09/03/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS 

Vol. 2

LIVRO IX

CAPÍTULO XI

Opinião dos platónicos segundo a qual as almas dos homens se tornam deuses depois da morte.

Realmente, diz ainda que as almas dos homens são demónios, e que de homens se transformam em Lares, se o tiverem merecido; lèmures ou larvas, se tiverem sido maus; mas chamam-se deuses Manes quando se não sabe se tiveram ou não méritos. Quem não vê nesta opinião, por muito pouca atenção que lhe preste, o abismo que se abre
diante dos homens de costumes perdidos? Na verdade, por
muito perversos que sejam os homens, ao pensarem que se transfor­marão em larvas ou deuses Manes, tornam-se tanto
piores quanto mais ávidos são de malfazer, quando chegarem a crer que, depois da morte, serão solicitados a fazer o mal através de sacrifícios que lhes serão oferecidos como se de deuses se tratasse. Realmente, diz ele, os larvas são demónios maléficos, provenientes de homens. Mas, daqui surge outra questão: diz ele que se as pessoas são felizes é porque são espíritos bons, isto é, bons demónios; com o que confirma que também os espíritos dos homens são demónios.


CAPÍTULO XII

A natureza dos demónios distingue-se da dos homens, segundo os platónicos, por três propriedades contrárias.

Mas, por agora, tratemos dos intermediários cuja natureza própria o citado Apuleio descreveu: animados quanto ao género; quanto à mente racionais; passivos quanto à alma; aéreos quanto ao corpo; quanto ao
tempo eternos. Quer dizer: depois de ter posto os deuses no mais alto dos Céus e os homens no mais baixo da Terra, separados pelos lugares e pela dignidade da natureza, conclui assim:

Tendes assim duas categorias de seres animados: os
deuses diferem muito dos homens pela sublimidade da
morada, a perpetuidade da vida, a perfeição da natureza;
entre eles, nenhuma comunicação tão grande é a distância
que separa as mais altas das mais baixas moradas: no alto, a
vitalidade eterna e indefectível; cá em baixo, o caduco e transitório; a natureza dos deuses atinge o cume da beatitude, a
nossa abisma-se na desgraça
[i].

Vejo aqui mencionadas três propriedades sobre as duas partes externas da natureza, isto é, a suprema e a ínfima. Pois as três que faz ressaltar, como louváveis, nos deuses, repete-as logo a seguir, em bora por outras palavras, para lhes opor outras três contrárias nos homens. As três dos deuses são: a sublimidade da morada, a perpetuidade da vida, a perfeição da natureza. É o que repete, por
outras palavras, para lhes opor três contrárias da natureza
humana, ao dizer:

Tão grande é a distância que separa as mais altas das mais
baixas moradas [ii],

— o que corresponde à «sublimidade do lugar».

Acrescenta:

No alto, a vitalidade eterna e indefectível; cá em baixo, o caduco e transitório
[iii] ,

— o que corresponde à «perpetuidade da vida». Continua:
A sua natureza atinge os cumes da beatitude, a nossa
abisma-se na desgraça
[iv],

— o que corresponde à «perfeição da natureza».

Enunciou, pois, três características dos deuses: morada nas alturas, eternidade e beatitude; e três, opostas, no homem: morada no mais baixo lugar, mortalidade e infelicidade.


CAPÍTULO XIII

Como é que os demónios, que nem gozam da felicidade com os deuses nem sofrem da miséria com os homens, podem ser me­diadores entre uns e outros, sem com uns e outros entrarem em contacto?

Destas três propriedades atribuídas aos deuses e aos homens, como os demónios estão colocados no meio, não há discussão possível acerca do lugar: entre o mais alto e o mais baixo diz-se que há, e há, precisam ente, um intermédio. Restam as outras duas. Nelas há que pôr uma
atenção mais cuidadosa: como é que se demonstra que elas
são alheias aos demónios? Ou com o é que têm de lhes ser distribuídas como a sua posição intermédia parece exigi-lo? Essas propriedades não lhes podem ser estranhas. Efectivamente, lá porque se diz que o intermédio não é o alto nem o baixo, nem por isso se pode dizer que os demónios, pelo facto de serem viventes racionais, nem são
felizes nem desgraçados, assim à maneira das plantas ou dos brutos privados de sentidos ou de razão: um a vez que a sua alma é dotada de razão, são necessariamente desgraçados ou felizes.

Da mesma forma, não podemos afirmar correctamente que os demó­nios não são nem mortais nem eternos. Realmente, todos os viventes, ou vivem eternamente ou terminam a sua vida com a morte. Mas já se disse que os demónios, quanto ao tempo, são eternos. Que resta, então, senão que estes intermediários possuem uma das duas características superiores e uma das duas inferiores? De facto, se eles tivessem as duas superiores ou as duas inferiores, já não seriam intermediários, mas subiriam ou desceriam para uma das duas partes. Mas, como não podem carecer, como ficou demonstrado, de uma e de outra, terão que mediar tomando de cada parte uma propriedade. Ora, como não podem ter a eternidade dos mais baixos, pois estes não a têm, — recebem-na dos do alto; e assim, para cumprirem a mediação, só lhes resta tomarem dos de mais baixo a desgraça.

É por isso que, segundo os platónicos, é próprio dos deuses sublimes terem uma eternidade bem-aventurada ou uma bem-aventurança eterna; é próprio dos homens ínfimos uma in­felicidade mortal ou uma mortalidade infeliz; e dos demónios, que estão entre aqueles dois, é próprio uma infeliz eternidade ou uma eterna infelicidade. De resto,
caracterizando os demónios por cinco propriedades, Apuleio não os pôs no meio como prometera: porque disse que tinham três, como nós — animados quanto ao género, racionais quanto ao espírito, de alma su­jeita às paixões;
uma como os deuses — eternos quanto ao tempo;
uma que lhes é própria — aéreos quanto ao corpo.
Como é que, então, estão no meio, tendo com os seres do alto uma só característica, e três com os de mais baixo? Quem é que não nota que eles se afastam do meio e pendem para a extremidade inferior?

Mesmo assim, não há dúvida de que se poderá dizer que eles estão de certo modo no meio — pois têm, como característica própria, um corpo aéreo, tal como os deuses do alto têm um corpo etéreo como característica própria, e os homens, cá em baixo, um corpo terrestre. Mas todos têm de comum duas características — serem animados
quanto ao género e racionais quanto ao espírito. Realmente, o próprio Apuleio, ao falar dos homens e dos deuses, disse:

Tendes duas categorias de seres animados
[v];
e os platónicos não costumam apresentar os deuses senão como racionais quanto ao espírito. Restam, para os demónios, as duas propriedades: passivos quanto à alma, eternos quanto ao tempo. Partilham a primeira com os de cá de baixo e a segunda com os do alto, de maneira que uma harmoniosa distribuição das características equilibra a sua situação média, sem que ela se desvie para o alto ou para baixo. Precisamente, isto é que é a «miserável eternidade»
ou a «eterna miséria» dos demónios. Realmente, aquele que disse que eles têm «uma alma passiva», teria acrescentado «mi­serável» se não fosse o respeito pelos seus adoradores. Se, portanto, como eles próprios confessam, o mundo é dirigido, não por um cego acaso, mas pela providência de um Deus supremo, jamais a desgraça dos demó­nios seria eterna se grande não fosse a sua malícia.

Qual será então o lugar dos bons demónios, para que possam, estando acima dos homens e abaixo dos deuses, prestar aos primeiros a sua assistência e aos segundos o seu ministério? Porque, se eles são bons e eternos, são também, com certeza, felizes. Mas uma felicidade eterna não lhes permite estarem no meio, porque ela muito os aproxima dos deuses e muito os afasta dos homens. Daí a inanidade dos seus
esforços para mostrarem que os bons demónios, imortais e felizes, poderiam legitimamente ser colocados a igual distância dos ho­mens mortais e infelizes e dos deuses imortais e felizes. Tendo como os deuses a beatitude e a imortalidade, sem em nada as partilharem com os mortais e miseráveis homens — como é que não estão afastados dos homens e próximos dos deuses em vez de colocados entre
os dois? Seriam intermédios se tivessem duas propriedades suas próprias, não comuns com as duas de um dos outros dois, mas comuns com uma de um e de outro; como o homem é intermédio entre o anjo e o bruto: como o bruto e um ser vivo irracional e mortal e como o anjo é racional e imortal — o homem encontra-se no meio, inferior aos anjos e superior aos brutos, pois tem, como os brutos, a mortalidade e, com o os anjos, a razão; é um ser vivente, racional e mortal. Assim, pois, quando procuram os um meio entre os felizes imortais e os miseráveis mortais, devemos encontrar um ser que seja um mortal e feliz ou um imortal miserável.


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Apuleio, De Deo Socratis, VI, ed. Thomas, p. 1. 
[ii] Ibid.
[iii] Ibid.
[iv] Ibid.
[v] Ibid.

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