10/07/2018

Tratado das virtudes


Questão 65: Da conexão das virtudes.

Art. 2 — Se as virtudes morais podem existir sem a caridade.

O segundo discute-se assim. — Parece que as virtudes morais podem existir sem a caridade.

1. — Pois, foi dito que todas as virtudes, excepto a caridade, podem ser comuns aos bons e aos maus. Ora, a caridade só pode existir nos bons, como no mesmo livro se diz [2]. Logo, as outras virtudes podem ser possuídas sem a caridade.

2. Demais. — As virtudes morais podem ser adquiridas pelos actos humanos, como se disse [3]. Ora, a caridade só pode ser possuída por infusão, conforme a Escritura (Rm 5, 5): a caridade de Deus está derramada em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi dado. Logo, as outras virtudes podem ser possuídas sem caridade.

3. Demais. — As virtudes morais, enquanto dependentes da prudência, são conexas entre si. Ora, a caridade não depende da prudência, e antes a excede, conforme a Escritura (Ef 3, 19): a caridade de Cristo excede a ciência. Logo, as virtudes morais não são conexas com a caridade, e podem existir sem ela.

Mas, em contrário, diz a Escritura (I Jo 3, 14): Aquele que não ama permanece na morte. Ora, as virtudes aperfeiçoam a vida espiritual, pois por elas é que vivemos rectamente, como diz Agostinho [4]. Logo, não podem existir sem o amor da caridade.


Como já dissemos [5], as virtudes morais, enquanto operativas do bem, ordenadamente ao fim que não excede a faculdade natural do homem, podem ser adquiridas por obras humanas. E assim adquiridas, podem existir sem a caridade, como existiram em muitos gentios. — Mas, enquanto operativas do bem, ordenadamente ao fim último sobrenatural, então realizam a essência da virtude perfeita e verdadeiramente, e não podem ser adquiridas pelos actos humanos, mas são infundidas por Deus. Ora, tais virtudes morais não podem existir sem a caridade. Pois, como já dissemos [6], as virtudes morais não podem existir sem a prudência, e esta não pode existir sem aquelas, que nos levam a proceder bem em relação a certos fins, dos quais procede a razão da prudência. Ora, pela sua razão recta, a prudência exige, que o homem proceda bem em relação ao último fim — a que o leva à caridade — muito mais que em relação aos outros fins, a que o levam ás virtudes morais; assim como, na ordem especulativa, a razão recta implica, principalmente, o primeiro princípio indemonstrável que os contraditórios não podem ser simultaneamente verdadeiros.

Do sobredito consta portanto, com clareza, que só as virtudes infusas são perfeitas e se chamam virtudes, absolutamente falando. Ao passo que as adquiridas — que são as outras — o são parcial e não absolutamente, porque ordenam bem o homem para um fim último, não absoluta, mas genericamente. E por isso, sobre o dito pela Escritura (Rm 14, 23)Tudo o que não é segundo a fé é pecado — diz a Glosa de Agostinho: Onde falta o conhecimento da verdade, a virtude é falsa, mesmo acompanhada de óptimos costumes.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — No lugar aduzido as virtudes consideram-se na sua noção imperfeita. Do contrário, tomada a virtude moral em a noção perfeita, torna bom quem o possui e por consequência, não pode existir nos maus.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A objecção colhe relativamente às virtudes morais adquiridas.

RESPOSTA À TERCEIRA. 
— Embora a caridade exceda a ciência e a prudência, contudo esta depende daquela, como já dissemos, e, por consequência, também dela dependem todas as virtudes morais infusas.

(Revisão da versão portuguesa por AMA)



[1] (Iª·lIae., q. 23, a. 7 ; III Sent., dist. XVII, q. 2, a. 4, qª 3, ad 2; dist. XXXVI, q. 2; de Virtut., q. 5, a. 2).
[2] Prosperus, lib. Sent. (cap. VII).
[3] II Ethic., lect. I.
[4] II De lib. Arbit. (cap. XVIII et XIX).
[5] Q. 63, a. 2.
[6] Q. 65, a. 1; q. 58, a. 4, 5.

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