Vol. 1
LIVRO
VIII
CAPÍTULO XXIII
O que pensava Hermes
Trismegisto da idolatria e como pôde ele saber que seriam abolidas as
superstições do Egipto.
Acerca
deles pensou e escreveu coisas mui diferentes o egípcio Hermes a quem chamam
Trismegisto. É certo que Apuleio nega que sejam deuses. Mas como lhes atribui
uma certa mediação entre os deuses e os homens, considera-os indispensáveis aos
homens devido às suas relações com os deuses e não separa o seu culto da
religião dos deuses superiores. Porém, segundo aquele egípcio, os deuses foram
criados, uns pelo Deus supremo e os outros pelos homens.
Quem
isto ouve, tal como o estou a contar, julgará que é dos ídolos que se está a
falar, pois estes é que são obra da mão do homem. Mas ele assegura que os
ídolos visíveis" e tangíveis são de certo modo os corpos dos deuses.
Alguns espíritos convidados a instalarem-se neles, tomaram deles posse com um
certo poder, quer de prejudicarem, quer de satisfazerem os desejos dos que lhes
prestam honras divinas e homenagens rituais. Possuir a arte de unir estes
espíritos invisíveis a objectos visíveis feitos de matéria corporal, para os
transformar como que em corpos animados, em ídolos dedicados e submissos a
esses espíritos — é a isso que Hermes chama «fazer deuses». Alguns homens
teriam recebido esse grande e estranho poder de fazer deuses.
Citarei
as palavras deste egípcio como foram traduzidas para a nossa língua:
Pois
que o nosso discurso versa sobre o parentesco e o relacionamento dos homens e
dos deuses, repara, ó Asclépio, para o poder e a força do homem. Assim como o
Senhor e Pai, o Ser Supremo, Deus, é fazedor dos deuses celestes, assim também
o homem é fazedor dos deuses que estão nos templos, satisfeitos com a
vizinhança humana [i].
E
logo a seguir:
Assim
a humanidade sempre fiel à recordação da sua natureza e da sua origem,
persevera nesta imitação da divindade da mesma maneira que o Pai e Senhor fez
os deuses eternos à sua semelhança, assim também a humanidade figurou os seus
deuses à semelhança do seu semblante [ii].
Aqui
Asclépio, seu principal interlocutor, responde-lhe:
Ao
que este respondeu:
Sim,
é de estátuas, ó Asclépio — vês como tu mesmo desconfias! — mas de estátuas
animadas, cheias de sensibilidade e de espírito, que fazem tão grandes e belas
coisas; estátuas conhecedoras do futuro e o predizem pela sorte, por adivinhos,
por sonhos e por outras maneiras, que causam enfermidades aos homens e as
curam, que dão alegria e tristeza, conforme os méritos. Ignoras, Asclépio, que
o Egipto é a imagem do Céu, ou mais exactamente, o lugar onde se transfere e desce
tudo quanto no Céu se determina e realiza, e, mais exactamente ainda, ignoras
que a nossa terra é o templo do mundo todo? E todavia, pois que fica bem ao
sábio que tudo preveja, não vos é lícito ignorar isto: tempo virá em que
parecerá que os egípcios em vão conservarão os seus deuses com espírito piedoso
e religioso escrúpulo, e em que toda a sua santa veneração ficará inutilmente
frustrada [iv].
Depois
Hermes prossegue longamente nesta questão e parece aí predizer a época em que a
religião cristã derrubará os ídolos falaciosos com tanta maior força e
liberdade quanto ela é mais verdadeira e mais santa, para que a graça do
Salvador autêntico liberte o homem dos deuses que o homem fez e o submeta a
Deus que fez o homem. Mas, ao predizer isto, Hermes fala com simpatia das
mistificações dos demónios, sem exprimir claramente o nome cristão; mas como,
assim, seria suprimido tudo aquilo em que o Egipto se assemelha ao Céu
(conforme nos garantia a observação) o testemunho que Trismegisto nos dá do
futuro toma um tom doloroso. Ele é, de facto, daqueles de quem o Apóstolo diz:
Ao
descobrirem Deus, não o glorificaram como Deus nem lhe prestaram graças; mas
tomaram-se vãos nos seus pensamentos e o seu coração insensato se obnubilou.
Dizendo-se sábios, tomaram-se loucos, substituindo à majestade de Deus
incorruptível imagens feitas à imagem do homem corruptível [v],
e
o mais que seria longo recordar.
Realmente,
a respeito do único e verdadeiro Deus construtor do mundo, muitas coisas diz
que correspondem à verdade; e não compreendo como é que tal cegueira do coração
o leva a afirmar que os homens estão sujeitos aos deuses que (é ele que o
confessa) pelos homens foram feitos, e a deplorar a supressão futura desta
sujeição — como se houvesse alguma coisa mais deplorável para o homem do que
ser dominado pelas suas próprias ficções. Porque a verdade é que é mais fácil a
um homem deixar de ser homem, adorando como deuses as obras das suas mãos, do
que às suas obras tornarem-se deuses pelo culto que um homem lhes presta. Realmente,
a um homem de tão elevada dignidade, se não é inteligente é mais fácil descer à
categoria dos brutos do que a obra do homem ser preferida à obra de Deus feita
à sua semelhança, isto é, ao próprio homem. É precisamente por isso que o homem
se afasta daquele que o fez quando acima dele coloca o que ele próprio fez.
Estas
eram as vacuidades enganosas, perniciosas, sacrílegas que o egípcio Hermes
lamentava por saber que chegaria o tempo da sua abolição. No seu lamento,
porém, havia tanto de impudência como na sua ciência havia de imprudência.
Efectivamente, não fora o Espírito Santo quem lho revelara, como aos santos
profetas que, conhecendo antecipadamente estes factos, exultavam de alegria:
e
noutra passagem:
Dia
virá, diz o Senhor, em que exterminarei da face da Terra o nome dos ídolos e
será abolida a sua memória [vii].
Quanto
ao próprio Egipto — e isto respeita à presente questão — o santo Elias
profetiza assim:
E
(os deuses) do Egipto, feitos pelas mãos dos homens, serão atirados para longe
da sua face e o coração (dos egípcios) será vencido dentro deles [viii].
Da
mesma estirpe eram aqueles que se regozijavam por ter chegado Aquele que sabiam
que havia de vir: tal era Simião, tal era Ana que reconheceu Jesus acabado de
nascer; tal era Isabel que, por graça do Espírito, o reconheceu apesar de
apenas concebido; tal era Pedro ao exclamar, por revelação do Pai:
Mas,
ao contrário, os espíritos que a este egípcio tinham indicado o momento da sua
futura perda, eram precisamente os que, a tremer, viriam a dizer ao Senhor
ainda presente na sua carne:
quer
porque fora demasiado súbito o acontecimento que de facto esperavam, mas para
mais tarde, quer porque eles chamavam «a sua perda» ao facto de serem
desprezados porque reconhecidos. E esta desgraça chegava-lhes antes do tempo (ante tempus), isto é, antes do tempo do
juízo em que serão punidos com a condenarão eterna com todos os homens que
permanecem retidos na sua companhia. Tal é o ensino da religião que não engana
nem se engana, diferentemente desse Hermes que, impelido pelos ventos da
doutrina que sopram de um e de outro lado e misturando o verdadeiro e o falso,
deplora a próxima perdição duma religião que ele próprio mais tarde confessará
constituir um erro.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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