AS
FONTES DA BONDADE
Contudo, seria um engano
pueril imaginar que esse quadro de virtudes é um dom inato, como um privilégio
que a fortuna reservasse apenas a alguns eleitos. Ninguém nasce bom. O homem
“naturalmente bom” de Rousseau é simplesmente um mito, que a vida, a cada
passo, se encarrega de desmentir.
Certamente todos nós
possuímos tendências temperamentais que nos inclinam mais facilmente para
determinadas atitudes positivas: há homens naturalmente calmos, outros que são
temperamentalmente mais afáveis e prestativos, outros ainda que sentem uma
especial facilidade para transmitir-nos bom humor...
Mas não há ninguém que
possa atingir o conjunto das virtudes que constituem a bondade se se deixa
levar apenas pelas suas inclinações naturais.
Ao lado de tendências
positivas, em todo o homem coexiste um molho de tendências negativas.
Não é em vão que todos
trazemos na alma as marcas hereditárias do pecado original, que nos inclinam
para o mal.
Já dizia Tertuliano, o
escritor africano do século II, que “o cristão não nasce, faz-se”.
A bondade não brota
espontaneamente, como uma planta silvestre, mas forja-se na alma como o ferro trabalhado
na fornalha.
Santo Agostinho, evocando
reminiscências de infância, registrava que o espontâneo, no homem – desde os
inícios da vida –, é o egoísmo: um egoísmo que às vezes aparece escancarado e cru,
e outras, mascarado de bons sentimentos e de brandura emocional. Já o considerávamos
antes, e é oportuno tê-lo em conta de novo para compreendermos melhor de onde é
que surge a bondade.
Qual é, enfim, a forja da
bondade? Desde já podemos adiantar a resposta:
a bondade é sempre
resultante da graça de Deus e da luta, do esforço do homem.
É nestes dois pontos que devem
ser procuradas as suas fontes.
Num dos primeiros perfis
biográficos de Mons. Josemaría Escrivá, recolhem-se palavras do jornalista
italiano Giuseppe Corigliano que, num artigo publicado em Il Giorno de Milão,
reflectia sobre a bondade desse homem de Deus, sobre “a sua grande compreensão
para com todas as situações humanas, a sua grande capacidade de amar e aquele
garbo e simpatia que tornavam agradabilíssimo o seu trato.
Conhecendo-o melhor –
concluía –, intuía-se que aquela grande capacidade de tratar tão intimamente
todas as pessoas era fruto da sua grande intimidade com Deus.
Mais do que com palavras,
ensinava com os factos que quem possui uma fé autêntica é mais humano, conserva
maior capacidade para compreender a vida e as coisas belas e justas deste mundo”
[1]
Lembrávamos antes que o
encontro com um homem realmente bom produz em nós, já de início, um sentimento
de surpresa.
Ficamos intrigados,
tentando achar resposta para uma série de perguntas que a sua bondade suscita:
de onde lhe vem essa paciência e afabilidade, unida a uma firme coerência de
ideais?
De onde tira as forças
para não se deixar abalar, desanimar ou corromper pelo ambiente que o cerca?
Qual a razão da alegria
com que pratica a renúncia e se sacrifica pelos outros com um sorriso?
Que força interior o move?
A explicação desses
enigmas sintetiza-se numa só palavra: Deus.
Por outras palavras, a bondade
é comunicada à alma pela união com Deus através da fé e do amor. Quando um
homem crê, e faz da fé princípio de vida, quando vai ganhando uma amorosa
intimidade com Deus, quando se abre à graça divina, esse homem se “diviniza”,
vai-se tornando semelhante a Deus [3].
E então atrai precisamente por isso, porque – mesmo carregando com inevitáveis
imperfeições – é uma “transparência de Deus”.
Conta-se, na vida de São
João Maria Vianney, o Cura d'Ars, que certa feita um homem descrente se uniu
aos peregrinos que acorriam à cidadezinha de Ars, para ver e ouvir o santo sacerdote.
Movia-o a curiosidade, e
estava com a ideia preconcebida de desmascarar o prestígio daquele que se lhe
afigurava um embaidor de beatas.
Teve oportunidade de
contemplar de perto o santo, e o simples facto de vê-lo, ouvi-lo e cruzar os
seus olhos com os do pobre pároco revolveu-lhe profundamente a alma.
Quando lhe perguntaram a
sua opinião sobre o “palerma” que fora observar como se fosse uma curiosidade
de circo, só soube responder, com a voz embargada: “Vi Deus num homem”.
Este é o primeiro e
principal segredo da bondade.
Poderíamos dizer que o
homem bom é como um metal, fundido, purificado e modelado na forja de Deus.
A graça divina é o fogo
dessa fornalha.
Mas a graça exige
correspondência. De nada serviria se faltasse o esforço, o “martelar” sincero
do homem por modificar os seus pensamentos, sentimentos e acções, e a luta por
reformá-los, com decisão e empenho, de acordo com as exigências do amor de
Deus.
Não há bondade sem luta.
Contando sempre, e em
primeiro lugar, com o auxílio da graça, só se torna bom aquele que – por assim
dizer – começa por ser “mau” consigo próprio, isto é, por combater
decididamente, um a um, todos os desvios – hábitos, defeitos – que o egoísmo
tende a enraizar no coração.
É preciso insistir neste
ponto: não existe bondade se não há uma árdua peleja interior, uma constante
mortificação, um “não” enérgico ao egoísmo.
E é evidente, por outro
lado, que esse combate não se restringe ao interior do homem.
Não são só as paixões
egoístas que hostilizam os ideais da bondade, pois é preciso enfrentar também a
pressão do ambiente, da mentalidade e dos costumes sociais que – como uma
enxurrada envolvente – se opõem a cada passo aos ideais da bondade e às
virtudes cristãs.
Por isso, o homem bom tem necessariamente
que ser um forte, dotado de firme coragem para se manter fiel aos seus valores,
mesmo que estes choquem com o ambiente e suscitem incompreensão.
Somente como resultado
dessa luta fiel é que surge, do pobre barro humano, o que São Paulo chama a
criatura nova [5],
que se vai configurando conforme a imagem de quem o criou [6].
Quem se esforça por ser
bom, acaba realizando em si mesmo – modelado pela graça de Deus – a mais pura
definição do homem: imagem e semelhança de Deus [7].
E, por isso mesmo, acaba
reflectindo na sua vida, como num espelho, a mais simples e bela definição de
Deus:
Francisco
Faus [i]
[i]
Francisco Faus é licenciado em Direito pela
Universidade de Barcelona e Doutor em Direito Canónico pela Universidade de São
Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote em 1955, reside em São Paulo, onde
exerce uma intensa atividade de atenção espiritual entre estudantes
universitários e profissionais. Autor de diversas obras literárias, algumas
delas premiadas, já publicou na coleção Temas Cristãos, entre outros, os
títulos O valor das dificuldades, O homem bom, Lágrimas de Cristo, lágrimas dos
homens, Maria, a mãe de Jesus, A voz da consciência e A paz na família.
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