29/12/2018

Leitura espiritual


O HOMEM BOM



DESCULPAR E ESPERAR




É impossível existir bondade sem compreensão. E é impossível existir verdadeira compreensão sem a disposição de desculpar.
Todas as vezes que julgamos uma pessoa e concluímos, como quem dita uma sentença:
“Ela é assim”, “é insuportável”, “é maçante”, “é preguiçoso”, etc., estamos a condená-la.
Ao fazer tais juízos, colocamos nos outros uma etiqueta, como se faz num frasco ou num insecto coleccionado, e os fechamos nessa definição.
Dizer de uma pessoa: “Ela é assim” equivale a perder a esperança deque venha a mudar.
Como se partíssemos da base de que vai ser assim para sempre e de que o máximo de bondade que lhe podemos dedicar é apenas sermos pacientes, suportando-a tal como é.
Mas essa apreciação é falsa, está viciada na raiz, porque todo o ser humano tem na alma “sementes de bondade”, latentes mas reais, que podem ser desenvolvidas.
Nenhuma pessoa consiste apenas nos defeitos que denota exteriormente.
Todas têm infinitas possibilidades de bem que – com a graça de Deus, o seu esforço e a nossa ajuda – um dia podem vir a ser belas realidades.
Por isso, Cristo nos manda não condenar ninguém (cfr. Lc 6, 37), como se já estivesse “acabado”.
O contrário de condenar é desculpar e esperar. O coração do homem bom está sempre inclinado a desculpar.
Ao julgar os outros, evita usar o verbo “ser” – Fulano é assim –, e prefere empregar o verbo “ter”: essa pessoa, que – como todos os filhos de Deus – é potencialmente santa, agora, por uma série de circunstâncias, tem tal ou qual defeito, mas isso não quer dizer que sempre deva tê-lo.
É muito provável que uma série de dificuldades a levem a comportar-se assim.
É justo tê-las em conta.
Talvez seja grosseira porque não recebeu uma educação esmerada, a ou arrogante porque foi humilhado sente necessidade de se afirmar, ou impaciente porque lhe dói o fígado...
Sempre há uma desculpa, afectuosa, que os “bons olhos” da bondade detectam, uma desculpa com fundamento objectivo, real, que impede que julguemos esta ou aquela pessoa com dureza e, ainda mais, que a desclassifiquemos.
Certamente os outros têm defeitos, como nós os temos, mas felizmente não estão acorrentados por eles como um sentenciado a prisão perpétua.
Está nas nossas mãos – está nas mãos da nossa bondade – desamarrar-lhes esses grilhões.
Esta é uma das mais delicadas tarefas do amor benigno: não deixar ninguém de lado por impossível, antes dar-lhe a mão, ajudá-lo incansavelmente – com infinita compreensão e paciência – a soltar um a um os elos dos defeitos que compõem essas suas correntes.
Naturalmente, isto pressupõe que saibamos confiar – como víamos – na capacidade de bondade das pessoas, e portanto na sua possibilidade de mudar. Já foi dito alguma vez que perder a confiança em alguém é matá-lo.
Também é verdadeira a afirmação contrária: confiar em alguém é dar-lhe a vida.
É claro que essa confiança não se confunde com a credulidade ingénua, que fecha os olhos e julga que, afinal, todo o mundo é bom.
A verdadeira confiança é outra coisa.
O homem bom não é cego nem insensível aos valores.
Não deixa de ver o mal, em toda a sua dimensão perniciosa, e chama erro ao erro, e pecado ao pecado.
Mas, ao mesmo tempo, acredita com todas as suas forças que aquelas “sementes de bondade” que dormem em cada coração humano podem ser activadas, podem ser cultivadas.
Por isso, arregaça as mangas e, sem reclamar dos espinhos dos outros, trabalha para que neles desabrochem as rosas.
A BONDADE CULTIVA O BEM

O homem bom faz bem aos outros somente com a sua presença, pela força atraente das virtudes. Mas o seu influxo benéfico não se limita a isso.
Acabamos de ver que tem a disposição de trabalhar, de fazer alguma coisa para que o bem desabroche nos outros. Vive, para dizê-lo em poucas palavras, a serviço do bem dos outros.
Não há dúvida de que este é um belo ideal de vida. Quem não almeja passar pelo mundo deixando, como Cristo, uma esteira de bondade, fazendo o bem (At 10, 38)? “Que a tua vida – lê-se em Caminho – não seja uma vida estéril. – Sê útil. – Deixa rasto. – Ilumina com o resplendor da tua fé e do teu amor” (n. 1).
Estas palavras são todo um empolgante programa de bondade.
A este propósito, lembro-me de um livro que me causou impressão. Intitulava-se “Viveu para ninguém”, e era o romance de um homem medíocre, vulgar, que passou pelo mundo sem deixar rasto algum. Dele se poderia dizer, como um triste epitáfio, que teria dado na mesma se nunca tivesse existido. Seria penoso que um tal epitáfio se pudesse aplicar a nós.
Pois bem, é hora de nos perguntarmos sinceramente o que nós deixamos de bom nos corações e nas vidas dos que vivem e trabalham connosco. Como estamos contribuindo para o seu bem?
Comecemos por convencer-nos de que a primeira ajuda que devemos prestar-lhes consiste em não lhes criar dificuldades.
Porque, infelizmente, com frequência somos mais obstáculo do que auxílio.
E o pior é que não nos apercebemos disso.
Se nos dissessem: “A sua esposa, o seu filho, o seu colega, o seu pai, têm tais e tais problemas, tais e tais defeitos, e você é a causa deles”, levaríamos uma surpresa.
“Como assim?”, retrucaríamos. “Eu, que tenho que sofrer esses defeitos, ainda por cima sou culpado deles?” Pois sim, muitas vezes o somos.
Tomemos por exemplo um honesto pai de família, trabalhador abnegado, daqueles que “só vivem para a família”.
Trabalha em dois empregos e volta cansado ao lar. Ao mesmo tempo, tem um temperamento fechado, não é homem de muitas palavras. Os familiares vêem-no soturno e calado, e não se atrevem a interferir no seu aparente mau humor. Caso lhe perguntem: “Está aborrecido? Acontece-lhe alguma coisa?”, responderá, com olhar de surpresa, que não lhe acontece nada. Talvez acrescente: “Sou assim mesmo, é o meu jeito”.
Ora, acontece que esse “jeito” é uma barreira. Bloqueia o diálogo com a esposa e os filhos.
A mulher, sentindo-se cada vez mais isolada, sem poder compartilhar as suas fadigas com o marido, irá ficando cada vez mais nervosa e multiplicará as faltas de paciência com as crianças. O marido lamentará que os nervos da mulher estejam criando um ambiente pesado no lar. Mas nem he passará pela cabeça que foi ele quem o provocou, com a sua cómoda abstenção. Se tivesse aprendido a chegar ao lar sorrindo, acolhendo, interessando-se pelos problemas da mulher e dos filhos, teria criado condições para um diálogo amável. Teria facilitado um clima cordial, em que os nervos dos outros se dissolveriam. E haveria paz.
De modo análogo, podemos pensar no chefe de um escritório que reclama da falta de iniciativa de um dos seus subordinados: acha que é um homem sem garra no trabalho, que lhe falta entusiasmo e realiza as suas tarefas de modo rotineiro e como que a contragosto. Certamente, este não é o estado de ânimo ideal para um trabalho dinâmico e criativo.
Mas de quem é a culpa?
Pode muito bem suceder que semelhante inibição e falta de eficiência do empregado tenha sido provocada por esse mesmo superior, que nunca soube incentivá-lo, nem teve paciência para ensiná-lo, nem lhe ofereceu o estímulo de uma palavra positiva, que fizesse o outro sentir-se valorizado.
Só soube cobrar e criticar.
A culpa, sem dúvida nenhuma, é do chefe.
Isto é dificultar o bem dos outros com os nossos defeitos e as nossas omissões.
Aí não há bondade, porque não lhes fazemos bem.

Francisco Faus [i]


[i] Francisco Faus é licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em Direito Canónico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote em 1955, reside em São Paulo, onde exerce uma intensa atividade de atenção espiritual entre estudantes universitários e profissionais. Autor de diversas obras literárias, algumas delas premiadas, já publicou na coleção Temas Cristãos, entre outros, os títulos O valor das dificuldades, O homem bom, Lágrimas de Cristo, lágrimas dos homens, Maria, a mãe de Jesus, A voz da consciência e A paz na família.


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