São Josemaria Escrivá
Cristo que passa
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Vamos acabar a nossa
meditação de Quinta-Feira Santa.
Se o Senhor nos ajudou - e
está sempre disposto, desde que lhe abramos o coração - teremos pressa de
corresponder àquilo que é mais importante: amar.
E saberemos difundir a
caridade entre os outros homens, com uma vida de serviço.
Dei-vos o exemplo, insiste
Jesus, falando aos seus discípulos na noite da Ceia, depois de lhes ter lavado
os pés.
Afastemos do coração o
orgulho, a ambição, os desejos de domínio e, à nossa volta e dentro de nós,
reinarão a paz e a alegria, enraizadas no sacrifício pessoal.
Finalmente, um pensamento
filial e amoroso para Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe.
Peço desculpa de contar de
novo uma recordação da minha infância, desta vez relativa a uma imagem que se
difundiu muito na minha terra, quando S. Pio X impulsionou a prática da
comunhão frequente. Representava Maria a adorar a Hóstia Santa.
Hoje, como então e como
sempre, Nossa Senhora ensina-nos a falar e a conviver intimamente com Jesus, a
reconhecê-Lo e a encontrá-Lo nas diversas circunstâncias do dia e, de um modo
especial, nesse instante supremo - o tempo une-se com a eternidade - do Santo
Sacrifício da Missa, em que Jesus, com gesto de sacerdote eterno, atrai a si
todas as coisas, para as colocar, divino afflante Spiritu, por intermédio do
sopro do Espírito Santo, na presença de Deus Pai.
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Esta semana, que o povo
cristão tradicionalmente chama Santa, oferece-nos uma vez mais a possibilidade
de considerar - de reviver - os momentos em que se consuma a vida de Jesus.
Tudo o que as diversas
manifestações de piedade nos trazem à memória nestes dias se encaminha decerto
para a Ressurreição, que é o fundamento da nossa fé, como escreve S. Paulo.
Mas não percorramos este
caminho demasiado depressa; não deixemos cair no esquecimento alguma coisa
muito simples, que por vezes parece escapar-nos: não poderemos participar da
Ressurreição do Senhor se não nos unirmos à sua Paixão e à sua Morte.
Para acompanhar a Cristo
na sua glória no final da Semana Santa, é necessário que penetremos antes no
seu holocausto e que nos sintamos uma só coisa com Ele, morto no Calvário.
A entrega generosa de
Cristo enfrenta-se com o pecado, essa realidade dura de aceitar, mas inegável:
o mysterium iniquitatis, a inexplicável maldade da criatura que se ergue, por
soberba, contra Deus.
A história é tão antiga
como a Humanidade.
Recordemos a queda dos
nossos primeiros pais; depois, toda essa cadeia de depravações que marcam a marcha
dos homens; finalmente, as nossas rebeldias pessoais.
Não é fácil considerar a
perversidade que o pecado representa e compreender tudo o que a Fé nos ensina.
Temos de ter presente que,
mesmo no plano humano, a grandeza da ofensa se mede pela condição do ofendido,
pelo seu valor pessoal, pela sua dignidade social, pelas suas qualidades.
E o homem ofende a Deus: a
criatura renega o seu Criador.
Mas Deus é Amor.
O abismo de malícia, que o
que o pecado encerra, foi vencido por uma Caridade infinita.
Deus não abandona os
homens.
Os desígnios divinos
previram que, para reparar as nossas faltas, para restabelecer a unidade
perdida, não bastavam os sacrifícios da Antiga Lei: tornou-se necessária a
entrega de um homem que fosse Deus.
Podemos imaginar - para nos
aproximarmos de algum modo deste mistério insondável - que a Trindade
Santíssima se reúne em conselho na sua contínua relação íntima de amor imenso
e, como resultado de uma decisão eterna, o Filho Unigénito de Deus-Pai assume a
nossa condição humana, carrega sobre Si as nossas misérias e as nossas dores,
para acabar pregado com cravos num madeiro.
Esse fogo, esse desejo de
cumprir o decreto salvador de Deus-Pai, enche toda a vida de Cristo, desde o
seu nascimento em Belém.
Ao longo dos três anos que
com Ele conviveram, os discípulos ouvem-No repetir incansavelmente que o seu
alimento é fazer a vontade d'Aquele que O enviou, até que, no meio da tarde da
primeira Sexta-Feira Santa, se concluiu a sua imolação: inclinando a cabeça
entregou o espírito.
Com estas palavras
descreve-nos o Apóstolo S. João a morte de Cristo: Jesus, sob o peso da Cruz
com todas as culpas dos homens, morre por causa da força e da vileza dos nossos
pecados.
Meditemos no Senhor,
chagado dos pés à cabeça por amor de nós. Com frase que se aproxima da
realidade, embora não consiga exprimi-la completamente, podemos repetir com um
escritor de há séculos: O corpo de Jesus é um retábulo de dores.
A vista de Cristo feito um
farrapo, transformado num corpo inerte descido da Cruz e confiado a sua Mãe, à
vista desse Jesus destroçado, poder-se-ia concluir que esta cena é a
exteriorização mais clara de uma derrota.
Onde estão as massas que O
seguiram e o Reino cuja vinda anunciava? Contudo, não temos diante dos olhos
uma derrota, mas sim uma vitória: está agora mais perto do que nunca o momento
da Ressurreição, da manifestação da glória que Cristo conquistou com a sua
obediência.
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A morte de Cristo
chama-nos a uma vida cristã plena
Acabamos de reviver o
drama do Calvário, aquilo que me atreveria a chamar a primeira Missa, a
primordial, celebrada por Jesus.
Deus-Pai entrega o seu
Filho à morte. Jesus, o Filho Unigénito, abraça-se ao madeiro, no qual O haviam
de justiçar, e o seu sacrifício é aceite pelo Pai. Como fruto da Cruz, derrama-se
sobre a Humanidade o Espírito Santo.
Na tragédia da Paixão
consuma-se a nossa própria vida e toda a história humana.
A Semana Santa não pode
reduzir-se a uma mera recordação, pois que nela se considera o mistério de
Jesus Cristo, que se prolonga nas nossas almas: o cristão está obrigado a ser
alter Christus, ipse Christus, outro Cristo, o próprio Cristo.
Pelo Baptismo, fomos todos
constituídos sacerdotes da nossa própria existência, para oferecer vítimas
espirituais que sejam agradáveis a Deus por Jesus Cristo, para realizar cada
uma das nossas acções em espírito de obediência à vontade de Deus, perpetuando
assim a missão do Deus-Homem.
Por contraste, esta
realidade leva-nos a repararmos nas nossas desditas, nos nossos erros pessoais.
Tal consideração não nos
deve desanimar, nem colocar na atitude céptica de quem renunciou aos grandes
ideais.
Porque o Senhor
reclama-nos tal como somos, para que participemos da sua vida, para que lutemos
por ser santos.
Santidade!
Quantas vezes pronunciamos
esta palavra como se fosse um som vazio!
Para muitos, ela
representa mesmo um ideal inacessível, um tema da ascética, mas não um fim
concreto, uma realidade viva.
Não pensavam deste modo os
primeiros cristãos, que usavam o nome de santos para se chamarem entre si com
toda a naturalidade e com grande frequência: saúdam-vos todos os santos, saudai
todos os santos em Cristo Jesus.
Situados agora no
Calvário, quando Jesus já morreu e não se manifestou ainda a glória do seu
triunfo, temos uma boa ocasião para examinar os nossos desejos de vida cristã,
de santidade para reagir com um acto de fé perante as nossas debilidades e,
confiando no poder de Deus, fazer o propósito de pôr amor nas coisas do nosso
dia-a-dia.
A experiência do pecado
tem de nos conduzir à dor, a uma decisão mais madura e mais profunda de sermos
fiéis, de nos identificarmos deveras com Cristo, de perseverarmos, custe o que
custar, nessa missão sacerdotal que Ele encomendou a todos os seus discípulos
sem excepção, que nos impele a sermos sal e luz do mundo.
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A consideração da morte de
Cristo traduz-se num convite a situarmo-nos, com absoluta sinceridade, perante
o nosso trabalho ordinário, a tomarmos a sério a Fé que professamos.
A Semana Santa, portanto,
não pode ser um parêntesis sagrado no contexto de um viver movido só por
interesses humanos: tem de ser uma ocasião para penetrarmos na profundidade do
Amor de Deus, para podermos assim, com a palavra e com as obras, mostrá-lo aos
outros homens.
Mas o Senhor impõe
condições.
Há uma declaração sua, que
S. Lucas nos conserva, da qual não se pode prescindir: Se alguém quer vir a Mim
e não aborrece o pai e a mãe, a mulher e os filhos, os irmãos e as irmãs e até
a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. São palavras duras.
Decerto nem o odiar nem o
aborrecer exprimem bem o pensamento original de Jesus.
De qualquer maneira, as
palavras do Senhor foram fortes, pois não se reduzem a um amor menor, como por
vezes se interpreta temperadamente, para suavizar a frase.
É tremenda essa expressão
tão taxativa, não porque implique uma atitude negativa ou impiedosa, pois o
Jesus que fala agora é o mesmo que manda amar os outros como a própria alma e
entrega a sua vida pelos homens: aquela locução indica simplesmente que perante
Deus não cabem meias-tintas.
Poderiam traduzir-se as
palavras de Cristo por amar mais, amar melhor, ou então por não amar com um
amor egoísta, nem tão-pouco com um amor de vistas curtas: devemos amar com o
Amor de Deus. Disto é que se trata!
Reparemos na última das
exigências de Jesus: et animam suam, a vida, a própria alma é o que o Senhor
pede.
Se somos fátuos, se nos
preocupamos apenas com a nossa comodidade pessoal, se centramos a existência
dos outros e até o próprio mundo em nós mesmos, não temos o direito de nos
chamarmos cristãos, de nos considerarmos discípulos de Cristo.
A entrega tem de se fazer
com obras e com verdade, não apenas com a boca.
O amor a Deus convida-nos
a levarmos a cruz a pulso, a sentir também sobre nós o peso da Humanidade
inteira e a cumprirmos, nas circunstâncias próprias do estado e do trabalho de
cada um, os desígnios, claros e amorosos ao mesmo tempo, da vontade do Pai. Na
passagem que comentamos, Jesus prossegue: Aquele que não carrega com a sua cruz
para Me seguir também não pode ser meu discípulo.
Aceitemos sem medo a
vontade de Deus, formulemos sem vacilações o propósito de edificar toda a nossa
vida de acordo com aquilo que nos ensina e nos exige a nossa fé.
Estejamos seguros de que
encontraremos luta, sofrimento e dor; mas, se possuirmos de verdade a Fé, nunca
nos sentiremos infelizes: também com sofrimentos, e até mesmo com calúnias,
seremos felizes, com uma felicidade que nos impelirá a amar os outros para os
fazer participar da nossa alegria sobrenatural.
(cont)