TEMA
7 A elevação sobrenatural e o pecado original
2.
O pecado original
…/2
Na base da posição luterana
e também de algumas interpretações recentes de Gn 3, está em jogo uma adequada
compreensão da relação entre 1) natureza e história, 2) o plano
psicológico-existencial e o plano ontológico, 3) o individual e o colectivo.
1 Mesmo que haja alguns
elementos de carácter mítico no Génesis (entendendo o conceito de “mito” no seu
melhor sentido, ou seja, como palavra-narração que dá origem e que, portanto,
está no fundamento da história posterior), seria um erro interpretar o relato
da queda como uma explicação simbólica da original condição pecadora humana.
Esta interpretação converte
em natureza um facto histórico, mitificando-o e tornando-o inevitável:
paradoxalmente, o sentido de culpa que leva a reconhecer-se “naturalmente”
pecador, conduziria a mitigar ou eliminar a responsabilidade pessoal no pecado,
pois o homem não poderia evitar aquilo para que tende espontaneamente.
O correcto, o justo, é
afirmar que a condição pecadora pertence à historicidade do homem e não à sua
natureza originária.
2 Ao terem ficado depois do
baptismo algumas sequelas do pecado, o cristão pode experimentar com violência
a tendência para o mal, sentindo-se profundamente pecador, como ocorre na vida
dos santos. No entanto, esta perspectiva existencial não é a única, nem sequer
a mais fundamental, pois o baptismo apagou realmente o pecado original e
fez-nos de facto filhos de Deus [i].
Ontologicamente, o cristão em graça é justo
diante de Deus. Lutero radicalizou a perspectiva existencial, entendendo toda a
realidade a partir dela, que ficava assim marcada ontologicamente pelo pecado.
3 O terceiro ponto conduz à
questão da transmissão do pecado original, «um mistério que não podemos
compreender plenamente» [ii].
A Bíblia ensina que os
nossos primeiros pais transmitiram o pecado a toda a humanidade.
Os capítulos seguintes do
Génesis [iii] narram
a progressiva corrupção do género humano; estabelecendo um paralelismo entre
Adão e Cristo, São Paulo afirma: «como pela desobediência de um só homem todos
se tornaram pecadores, também pela obediência de um só [Cristo] todos virão a
ser justos» [iv].
Este paralelismo ajuda a
entender correctamente a interpretação que costuma dar-se do termo adamáh como de um singular colectivo:
como Cristo é um só e cabeça da Igreja, assim Adão é um só e cabeça da
humanidade [v].
«Em virtude desta “unidade
do género humano”, todos os homens estão implicados no pecado de Adão, do mesmo
modo que todos estão implicados na justificação de Cristo» [vi].
A Igreja entende de modo
analógico o pecado original dos nossos primeiros pais e o pecado herdado pela
humanidade. «Adão e Eva cometem um pecado pessoal [...] É um pecado que vai ser
transmitido a toda a humanidade por propagação, quer dizer, pela transmissão
duma natureza humana privada da santidade e da justiça originais.
E é por isso que o pecado
original se chama “pecado” por analogia: é um pecado “contraído” e não
“cometido”; um estado e não um acto» [vii].
Assim, «embora próprio de
cada um, o pecado original não tem, em qualquer descendente de Adão, carácter
de falta pessoal» [viii], [ix].
Para algumas pessoas é
difícil aceitar a ideia de um pecado herdado [x],
sobretudo se se tiver uma visão individualista da pessoa e da liberdade.
O que é que eu tive a ver
com o pecado de Adão?
Porque é que hei-de pagar as
consequências do pecado de outros?
Estas perguntas reflectem
uma ausência do sentido da solidariedade real que existe entre todos os homens
enquanto criados por Deus.
Paradoxalmente, esta
ausência pode entender-se como uma manifestação do pecado transmitido a cada
um.
Quer dizer, o pecado
original ofusca a compreensão daquela profunda fraternidade do género humano
que torna possível a sua transmissão.
Perante as lamentáveis
consequências do pecado e da sua difusão universal pode perguntar-se: «Mas,
porque é que Deus não impediu o primeiro homem de pecar?
São Leão Magno responde: “A
graça inefável de Cristo deu-nos bens superiores aos que a inveja do demónio
nos tinha tirado” [xi].
E São Tomás de Aquino: “Nada
se opõe a que a natureza humana tenha sido destinada a um fim mais elevado
depois do pecado.
Efectivamente, Deus permite
que os males aconteçam para deles retirar um bem maior.
Por isso, na bênção do círio
pascal canta-se: ‘Ó feliz culpa que mereceu tal e tão grande Redentor!’” [xiii]» [xiv].
3.
Algumas consequências práticas
A principal consequência
prática da doutrina da elevação e do pecado original é o realismo que guia a
vida do cristão, consciente, quer da grandeza do facto de ser filho de Deus,
quer da miséria da sua condição de pecador.
Este realismo:
a) Previne tanto um
optimismo ingénuo como um pessimismo desesperançado e «proporciona uma visão de
lúcido discernimento sobre a situação do homem e da sua acção neste mundo
[...].
Ignorar que o homem tem uma
natureza ferida, inclinada para o mal, dá lugar a graves erros no domínio da
educação, da política, da acção social e dos costumes» [xv].
b) Dá uma serena confiança
em Deus, Criador e Pai misericordioso, que não abandona a sua criatura, perdoa
sempre e conduz tudo para o bem, mesmo no meio de adversidades.
«Repete: “omnia in bonum!”, tudo o que sucede,
“tudo o que me sucede”, é para meu bem...
Portanto – esta é a
conclusão acertada: aceita isso, que te parece tão custoso, como uma doce
realidade» [xvi].
c) Suscita uma atitude de
profunda humildade, que leva a reconhecer, sem estranheza, os próprios pecados
e a ter dor deles por serem ofensa a Deus e não tanto pelo que supõem de
defeito pessoal.
d) Ajuda a distinguir o que
é próprio da natureza humana enquanto tal, do que é consequência da ferida do
pecado na natureza humana. Depois do pecado, nem tudo o que se experimenta como
espontâneo é bom.
A vida humana tem, pois, o
carácter de um combate: é preciso lutar por comportar-se de modo humano e cristão
([xvii]).
«Toda a tradição da Igreja
falou dos cristãos como de milites Christi, soldados de Cristo. Soldados que
levam a serenidade aos outros, enquanto combatem continuamente contra as más
inclinações pessoais» [xviii].
O cristão que se esforça por
evitar o pecado não perde nada do que torna a vida boa e bela. Diante da ideia
de ser necessário que o homem faça o mal para experimentar a sua liberdade
autónoma, pois no fundo uma vida sem pecado seria aborrecida, levanta-se a
figura de Maria, concebida imaculada, que mostra que uma vida completamente
entregue a Deus, longe de produzir tédio, converte-se numa aventura cheia de
luz e de infinitas surpresas [xix].
Santiago Sanz
Bibliografia básica:
Catecismo da Igreja
Católica, 374-421. Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, 72-78. João Paulo II, Creo en Dios Padre. Catequesis sobre
el Credo (I), Palabra, Madrid 1996, 219 seg. DS, n. 222-231;
370-395; 1510-1516; 4313. Leituras recomendadas João Paulo II, Memória e
Identidad e, Bertrand Editora, Lisboa 2005. Bento XVI, Homilia, 8-XII-2005. Joseph Ratzinger,
Creación y pecado, Eunsa, Pamplona 1992.
Notas:
[v] Esta é a principal razão de que a
Igreja tenha sempre lido o relato da queda numa óptica de monogenismo
(proveniência do género humano a partir de um só casal). A hipótese contrária,
o poligenismo, pareceu impor-se como dado científico (e inclusive exegético)
durante uns anos, mas actualmente, a nível científico, considera-se mais
plausível a descendência biológica de um só casal (monofiletismo). Do ponto de
vista da fé, o poligenismo é problemático, pois não se vê como possa
conciliar-se com a Revelação sobre o pecado original (cf. Pio XII, Enc. Humani
Generis, DS 3897), embora se trate de una questão sobre a qual ainda cabe
investigar e reflectir.
[ix] Neste sentido, distinguiu-se
tradicionalmente entre o pecado original originante (o pecado pessoal cometido
pelos nossos primeiros pais) e o pecado original originado (o estado de pecado
em que nasceram os seus descendentes).
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