12/04/2017

Leitura espiritual

A Cidade Deus
A CIDADE DE DEUS


Vol. 2

LIVRO X

CAPÍTULO XI

Deveremos acreditar que mesmo os espíritos que se não mantiveram na verdade participaram da beatitude de que sempre gozaram os santos anjos desde o começo da sua existência?

Sendo isto assim, os espíritos a que chamam os anjos de maneira nenhum a começaram por ser durante certo tempo espíritos das trevas, mas, no momento em que foram feitos, foram feitos luz. Não foram criados simplesmente para existir e viver de qualquer maneira, mas foram iluminados para viver na sabedoria e na felicidade. Alguns destes anjos que se desviaram desta iluminação não obtiveram a excelência dessa vida sábia e feliz que, sem sombra de dúvida, só poderia ser eterna com a perfeita garantia da sua eternidade. Mas possuem a vida racional, embora insensata, e de tal forma que não a podem perder mesmo que o quisessem. Mas quem poderá definir com o foram participantes dessa sabedoria antes de terem pecado? Como é que poderem os dizer que nessa participação foram iguais aos que são verdadeira e plenamente felizes precisamente porque não se enganaram acerca da eternidade da sua felicidade? Realmente, se tivessem tido essa igualdade de felicidade, perma- neceriam também na sua eterna posse, igualmente felizes porque igualmente certos. E que, na verdade, a vida, por mais longa que seja, não se poderá cham ar eterna se tiver que ter um fim. Com efeito, a vida tem este nome apenas por se viver e chama-se eterna por não ter fim. Não há dúvida de que o que é eterno não é, só por isso, feliz (também o fogo do castigo se chama eterno). Todavia, a vida perfeita e verdadeiramente feliz só pode ser eterna. De facto, tal não era a dos anjos maus pois que, destinada a cessar, não era eterna, quer eles o soubessem quer o ignorassem e supusessem outra coisa. Porque o temor — se o soubessem — ou oerro — se o ignorassem — impedia-os, com certeza, de serem felizes. E se isto ignoravam de forma que não confiavam nem no falso nem no certo, mas não podiam dar o seu assentimento acerca da eternidade ou temporalidade desse seu bem, a própria hesitação acerca de felicidade tão grande não admitia a plenitude da vida feliz que cremos existir nos santos anjos. Não é que nós restrinjamos o significado de vida feliz ao ponto de dizermos que só Deus é feliz; Ele é, de certo, verdadeiramente feliz ao ponto de ser impossível conceber felicidade maior. E em comparação desta felicidade, a dos anjos tem toda a elevação e toda a grandeza que lhes convém, mas — em que consiste ela (quid est) e qual é a sua medida (quantum est)?

CAPÍTULO XII

Comparação entre a felicidade dos justos que ainda não obtiveram a recompensa prometida por Deus e a dos primeiros homens no Paraíso antes do pecado.

Julgamos que os anjos não são as únicas criaturas racionais e intelectuais que devem ser tidas por felizes. Quem é que, de facto, ousaria negar que os primeiros homens no Paraíso tenham sido felizes antes do pecado, embora estivessem incertos da duração da sua felicidade ou da sua eternidade? Não é sem motivo que nós hoje chamamos felizes àqueles que vemos viverem na justiça e na piedade com a esperança da imortalidade, sem qualquer crime a roer-lhes a consciência, obtendo facilmente a misericórdia divina para os seus pecados de fragilidade presente. Embora estejam seguros de que serão recom- pensados da sua perseverança, estão, porém, inseguros da própria perseverança. Que homem é que, efectivamente, sabe se perseverá até ao fim na prática e no progresso da justiça, a não ser que obtenha a garantia por uma revelação d ’Aquele que, sem enganar ninguém, não revela a todos, acerca deste ponto, o seu justo e secreto juízo? Também a respeito do gozo de um bem presente, o primeiro homem era mais feliz no Paraíso do que qualquer justo na debilidade desta vida mortal. Mas quanto à esperança de um bem futuro, qualquer homem, seja ele quem for, por muitos sofrimentos corporais que tenha de suportar, se sabe, não como provável, mas como verdade certa, que gozará sem fim, ao abrigo de toda a prova, da sociedade dos anjos na íntima união com Deus Soberano, — qualquer homem é mais feliz do que o primeiro homem inseguro da sua sorte na grande felicidade do Paraíso.


CAPÍTULO XIII

Todos os anjos foram criados no mesmo estado de felicidade, de forma que os que viriam a cair não podiam saber se viriam a cair, nem, depois da ruína dos que caíram, os que se mantiveram firmes tiveram conhecimento certo da sua perseverança.

Qualquer pessoa se apercebe facilmente de que a felicidade, objecto dos legítimos desejos da natureza inteligente, com porta conjuntamente duas coisas:

— o gozo sem perturbação do bem imutável que é Deus,
— a segurança sem qualquer dúvida ou erro acerca da perseverança para sempre nesse gozo.

Que a tiveram os anjos de luz, cremo-lo com fé piedosa; que os anjos pecadores, privados daquela luz pela sua maldade, não tiveram essa segurança antes de caírem, concluímo-lo por lógico raciocínio. Não há dúvida de que temos que admitir que, se viveram antes do pecado, gozaram, com certeza, de alguma felicidade, embora dela não tivessem conhecimento prévio.

Pode parecer duro crer que, na criação dos anjos, uns foram feitos sem terem conhecimento prévio da sua perseverança ou da sua queda, e outros tenham conhecido com toda a verdade a eternidade da sua felicidade, mas
que todos foram criados desde a origem igualmente felizes e assim se mantiveram até ao momento em que os anjos, hoje maus, voluntariamente se afastaram dessa luz, fonte de bondade, — mas seria, sem dúvida, muito mais duro pensar que os santos anjos se mantêm agora incertos da sua beatitude eterna, ignorando acerca de si próprios o que nós podemos saber deles pelas Sagradas Escrituras. Que cristão católico, na verdade, ignora que mais nenhum
novo demónio sairá doravante do número dos anjos bons, assim com o à sociedade dos anjos bons jamais voltará qualquer demónio? Realmente, no Evangelho a Verdade promete aos santos e aos fiéis que serão iguais aos anjos de Deus e promete ainda que entrarão na vida eterna. Ora, se nós estamos certos de que jamais decairemos dessa imortal felicidade, ao passo que eles não têm essa certeza, nós não lhes somos iguais, mas superiores. Mas, como a Verdade nunca engana e nos diz que seremos sempre iguais, seguramente, também eles estão certos da sua eterna felicidade.

Desta não estiveram seguros os outros (pois não tinham a certeza de que era eterna a sua felicidade; a sua felicidade tinha que ter fim); por isso, só se pode concluir que — ou não foram iguais ou, se iguais foram, depois da queda dos maus sobreveio aos bons uma ciência certa da sua eterna felicidade.

A não ser, talvez, que alguém sustente que o que o
Senhor diz do Diabo no Evangelho:

Era homicida desde o começo e não se manteve na
verdade ,
[i]

deve ser entendido no sentido de que foi homicida não só desde o princípio, isto é, desde o princípio do género hum ano, desde que foi criado o homem a quem podia matar com o engano, — mas também no sentido de que desde o princípio da sua criação não esteve na verdade e por isso nunca foi feliz com os santos anjos, recusando-se a ser súbdito do Criador, pondo a sua alegria em se orgulhar do seu pretenso poder pessoal, tomando-se depois falso e enganador. Porque ninguém escapa ao poder do Omnipotente: aquele que recusou manter-se, por uma piedosa submissão, no que era na realidade, aspira, por uma orgulhosa elevação, a simular o que não é. E é também no mesmo sentido que é preciso entender o que diz o apóstolo S. João:

O Diabo peca desde o começo,[ii]

quer dizer, ele rejeitou desde a sua criação a justiça que só uma vontade piedosa e submissa a Deus pode conservar. Quem adopta esta interpretação não pensa como certos herejes, isto é, maniqueus e outras pestes da mesma opinião, segundo os quais o Diabo teria recebido, um tanto como própria, a natureza do mal de um princípio oposto ao bem. Esses deliram com tanta vaidade que, embora admitindo connosco a autoridade das palavras evangélicas, não reparam que o Senhor não disse «o Diabo é alheio à verdade», mas

não se manteve na verdade,[iii]

querendo assim dar a entender que decaiu da verdade; e, com certeza, se nela se tivesse mantido, dela participaria ainda para continuar feliz com os santos anjos.



(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Jo VIII, 44,
[ii] Jo III, 8.
[iii] Jo III, 44.

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