Vol. 2
LIVRO XV
CAPÍTULO VII
Motivo do crime e obstinação de Caim que nem a palavra de Deus desviou do seu premeditado crime.
Mas que é que aproveitou a Caim o que, na medida em que nos foi possível, já expusemos? Deus falou-lhe como costumava falar aos primeiros homens por intermédio de uma criatura submissa, de uma forma conveniente, como companheiro. Não realizou ele o crime concebido de matar o irmão, mesmo depois da palavra de admoestação divina? Deus tinha distinguido os sacrifícios de ambos, olhando com agrado para os de um e com displicência para os do outro — o que, sem dúvida alguma, se pôde reconhecer por um sinal visível e atestador — e Deus procedeu assim porque as suas obras eram más e boas as do irmão. Caim ficou muito triste e de aspecto abatido. Está, de facto, assim escrito:
E disse Deus a Caim: porque é que te entristeceste? Porque ficaste de rosto abatido? Se a tua oferenda é justa, mas não a
partilhaste justamente, será que pecaste? Sossega: ele voltará para ti e tu
dominá-lo-ás [i].
Nesta admoestação ou conselho que Deus deu a Caim, as palavras
porque não se vê o porquê nem a que propósito foram pronunciadas, a sua obscuridade tem provocado muitas interpretações quando os comentadores das Sagradas Escrituras se esforçam por expô-las em conformidade com a regra da fé. Um sacrifício é justo quando é oferecido ao verdadeiro Deus, único a quem é devido. Mas não se «divide justamente» se não se tem bem em conta os lugares, os tempos, as coisas que se oferecem, quem as oferece, a quem se oferecem, por quem se distribui com o alimento o que se ofereceu. Por «divisão» temos que entender aqui:
se se oferece onde não convém ou o que não convém
aqui, mas noutra parte;
aqui, mas noutra parte;
se se oferece quando não convém ou o que não convém então, mas noutro tempo;
se se oferece o que nunca nem em parte alguma se
devia oferecer;
ou quando o homem reserva para si coisas melhores
do que as que oferece a Deus;
ou quando da oblação se faz participante um profano ou alguém que a ela não tem direito. Não é fácil descobrir em qual destes pontos desagradou Caim a Deus. Mas porque o apóstolo João diz, quando fala dos seus irmãos:
Não como Caim que estava do lado do maligno e matou seu irmão. E
por causa de quê o matou? Porque eram más as suas obras e justas as de seu
irmão [iii]
— com isto se nos dá a entender que, se Deus se desvia das suas oferendas, é porque ele as partilhava mal, dando a Deus algo de seu mas reservando-se para si a sua própria pessoa.
É o que fazem todos os que não procuram a vontade de Deus, mas a sua, isto é, vivendo, não com um coração recto, mas perverso, e que, todavia, oferecem a Deus as suas oferendas, julgando que por esta forma compramos seus favores, não para curarem as suas depravadas paixões, mas para as satisfazerem. Isto é próprio da cidade terrestre: venerar a Deus ou aos deuses para, com a sua ajuda, reinar nas vitórias e na paz terrestre, não pela caridade que se devota, mas pela paixão que domina. Porque os bons utilizam-se do mundo para gozarem de Deus; mas os maus, pelo contrário, para gozarem do mundo, querem utilizar-se de Deus. Todavia, estes pelo menos já crêem que Deus existe e que cuida das coisas humanas. Há os que são muito piores — os que nem mesmo nisto crêem.
Conhecido que foi por Caim que Deus
tinha olhado com agrado para o sacrifício de seu irmão e não para o seu, devia
arrepender-se e imitar seu bom irmão em vez de, orgulhoso, o invejar. Mas entristeceu-se
e ficou de rosto abatido. Este é o pecado que sobremaneira Deus repudia — a tristeza pela bondade de outrem, principalmente de um irmão. E isto
o que lhe reprova ao perguntar-lhe:
Deus via a inveja para com seu irmão e reprovava-lha. Para os homens, para quem está escondido o coração dos outros, pode ser ambíguo e totalmente incerto se aquela tristeza era fruto da malícia com que conscientemente tinha desagradado a Deus ou da bondade de seu irmão na qual Deus se comprouve ao olhar para o seu sacrifício.
Mas ao explicar porque tinha rejeitado a sua oferta, Deus mostrou-lhe que devia desgostar-se precisamente de si em vez de se entristecer injustamente contra seu irmão — já que era injusto num a partilha injusta, isto é, por não viver rectamente, (o que o tornou indigno de ver que a sua oferta agradava), e mais injusto ainda porque odiava sem motivo a seu irmão que era justo.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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