15/02/2018

Leitura espiritual

RESUMOS DA FÉ CRISTÃ

TEMA 7 A elevação sobrenatural e o pecado original

2. O pecado original

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Na base da posição luterana e também de algumas interpretações recentes de Gn 3, está em jogo uma adequada compreensão da relação entre 1) natureza e história, 2) o plano psicológico-existencial e o plano ontológico, 3) o individual e o colectivo.

1 Mesmo que haja alguns elementos de carácter mítico no Génesis (entendendo o conceito de “mito” no seu melhor sentido, ou seja, como palavra-narração que dá origem e que, portanto, está no fundamento da história posterior), seria um erro interpretar o relato da queda como uma explicação simbólica da original condição pecadora humana.
Esta interpretação converte em natureza um facto histórico, mitificando-o e tornando-o inevitável: paradoxalmente, o sentido de culpa que leva a reconhecer-se “naturalmente” pecador, conduziria a mitigar ou eliminar a responsabilidade pessoal no pecado, pois o homem não poderia evitar aquilo para que tende espontaneamente.
O correcto, o justo, é afirmar que a condição pecadora pertence à historicidade do homem e não à sua natureza originária.

2 Ao terem ficado depois do baptismo algumas sequelas do pecado, o cristão pode experimentar com violência a tendência para o mal, sentindo-se profundamente pecador, como ocorre na vida dos santos. No entanto, esta perspectiva existencial não é a única, nem sequer a mais fundamental, pois o baptismo apagou realmente o pecado original e fez-nos de facto filhos de Deus [i].
 Ontologicamente, o cristão em graça é justo diante de Deus. Lutero radicalizou a perspectiva existencial, entendendo toda a realidade a partir dela, que ficava assim marcada ontologicamente pelo pecado.

3 O terceiro ponto conduz à questão da transmissão do pecado original, «um mistério que não podemos compreender plenamente» [ii].
A Bíblia ensina que os nossos primeiros pais transmitiram o pecado a toda a humanidade.
Os capítulos seguintes do Génesis [iii] narram a progressiva corrupção do género humano; estabelecendo um paralelismo entre Adão e Cristo, São Paulo afirma: «como pela desobediência de um só homem todos se tornaram pecadores, também pela obediência de um só [Cristo] todos virão a ser justos» [iv].
Este paralelismo ajuda a entender correctamente a interpretação que costuma dar-se do termo adamáh como de um singular colectivo: como Cristo é um só e cabeça da Igreja, assim Adão é um só e cabeça da humanidade [v].

«Em virtude desta “unidade do género humano”, todos os homens estão implicados no pecado de Adão, do mesmo modo que todos estão implicados na justificação de Cristo» [vi].
A Igreja entende de modo analógico o pecado original dos nossos primeiros pais e o pecado herdado pela humanidade. «Adão e Eva cometem um pecado pessoal [...] É um pecado que vai ser transmitido a toda a humanidade por propagação, quer dizer, pela transmissão duma natureza humana privada da santidade e da justiça originais.
E é por isso que o pecado original se chama “pecado” por analogia: é um pecado “contraído” e não “cometido”; um estado e não um acto» [vii].
Assim, «embora próprio de cada um, o pecado original não tem, em qualquer descendente de Adão, carácter de falta pessoal» [viii], [ix].

Para algumas pessoas é difícil aceitar a ideia de um pecado herdado [x], sobretudo se se tiver uma visão individualista da pessoa e da liberdade.

O que é que eu tive a ver com o pecado de Adão?
Porque é que hei-de pagar as consequências do pecado de outros?
Estas perguntas reflectem uma ausência do sentido da solidariedade real que existe entre todos os homens enquanto criados por Deus.
Paradoxalmente, esta ausência pode entender-se como uma manifestação do pecado transmitido a cada um.
Quer dizer, o pecado original ofusca a compreensão daquela profunda fraternidade do género humano que torna possível a sua transmissão.
Perante as lamentáveis consequências do pecado e da sua difusão universal pode perguntar-se: «Mas, porque é que Deus não impediu o primeiro homem de pecar?
São Leão Magno responde: “A graça inefável de Cristo deu-nos bens superiores aos que a inveja do demónio nos tinha tirado” [xi].
E São Tomás de Aquino: “Nada se opõe a que a natureza humana tenha sido destinada a um fim mais elevado depois do pecado.

Efectivamente, Deus permite que os males aconteçam para deles retirar um bem maior.
Daí as palavras de São Paulo: ‘onde abundou o pecado, superabundou a graça’” [xii].
Por isso, na bênção do círio pascal canta-se: ‘Ó feliz culpa que mereceu tal e tão grande Redentor!’” [xiii]» [xiv].

3. Algumas consequências práticas

A principal consequência prática da doutrina da elevação e do pecado original é o realismo que guia a vida do cristão, consciente, quer da grandeza do facto de ser filho de Deus, quer da miséria da sua condição de pecador.

Este realismo:
a) Previne tanto um optimismo ingénuo como um pessimismo desesperançado e «proporciona uma visão de lúcido discernimento sobre a situação do homem e da sua acção neste mundo [...].
Ignorar que o homem tem uma natureza ferida, inclinada para o mal, dá lugar a graves erros no domínio da educação, da política, da acção social e dos costumes» [xv].

b) Dá uma serena confiança em Deus, Criador e Pai misericordioso, que não abandona a sua criatura, perdoa sempre e conduz tudo para o bem, mesmo no meio de adversidades.
«Repete: “omnia in bonum!”, tudo o que sucede, “tudo o que me sucede”, é para meu bem...
Portanto – esta é a conclusão acertada: aceita isso, que te parece tão custoso, como uma doce realidade» [xvi].

c) Suscita uma atitude de profunda humildade, que leva a reconhecer, sem estranheza, os próprios pecados e a ter dor deles por serem ofensa a Deus e não tanto pelo que supõem de defeito pessoal.

d) Ajuda a distinguir o que é próprio da natureza humana enquanto tal, do que é consequência da ferida do pecado na natureza humana. Depois do pecado, nem tudo o que se experimenta como espontâneo é bom.

A vida humana tem, pois, o carácter de um combate: é preciso lutar por comportar-se de modo humano e cristão ([xvii]).
«Toda a tradição da Igreja falou dos cristãos como de milites Christi, soldados de Cristo. Soldados que levam a serenidade aos outros, enquanto combatem continuamente contra as más inclinações pessoais» [xviii].

O cristão que se esforça por evitar o pecado não perde nada do que torna a vida boa e bela. Diante da ideia de ser necessário que o homem faça o mal para experimentar a sua liberdade autónoma, pois no fundo uma vida sem pecado seria aborrecida, levanta-se a figura de Maria, concebida imaculada, que mostra que uma vida completamente entregue a Deus, longe de produzir tédio, converte-se numa aventura cheia de luz e de infinitas surpresas [xix].

Santiago Sanz

Bibliografia básica:
Catecismo da Igreja Católica, 374-421. Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, 72-78. João Paulo II, Creo en Dios Padre. Catequesis sobre el Credo (I), Palabra, Madrid 1996, 219 seg. DS, n. 222-231; 370-395; 1510-1516; 4313. Leituras recomendadas João Paulo II, Memória e Identidad e, Bertrand Editora, Lisboa 2005. Bento XVI, Homilia, 8-XII-2005. Joseph Ratzinger, Creación y pecado, Eunsa, Pamplona 1992.

Notas:





[i] cf. Catecismo, 405
[ii] Catecismo, 404
[iii] cf. Gn 4-11; cf. Catecismo, 401
[iv] Rm 5,19
[v] Esta é a principal razão de que a Igreja tenha sempre lido o relato da queda numa óptica de monogenismo (proveniência do género humano a partir de um só casal). A hipótese contrária, o poligenismo, pareceu impor-se como dado científico (e inclusive exegético) durante uns anos, mas actualmente, a nível científico, considera-se mais plausível a descendência biológica de um só casal (monofiletismo). Do ponto de vista da fé, o poligenismo é problemático, pois não se vê como possa conciliar-se com a Revelação sobre o pecado original (cf. Pio XII, Enc. Humani Generis, DS 3897), embora se trate de una questão sobre a qual ainda cabe investigar e reflectir.
[vi] Catecismo, 404
[vii] Catecismo, 404
[viii] Catecismo, 405
[ix] Neste sentido, distinguiu-se tradicionalmente entre o pecado original originante (o pecado pessoal cometido pelos nossos primeiros pais) e o pecado original originado (o estado de pecado em que nasceram os seus descendentes).
[x] Cf. João Paulo II, Audiência geral, 24-IX-1986, 1.
[xi] serm . 73,4
[xii] Rm 5,20
[xiii] Summa Theologiae, III, 1, 3, ad 3
[xiv] Catecismo, 412
[xv] Catecismo, 407
[xvi] São Josemaria, Sulco, 127; cf. Rm 8,28.
[xvii] cf. Catecismo, 409
[xviii] São Josemaria, Cristo que Passa, 74.
[xix] Cf. Bento XVI, Homilia, 8-XII-2005.

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