23/09/2018

Leitura espiritual


São Josemaria Escrivá


Cristo que passa 

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Cada um destes gestos humanos é gesto de Deus.
Em Cristo habita toda a plenitude da divindade corporalmente.
Cristo é Deus feito homem; homem perfeito; homem cabal.
E, na sua humanidade, dá-nos a conhecer a divindade.

Ao recordarmos esta delicadeza humana de Cristo, que gasta a sua vida em serviço dos outros, fazemos muito mais do que descrever um modo possível de nos comportarmos: estamos a descobrir Deus. Toda a actuação de Cristo tem um valor transcendente; dá-nos a conhecer o modo de ser de Deus; convida-nos a crer no amor de Deus, que nos criou e que quer levar-nos até à sua intimidade.
Manifestei o teu nome aos homens que, do mundo, me deste.
Eram teus e Tu deste-mos, e eles guardaram a tua palavra.
Agora sabem que tudo quanto me deste vem de Ti, exclamou Jesus na longa oração que o Evangelista João nos conserva.

Portanto, o convívio de Jesus com os homens não fica em meras palavras nem em atitudes superficiais; Jesus toma a sério o homem e quer dar-lhe a conhecer o sentido divino da sua vida.
Jesus sabe exigir, colocar os homens perante os seus deveres, arrancar do comodismo e do conformismo os que O escutam, para levá-los a conhecer o Deus três vezes santo.
A fome e a dor comovem Jesus, mas sobretudo comove-O a ignorância: Viu Jesus uma grande multidão e compadeceu-Se deles, porque eram como ovelhas sem pastor.
Começou então a ensiná-los demoradamente.

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Aplicação à nossa vida corrente

Percorremos algumas páginas dos Santos Evangelhos para contemplar Jesus no seu convívio com os homens e para aprendermos a levar Cristo aos nossos irmãos, os homens, sendo nós próprios Cristo. Apliquemos esta lição à nossa vida corrente, à vida de cada um de nós.
Porque a vida corrente e ordinária, a vida de cada homem entre os seus concidadãos e seus iguais, não é coisa baixa e sem relevo; é precisamente nessas circunstâncias que o Senhor quer que se santifique a imensa maioria dos seus filhos.

É necessário repetir uma e mais vezes que Jesus não se dirigiu a um grupo de privilegiados, mas veio revelar-nos o amor universal de Deus.
Todos os homens são amados por Deus; de todos eles espera amor, de todos, quaisquer que sejam a sua condição, a sua posição social, a sua profissão ou oficio.
A vida corrente e ordinária não é coisa de pouco valor; todos os caminhos da Terra podem ser uma ocasião de encontro com Cristo, que nos chama a identificar-nos com Ele, para realizarmos - no lugar onde estamos - a sua missão divina.

Deus chama-nos através dos incidentes da vida de cada dia, no sofrimento e na alegria das pessoas com quem convivemos, nas preocupações dos nossos companheiros, nas pequenas coisas da vida familiar.
Deus também nos chama através dos grandes problemas, conflitos e ideais que definem cada época histórica, atraindo o esforço e o entusiasmo de grande parte da Humanidade.

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Compreende-se muito bem a impaciência, a angústia, os inquietos anseios daqueles que, com uma alma naturalmente cristã, não se resignam perante a injustiça individual e social que o coração humano é capaz de criar.
Tantos séculos de convivência dos homens entre si, e ainda tanto ódio, tanta destruição, tanto fanatismo acumulado em olhos que não querem ver e em corações que não querem amar!
Os bens da Terra, repartidos entre muito poucos; os bens da cultura, encerrados em cenáculos...
E, lá fora, fome de pão e de sabedoria; vidas humanas - que são santas, porque vêm de Deus - tratadas como simples coisas, como números de uma estatística!
Compreendo e compartilho dessa impaciência, levantando os olhos para Cristo, que continua a convidar-nos a pormos em prática o mandamento novo do amor.

Todas as situações que a nossa vida atravessa nos trazem uma mensagem divina, nos pedem uma resposta de amor, de entrega aos demais.
Quando vier o Filho do homem em toda a sua majestade, acompanhado de todos seus anjos, há-de sentar-se então no seu trono de glória.
Perante Ele reunir-se-ão todas as nações e Ele apartará as pessoas umas das outras, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos.
À sua direita porá as ovelhas, e os cabritos à esquerda. O Rei dirá então, aos da sua direita: Vinde, benditos do meu Pai, recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo. Porque tive fome e destes-Me de comer, tive sede e destes-Me de beber; era peregrino e recolhestes-Me; estava nu e vestistes-Me; adoeci e visitastes-Me, estive na prisão e fostes ter comigo. Então os justos responder-Lhe-ão: Senhor, quando é que Te vimos com fome e Te demos de comer, com sede e Te demos de beber?
Quando é que Te vimos peregrino e Te recolhemos, ou nu e Te vestimos?
E quando Te vimos doente ou na prisão e fomos visitar-Te?
E o Rei dir-lhes-á em resposta: Em verdade vos digo, sempre que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes.

É preciso reconhecer Cristo que nos sai ao encontro nos nossos irmãos, os homens.
Nenhuma vida humana é uma vida isolada; entrelaça-se com as demais.
Nenhuma pessoa é um verso solto; todos fazemos parte de um mesmo poema divino, que Deus escreve com o concurso da nossa liberdade.

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Nada há que seja alheio ao interesse de Cristo.
Falando com profundidade teológica, isto é, se não nos limitamos a uma classificação funcional, não se pode dizer rigorosamente que haja realidades - boas, nobres e até indiferentes - que sejam exclusivamente profanas, uma vez que o Verbo de Deus fixou morada entre os filhos dos homens, teve fome e sede, trabalhou com as suas mãos, conheceu a amizade e a obediência, experimentou a dor e a morte.
Porque foi do agrado de Deus que residisse Nele toda a plenitude e por Ele fossem reconciliadas consigo todas a coisas, pacificando, pelo sangue da sua Cruz, tanto as da Terra como as dos Céus.

Devemos amar o mundo, o trabalho, as realidades humanas. Porque o mundo é bom.
Foi o pecado de Adão que desfez a harmonia divina da criação. Mas Deus Pai enviou o seu Filho unigénito para restabelecer a paz, para que nós, tornados filhos de adopção, pudéssemos libertar a criação da desordem e reconciliar todas as coisas com Deus.

Cada situação humana é irrepetível, fruto de uma educação única, que se deve viver com intensidade, realizando nela o espírito de Cristo. Assim, vivendo cristãmente entre os nossos iguais, com naturalidade mas de modo coerente com a nossa fé, seremos Cristo presente entre os homens.

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Ao considerar a dignidade da missão a que Deus nos chama talvez possa surgir a presunção, a soberba, na alma humana.
É uma falsa consciência da vocação cristã aquela que nos cegar, aquela que nos fizer esquecer que somos feitos de barro, que somos pó e miséria.
Na verdade, não há mal apenas no mundo, ao nosso redor; o mal está dentro de nós, abriga-se no nosso próprio coração, tornando-nos capazes de vilanias e de egoísmos.
Só a graça de Deus é rocha firme; nós somos areia, e areia movediça.

Se se percorre com um olhar a história dos homens ou a situação actual do mundo, é doloroso verificar que, passados vinte séculos, há tão poucos que se chamam cristãos e que os que se adornam com esse nome são tantas vezes infiéis à sua vocação.
Há anos, uma pessoa, que não tinha mau coração, mas não tinha fé, apontando-me o mapa-múndi, comentou: Aí está o fracasso de Cristo: tantos séculos procurando meter na alma dos homens a sua doutrina, e veja os resultados - não há cristãos.

Não falta hoje quem pense assim.
Cristo, porém, não fracassou; a sua palavra e a sua vida fecundam continuamente o mundo.
A obra de Cristo, a tarefa que seu Pai Lhe encomendou, está a realizar-se; a sua força atravessa a História, trazendo a vida verdadeira e quando tudo Lhe estiver sujeito, então também o próprio Filho se submeterá Àquele que tudo Lhe submeteu, a fim de que Deus seja tudo em todos.

Nesta tarefa que vai realizando no mundo, Deus quis que sejamos seus cooperadores; quer correr o risco da nossa liberdade. Emociona-me profundamente contemplar a figura de Jesus recém-nascido em Belém: um menino indefeso, inerme, incapaz de oferecer resistência...
Deus entrega-Se nas mãos dos homens; aproxima-Se e desce até nós! Jesus Cristo, sendo de condição divina, não reivindica o direito de ser equiparado a Deus, mas despojou-Se a Si mesmo, tomando a condição de servo.
Deus condescende com a nossa liberdade, com a nossa imperfeição, com as nossas misérias.
Consente que os tesouros divinos sejam levados em vasos de barro; que O demos a conhecer misturando as nossas deficiências com a sua força divina.

(cont)