicos e rumores a uma velocidade cada vez maior; aqui não reina a alegria, mas a insatisfação de quem não sabe para que vive. Então, como não reconhecer que precisamos de deter esta corrida febril para recuperar um espaço pessoal, às vezes doloroso mas sempre fecundo, onde se realize o diálogo sincero com Deus? Em certos momentos, deveremos encarar a verdade de nós mesmos, para a deixar invadir pelo Senhor; e isto nem sempre se consegue, se a pessoa «não se vê à beira do abismo da tentação mais opressiva, se não sente a vertigem do precipício do abandono mais desesperado, se não se encontra absolutamente só, no cume da solidão mais radical». [xi] Assim, encontramos as grandes motivações que nos impelem a viver, em profundidade, as nossas tarefas.

30. Os próprios meios de distracção que invadem a vida actual levam-nos também a absolutizar o tempo livre, no qual podemos utilizar, sem limites, aqueles dispositivos que nos proporcionam divertimento e prazeres efémeros. [xii] Em consequência disso, ressente-se a própria missão, o compromisso esmorece, o serviço generoso e disponível começa a retrair-se. Isto desnatura a experiência espiritual. Poderá ser saudável um fervor espiritual que convive com a acédia na acção evangelizadora ou no serviço dos outros?

31. Precisamos dum espírito de santidade que impregne tanto a solidão como o serviço, tanto a intimidade como a tarefa evangelizadora, para que cada instante seja expressão de amor doado sob o olhar do Senhor. Desta forma, todos os momentos serão degraus no nosso caminho de santificação.

Mais vivos, mais humanos

32. Não tenhas medo da santidade. Não te tirará forças, nem vida nem alegria. Muito pelo contrário, porque chegarás a ser o que o Pai pensou quando te criou e serás fiel ao teu próprio ser. Depender d’Ele liberta-nos das escravidões e leva-nos a reconhecer a nossa dignidade. Isto vê-se em Santa Josefina Bakhita, que, «escravizada e vendida como escrava com apenas sete anos de idade, sofreu muito nas mãos de patrões cruéis. Apesar disso compreendeu a verdade profunda que Deus, e não o homem, é o verdadeiro Patrão de todos os seres humanos, de cada vida humana. Esta experiência torna-se fonte de grande sabedoria para esta humilde filha da África». [xiii]

33. Cada cristão, quanto mais se santifica, tanto mais fecundo se torna para o mundo. Assim nos ensinaram os Bispos da África ocidental: «Somos chamados, no espírito da nova evangelização, a ser evangelizados e a evangelizar através da promoção de todos os baptizados para que assumam as suas tarefas como sal da terra e luz do mundo, onde quer que se encontrem». [xiv]

34. Não tenhas medo de apontar para mais alto, de te deixares amar e libertar por Deus. Não tenhas medo de te deixares guiar pelo Espírito Santo. A santidade não te torna menos humano, porque é o encontro da tua fragilidade com a força da graça. No fundo, como dizia León Bloy, na vida «existe apenas uma tristeza: a de não ser santo». [xv]

(cont) 

(Revisão da versão portuguesa por AMA) 




[i] Cf. Exercícios espirituais, 102-312.
[iii] Ibid., 516.
[iv] Ibid., 517.
[v] Ibid., 518.
[vi] Ibid., 521.
[vii] Bento XVI, Catequese (Audiência geral, 13 de abril de 2011): Insegnamenti, VII (2011), 451.
[viii] Ibidemo. c., 450.
[ix] Cf. Hans U. von Balthasar, «Teología y santidad», Communio VI/87, 486-493.
[x] Xavier Zubiri, Naturaleza, historia, Dios (Madrid 31999), 427.
[xi] Carlos M. Martini, As confissões de Pedro (Cinisello Balsamo 2017), 69.
[xii] É necessário distinguir, esta distracção superficial, duma cultura saudável do repouso, que nos abre ao outro e à realidade com um espírito disponível e contemplativo.
[xiii] São João Paulo II, Homilia na Missa de canonização (1 de outubro de 2000), 5: AAS 92 (2000), 852.
[xiv] Conferência Episcopal Regional da África Ocidental, Mensagem pastoral no final da II Assembleia Plenária (29 de fevereiro de 2016), 2.
[xv] A mulher pobre (Régio Emília 1978), II, 375.

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