São Josemaria Escrivá
Cristo que passa
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Luta incessante
A guerra do cristão é
incessante, porque na vida interior dá-se um perpétuo começar e recomeçar, que
impede que, com orgulho, nos pensemos já perfeitos.
É inevitável que haja
muitas dificuldades no nosso caminho; se não encontrássemos obstáculos, não
seríamos criaturas de carne e osso. Havemos de ter sempre paixões que nos puxem
para baixo e sempre precisaremos de nos defender desses delírios mais ou menos
veementes.
Sentir no corpo e na alma
o aguilhão do orgulho, da sensualidade, da inveja, da preguiça, do desejo de
subjugar os outros, não deveria ser uma descoberta.
É um mal antigo,
sistematicamente confirmado pela nossa experiência pessoal.
É o ponto de partida e o
ambiente habitual para ganhar a nossa corrida para a casa do Pai, neste
desporto tão íntimo.
Por isso ensina S. Paulo:
quanto a mim corro, não como à aventura; combato, não como quem açouta o ar;
mas castigo o meu corpo, e reduzo-o à escravidão, para que não suceda que,
tendo pregado aos outros, eu mesmo venha a ser réprobo.
Para começar ou sustentar
esta contenda, o cristão não deve esperar manifestações exteriores ou
sentimentos favoráveis.
A vida interior não é uma
questão de sentimentos, mas de graça divina e de vontade, de amor.
Todos os discípulos foram
capazes de seguir Cristo no seu dia de triunfo em Jerusalém, mas quase todos O
abandonaram à hora do opróbrio da Cruz.
Para amar de verdade é
preciso ser forte, leal, com o coração firmemente engastado na fé, na esperança
e na caridade.
Só as pessoas levianas
mudam caprichosamente o objecto dos seus amores, que não são amores, mas
compensações egoístas.
Quando há amor, há
integridade: capacidade de entrega, de sacrifício, de renúncia.
E no meio da entrega, do
sacrifício e da renúncia, juntamente com o suplício da contradição, a
felicidade e a alegria, uma alegria que nada nem ninguém nos poderá tirar.
Neste torneio de amor não
devem entristecer-nos as quedas, nem sequer as quedas graves, se recorremos a Deus
no Sacramento da Penitência, com dor e com um bom propósito.
O cristão não é um maníaco
coleccionador de folhas imaculadas de bons serviços.
Jesus Cristo Nosso Senhor
comove-se tanto com a inocência e a fidelidade de João como, depois da queda de
Pedro, se enternece com o seu arrependimento.
Jesus compreende a nossa
debilidade e atrai-nos a Si como em plano inclinado, desejando que saibamos
insistir no esforço de subir cada dia um pouco.
Procura-nos, da mesma
forma que procurou os discípulos de Emaús, ou seja, saindo-lhes ao encontro;
como procurou Tomé e lhe mostrou e lhe fez tocar com os seus dedos as chagas
abertas nas mãos e no peito. Jesus Cristo sempre está à espera que voltemos
para Ele, precisamente porque conhece a nossa fraqueza.
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A luta interior
Suporta os trabalhos como
um bom soldado de Cristo, diz-nos S. Paulo.
A vida do cristão é
milícia, guerra, formosíssima guerra de paz, que em nada coincide com as
empresas bélicas humanas, porque estas se inspiram na divisão e, muitas vezes,
nos ódios, enquanto a guerra dos filhos de Deus contra o seu próprio egoísmo,
se baseia na unidade e no amor.
Porque, embora vivendo na
carne, não militamos segundo a carne. Porque as armas com que combatemos não
são carnais, mas fortaleza de Deus para destruir fortalezas, desbaratando com
elas os projectos humanos e toda a altivez que se levantam contra a ciência de
Deus.
É a escaramuça sem tréguas
contra o orgulho, contra a prepotência que nos dispõe a fazer o mal, contra os
juízos cheios de soberba.
Neste Domingo de Ramos,
quando Nosso Senhor começa a semana decisiva para a nossa salvação, deixemo-nos
de considerações superficiais e vamos ao que é central, ao que verdadeiramente
é importante.
Pensai no seguinte: aquilo
que devemos pretender é ir para o Céu.
Se não, nada vale a pena.
Para ir para o Céu é
indispensável a fidelidade à doutrina de Cristo. Para ser fiel é indispensável
porfiar com constância no nosso combate contra os obstáculos que se opõem à
nossa eterna felicidade.
Sei que, imediatamente
depois de falar em combater, nos surge pela frente a nossa debilidade e
prevemos as quedas, os erros.
Deus conta com isso.
É inevitável que, ao
caminharmos, levantemos pó. Somos criaturas e estamos repletos de defeitos.
Eu diria até que tem de os
haver sempre, pois são a sombra que faz com que se destaquem mais, por
contraste, na nossa alma, a graça de Deus e o esforço por correspondermos ao
favor divino.
E esse claro-escuro
tornar-nos-á humanos, humildes, compreensivos, generosos.
Não nos enganemos: na
nossa vida, se contamos com brio e com vitórias, devemos também contar com
quedas e derrotas.
Essa foi sempre a
peregrinação terrena do cristão, incluindo a daqueles que veneramos nos
altares.
Recordais-vos de Pedro, de
Agostinho, de Francisco?
Nunca me agradaram as
biografias dos santos em que, com ingenuidade, mas também com falta de
doutrina, nos apresentam as façanhas desses homens, como se estivessem
confirmados na graça desde o seio materno.
Não.
As verdadeiras biografias
dos heróis cristãos são como as nossas vidas: lutavam e ganhavam, lutavam e
perdiam.
E então, contritos,
voltavam à luta.
Não nos cause estranheza o
facto de sermos derrotados com relativa frequência, habitualmente ou até talvez
sempre, em matérias de pouca importância, que nos ferem como se tivessem muita.
Se há amor de Deus, se há
humildade, se há perseverança e tenacidade na nossa milícia, essas derrotas não
terão demasiada importância, porque virão as vitórias a seu tempo, que serão
glórias aos olhos de Deus.
Não existem os fracassos,
se agimos com rectidão de intenção e queremos cumprir a vontade de Deus,
contando sempre com a sua graça e com o nosso nada.
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Mas ronda à nossa volta um
potente inimigo, que se opõe ao nosso desejo de encarnar dum modo acabado a
doutrina de Cristo: o orgulho que cresce quando não procuramos descobrir,
depois dos fracassos e das derrotas, a mão benfeitora e misericordiosa do
Senhor. Então a alma enche-se de penumbra - de triste obscuridade - crendo-se
perdida.
E a imaginação inventa
obstáculos que não são reais, que desapareceriam se os encarássemos com um
pouco de humildade.
Com o orgulho e a
imaginação, a alma mete-se por vezes em tortuosos calvários; mas nesses
calvários não está Cristo, porque onde está o Senhor goza-se de paz e de
alegria, mesmo que a alma esteja em carne viva e rodeada de trevas.
Outro inimigo hipócrita da
nossa santificarão: pensar que esta batalha interior tem de dirigir-se contra
obstáculos extraordinários, contra dragões que respiram fogo.
É outra manifestação de
orgulho.
Queremos lutar, mas
estrondosamente, com clamores de trombetas e tremular de estandartes.
Temos de nos convencer de
que o maior inimigo da pedra não é o picão ou o machado, nem o golpe de
qualquer outro instrumento, por mais contundente que seja: é essa água miúda,
que se mete, gota a gota, entre as gretas da fraga, até arruinar a sua
estrutura.
O perigo mais forte para o
cristão é desprezar a luta nessas escaramuças, que penetram pouco a pouco na
alma, até a tornarem branda, quebradiça, indiferente e insensível às vozes de
Deus.
Oiçamos o Senhor, que nos
diz: quem é fiel no pouco, também é fiel no muito; e quem é injusto no pouco
também é injusto no muito.
Isto é o mesmo que
recordar-nos: luta a cada instante nesses pormenores aparentemente pequenos,
mas grandes aos meus olhos; vive com pontualidade o cumprimento do dever; sorri
a quem precise, mesmo que tu tenhas a alma dorida; dedica, sem regateares, o
tempo necessário à oração; acode a ajudar quem te procura; pratica a justiça,
ampliando-a com a graça da caridade.
São estas e outras
semelhantes as moções que cada dia sentiremos dentro de nós, como um aviso
silencioso que nos leva a treinar-nos neste desporto sobrenatural de nos
vencermos a nós mesmos.
Que a luz de Deus nos
ilumine, para compreendermos as suas advertências; que nos ajude a lutar, que
esteja ao nosso lado na vitória; que não nos abandone na hora da queda, porque
assim nos encontraremos sempre em condições de nos levantarmos e de
continuarmos a combater.
Não podemos parar.
O Senhor pede-nos uma luta
cada vez mais rápida, cada vez mais profunda, cada vez mais ampla.
Somos obrigados a
superar-nos, porque nesta competição a única meta é a chegada à glória do Céu.
E se não chegássemos ao
Céu, nada teria valido a pena.
(cont)