Amigos
de Deus
101
Ouvimos falar de soberba e talvez pensemos
numa atitude despótica e avassaladora, com grande barulho de vozes que aclamam
o triunfador que passa, como um imperador romano, debaixo dos altos arcos, inclinando
a cabeça, pois teme que a sua fronte gloriosa toque o alvo mármore...
Sejamos realistas.
Este
tipo de soberba só tem lugar numa fantasia louca.
Temos
de lutar contra outras formas mais subtis, mais frequentes: o orgulho de
preferir a própria excelência à do próximo; a vaidade nas conversas, nos
pensamentos e nos gestos; uma susceptibilidade quase doentia, que se sente
ofendida com palavras ou acções que não são de forma alguma um agravo...
Tudo
isto, sim, pode ser, é uma tentação corrente.
O
homem considera-se a si mesmo como o sol e o centro dos que estão ao seu redor.
Tudo
deve girar em torno dele.
Por
isso, não raramente acontece que ele recorre, com o seu afã mórbido, à própria
simulação da dor, da tristeza e da doença: para que os outros se preocupem com
ele e o mimem.
A maior parte dos conflitos que se
apresentam na vida interior de muitas pessoas, fabrica-os a imaginação: é que
disseram isto ou aquilo, são capazes de pensar aqueloutro, não me consideram...
E
essa pobre alma sofre, graças à sua triste fatuidade, com suspeitas que não são
reais.
Nessa
aventura desgraçada, a sua amargura é contínua e procura desassossegar os
outros, porque não sabe ser humilde, porque não aprendeu a esquecer-se de si
mesmo para se entregar, generosamente, ao serviço dos outros por amor de Deus.
102
Um
burrico por trono
Recordemos de novo o Evangelho e olhemos o
nosso modelo, Cristo Jesus.
Tiago e João, por intermédio de sua mãe,
pediram a Cristo para se sentarem um à sua direita e outro à sua esquerda.
Os
outros discípulos indignam-se.
E
o que é que responde nosso Senhor?
Quem quiser ser o maior,
há-de ser vosso criado; e quem de entre vós quiser ser o primeiro, será servo
de todos.
Porque também o Filho do
homem não veio para ser servido, mas para servir e para dar a Sua vida para
redenção de muitos.
Noutra ocasião, a caminho da Cafarnaúm,
Jesus ia talvez - como noutras jornadas - à frente de todos.
E
quando já estavam em casa, Jesus perguntou-lhes: de que vínheis vós discutindo pelo caminho?
Eles,
porém, calaram-se; porque no caminho tinham discutido entre si - uma vez mais -
qual deles era o maior.
Então,
sentando-se, chamou os doze e disse-lhes: se
alguém quer ser o primeiro, faça-se o último de todos e o servo de todos.
E, tomando um menino,
pô-lo no meio deles e, depois de o abraçar, disse-lhes: Todo o que receber um
destes meninos em meu nome, a mim recebe, e todo o que me receber a mim, não só
me recebe a mim, mas também àquele que me enviou.
Não vos encanta este modo de proceder de
Jesus?
Ensina-lhes
a doutrina e, para que a entendam, dá-lhes um exemplo vivo.
Chama
um menino, daqueles que estariam a correr pela casa, e estreita-o contra o seu
peito.
Este
silêncio eloquente de Nosso Senhor!
Já
disse tudo: Ele ama os que se fazem como meninos.
Em
seguida, acrescenta que o resultado desta simplicidade, desta humildade de
espírito é poder abraçá-lo a Ele e ao Pai que está nos Céus.
103
Quando se aproxima o momento da sua Paixão
e Jesus quer mostrar de um modo gráfico a sua realeza, entra triunfalmente em
Jerusalém, montado num burrico!
Estava escrito que o Messias havia de ser
um rei de humildade: Dizei à filha de Sião: Eis
que o teu Rei vem a ti manso, montado sobre uma jumenta e o jumentinho, filho
da que leva o jugo.
Agora, na Última Ceia, Cristo preparou tudo
para se despedir dos seus discípulos, enquanto estes se envolviam pela
centésima vez na disputa sobre quem seria o maior desse grupo escolhido.
Jesus levantou-se da mesa,
depôs o seu manto e, pegando numa toalha, cingiu-se.
Depois lançou água numa
bacia e começou a lavar os pés dos discípulos e a limpar-lhos com a toalha com
que estava cingido.
Pregou de novo com o exemplo, com obras.
Diante dos discípulos, que discutiam por
motivos de soberba e de vanglória, Jesus inclina-se e cumpre gostosamente o
trabalho próprio de um servo.
Depois, quando volta para a mesa, comenta:
Compreendeis
o que vos fiz? Vós chamais-me Mestre e Senhor e dizeis bem, porque o sou. Se
eu, pois, que sou o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, deveis também
lavar-vos os pés uns aos outros.
A mim comove-me esta delicadeza do nosso
Cristo, porque não afirma: se eu faço isto, quanto mais deveis fazer vós!
Coloca-se
ao mesmo nível, não coage: fustiga amorosamente a falta de generosidade
daqueles homens.
Como aos primeiros doze, o Senhor também
nos pode insinuar a nós, como de facto nos insinua continuamente: exemplum dedi vobis, dei-vos exemplo de
humildade.
Converti-me
em servo, para que vós saibais, com coração manso e humilde, servir todos os
homens.
104
Frutos
da humildade
Quanto maior és, mais te deves humilhar em
todas as coisas, e acharás graça diante de Deus.
Se
formos humildes, Deus não nos abandonará nunca.
Ele
humilha a altivez do soberbo, mas salva os humildes. Ele liberta o inocente,
que pela pureza das suas mãos será resgatado.
A
infinita misericórdia do Senhor não tarda em vir socorrer quem o chama com
humildade.
E
então actua como quem é: como Deus omnipotente.
Ainda
que haja muitos perigos, ainda que a alma pareça acossada, ainda que se
encontre cercada por todos os lados pelos inimigos da sua salvação, não
perecerá.
E
isto não é apenas tradição doutros tempos, pois continua a acontecer agora.
105
Ao ler a epístola de hoje, via Daniel
metido entre aqueles leões famintos e, sem pessimismo - não posso dizer que
qualquer tempo passado foi melhor, porque todos os tempos foram bons e maus -
considerava que também nos momentos actuais andam muitos leões à solta e que
nós temos de viver neste ambiente.
Leões
que procuram a quem possam devorar: tamquam
leo rugiens circuit quaerens quem devoret.
Como evitaremos essas feras?
Talvez não nos aconteça o mesmo que a
Daniel.
Eu
não sou milagreiro, mas amo a grandiosidade de Deus e entendo que lhe teria
sido mais fácil aplacar a fome do profeta ou pôr-lhe algum alimento na sua
frente.
Mas
não o fez.
Preferiu
que Habacuc, outro profeta, fosse transportado milagrosamente da Judeia para
lhe levar a comida.
Não
se importou de fazer um grande prodígio, porque Daniel não se encontrava
naquele poço por mero acaso, mas por ser servidor de Deus e destruidor de
ídolos, devido a uma injustiça dos sequazes do diabo.
Nós,
sem manifestações espectaculares, com a normalidade da vida cristã corrente,
com uma sementeira de paz e de alegria, temos também de destruir muitos ídolos:
o da incompreensão, o da injustiça, o da ignorância, o da pretensa suficiência
humana que volta com arrogância as costas a Deus.
Não vos assusteis nem temais nada, mesmo
que as circunstâncias em que trabalheis sejam tremendas, piores que as de
Daniel no fosso com aqueles animais vorazes.
As
mãos de Deus continuam a ser igualmente poderosas e, se fosse necessário,
fariam maravilhas.
Sede
fiéis!
Com
uma fidelidade amorosa, consciente, alegre, à doutrina de Cristo, persuadidos
de que os anos de agora não são piores do que os dos outros séculos e de que o
Senhor é o mesmo de sempre.
Conheci um sacerdote já ancião, que
afirmava, sorridente, de si mesmo: eu estou sempre tranquilo, tranquilo.
E
assim temos de nos encontrar sempre nós, metidos no mundo, rodeados de leões
famintos, mas sem perder a paz: tranquilos!
Com
amor, com fé, com esperança, sem esquecer jamais que, se for conveniente, o
Senhor multiplicará os milagres.
(cont)
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