28/12/2018

Leitura espiritual


O HOMEM BOM



O ESPELHO DOS NOSSOS DEFEITOS





Estamos vendo que a falta de bondade se manifesta, entre outras coisas, pela reacção que os defeitos alheios provocam em nós: umas vezes, de impaciência; outras, de desprezo ou cansaço.
Ejá percebemos que tais reacções não são propriamente “provocadas” pelos defeitos dos outros, mas são “activadas” pelo nosso egoísmo ou pelo nosso orgulho.
Talvez compreendamos melhor o que se passa connosco se percebermos que, devido ao nosso egoísmo e à nossa auto-suficiência, a primeira coisa que notamos nos outros é a sombra que os seus defeitos projectam sobre o espelho dos nossos próprios defeitos.
Por outras palavras, os defeitos alheios incomodam-nos precisamente porque ferem um defeito nosso.
Alguns exemplos podem esclarecer-nos.
Não é raro que um marido se sinta tremendamente aborrecido quando, ao chegar a casa cansado no fim do expediente, a mulher se dedica a martelar-lhe os ouvidos com uma longa cantilena de reclamações e lamentos: o elenco das contrariedades do dia.
A reacção espontânea do marido é perder o bom humor:
 “Por que não me deixa em paz?
Será que não compreende que tenhodireito a um pouco de tranquilidade após um dia de trabalho estafante?”
Aparentemente, este marido tem razão.
E certamente a esposa faria bem se guardasse para si as suas queixas e se ocupasse em tornar mais amável o convívio familiar.
Mas também é verdade que a reacção de impaciência e desgosto do marido não nasceu do amor: a ladainha enfadonha da mulher projectou-lhe uma sombra sobre o seu comodismo, feriu o seu comodismo, e por isso o perturbou.
Fosse um homem de coração generoso, e a fraqueza da mulher se projectaria sobre o espelho do amor compreensivo, e nesse caso a reacção seria outra.
Poderíamos falar também da impaciência do pai que recebe o boletim do colégio do filho enfeitado de vermelhos.
É natural que esse mau desempenho nos estudos preocupe o pai e até que o deixe indignado.
É lógico que tenha uma conversa menos suave com o filho.
Mas, ao mesmo tempo, seria muito bom que analisasse o seu coração e se perguntasse: estou reagindo só por amor ao filho, pelo seu bem, ou porque me humilha que o meu garoto seja dos últimos da classe, e isso projecta uma sombra no espelho da minha vaidade?
Pode muito bem acontecer que o sentimento predominante seja este último, e então a impaciência é a reacção de um defeito pessoal atingido.
O mesmo poderíamos dizer quando notamos que possuímos uma grande facilidade para “ver” que os nossos colegas são antipáticos, pouco inteligentes, maçantes e desleais..., quando, na realidade, o que “não vemos” é que estamos deixando-nos dominar pela inveja, pois o que nos aborrece é que, apesar de tantas deficiências que observamos neles, estão-se saindo melhor do que nós e tendo maior sucesso no seu trabalho.
Já dizia o Padre Vieira que “os olhos vêem pelo coração; e assim como quem vê por vidros de diversas cores, todas as coisas lhe parecem daquela cor, assim as vistas se tingem dos mesmos humores de que estão bem ou mal c os corações” (Sermão da quinta Quarta-feira, 1669).
Quando o coração é limpo e bom, enxerga as coisas limpas e boas do mundo, especialmente as coisas limpas e boas dos outros.
Se está manchado, projecta a sua sujidade em tudo.
Se fôssemos mais humildes e esquecidos de nós mesmos, ao percebermos que as fraquezas e os erros dos outros fazem saltar como uma mola os nossos próprios defeitos, começaríamos por tentar limpar esses nossos defeitos.
Um pequeno insecto pousado sobre uma ferida aberta incomoda muito.
Mas se curarmos essa ferida, a presença do insecto sobre a pele sadia será quase imperceptível.
Meditando nestes aspectos, Santo Agostinho sugeria um sistema excelente:
“Procurai adquirir as virtudes que julgais faltarem aos vossos irmãos, e já não vereis os seus defeitos, porque vós mesmos não os tereis” (Enarrat. in Psalmis, 30, 2, 7).
Vale a pena tentar essa experiência. Suponhamos, por exemplo, que estamos a conviver com uma pessoa ríspida.
Fala bruscamente, agride com comentários, critica tudo.
Isso “provoca-nos” e impele-nos a retrucar com a mesma moeda: quase sem repararmos, também nós nos tornamos agressivos e azedos.
 Esforcemo-nos por dar uma virada.
Tentemos, como ensina São Paulo, vencer o mal com o bem (Rom 12, 21).
Iniciemos decididamente uma campanha de paciência, amabilidade e mansidão.
É muito provável que aconteçam duas coisas: primeiro, que a pessoa que nos “provoca” fique desarmada perante a nossa afabilidade, e mude; segundo, que nós mesmos, com a alma limpa de preocupações egoístas, venhamos a descobrir que aquela rispidez “incompreensível” outra coisa não era senão a amargura de alguém que não sentia reconhecido e valorizado o seu trabalho; ou então era o queixume surdo de quem tinha ânsias de um pouco mais de atenção que ninguém lhe dava.
Uma vez feita essa constatação, já não veremos mais um defeito que aborrece, mas uma carência que, com carinho, procuraremos aliviar. Passaremos a olhar o problema com o calor aconchegante da bondade.
Como dizia alguém, “somente nos irritam os nossos defeitos”. As agulhadas e impertinências dos outros são “cutucões” sobre os nossos defeitos, que Deus permite para que os vejamos melhor e nos decidamos a vencê-los.
Se arrancarmos os nossos defeitos, as “pedras” do nosso campo – da nossa alma –, não sentiremos mais os “pontapés” dos outros, porque não terão onde tropeçar.
Se todos nós compreendêssemos estas verdades simples, haveria mais paz nas famílias e, em geral, no convívio humano, e muitas desavenças crónicas abririam passagem à harmonia.
Francisco Faus [i]


[i] Francisco Faus é licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em Direito Canónico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote em 1955, reside em São Paulo, onde exerce uma intensa atividade de atenção espiritual entre estudantes universitários e profissionais. Autor de diversas obras literárias, algumas delas premiadas, já publicou na coleção Temas Cristãos, entre outros, os títulos O valor das dificuldades, O homem bom, Lágrimas de Cristo, lágrimas dos homens, Maria, a mãe de Jesus, A voz da consciência e A paz na família.


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