02/03/2017

Leitura espiritual

Civita Dei
A CIDADE DE DEUS 

Vol. 1

LIVRO VIII

CAPÍTULO XXIII

O que pensava Hermes Trismegisto da idolatria e como pôde ele saber que seriam abolidas as superstições do Egipto.

Acerca deles pensou e escreveu coisas mui diferentes o egípcio Hermes a quem chamam Trismegisto. É certo que Apuleio nega que sejam deuses. Mas como lhes atribui uma certa mediação entre os deuses e os homens, considera-os indispensáveis aos homens devido às suas relações com os deuses e não separa o seu culto da religião dos deuses superiores. Porém, segundo aquele egípcio, os deuses foram criados, uns pelo Deus supremo e os outros pelos homens.

Quem isto ouve, tal como o estou a contar, julgará que é dos ídolos que se está a falar, pois estes é que são obra da mão do homem. Mas ele assegura que os ídolos visíveis" e tangíveis são de certo modo os corpos dos deuses. Alguns espíritos convidados a instalarem-se neles, tomaram deles posse com um certo poder, quer de prejudicarem, quer de satisfazerem os desejos dos que lhes prestam honras divinas e homenagens rituais. Possuir a arte de unir estes espíritos invisíveis a objectos visíveis feitos de matéria corporal, para os transformar como que em corpos animados, em ídolos dedicados e submissos a esses espíritos — é a isso que Hermes chama «fazer deuses». Alguns homens teriam recebido esse grande e estranho poder de fazer deuses.

Citarei as palavras deste egípcio como foram traduzidas para a nossa língua:

Pois que o nosso discurso versa sobre o parentesco e o relacionamento dos homens e dos deuses, repara, ó Asclépio, para o poder e a força do homem. Assim como o Senhor e Pai, o Ser Supremo, Deus, é fazedor dos deuses celestes, assim também o homem é fazedor dos deuses que estão nos templos, satisfeitos com a vizinhança humana [i].
E logo a seguir:

Assim a humanidade sempre fiel à recordação da sua natureza e da sua origem, persevera nesta imitação da divindade da mesma maneira que o Pai e Senhor fez os deuses eternos à sua semelhança, assim também a humanidade figurou os seus deuses à semelhança do seu semblante [ii].

Aqui Asclépio, seu principal interlocutor, responde-lhe:

Falas de estátuas, Trimegisto? [iii]

Ao que este respondeu:

Sim, é de estátuas, ó Asclépio — vês como tu mesmo desconfias! — mas de estátuas animadas, cheias de sensibilidade e de espírito, que fazem tão grandes e belas coisas; estátuas conhecedoras do futuro e o predizem pela sorte, por adivinhos, por sonhos e por outras maneiras, que causam enfermidades aos homens e as curam, que dão alegria e tristeza, conforme os méritos. Ignoras, Asclépio, que o Egipto é a imagem do Céu, ou mais exactamente, o lugar onde se transfere e desce tudo quanto no Céu se determina e realiza, e, mais exactamente ainda, ignoras que a nossa terra é o templo do mundo todo? E todavia, pois que fica bem ao sábio que tudo preveja, não vos é lícito ignorar isto: tempo virá em que parecerá que os egípcios em vão conservarão os seus deuses com espírito piedoso e religioso escrúpulo, e em que toda a sua santa veneração ficará inutilmente frustrada [iv].

Depois Hermes prossegue longamente nesta questão e parece aí predizer a época em que a religião cristã derrubará os ídolos falaciosos com tanta maior força e liberdade quanto ela é mais verdadeira e mais santa, para que a graça do Salvador autêntico liberte o homem dos deuses que o homem fez e o submeta a Deus que fez o homem. Mas, ao predizer isto, Hermes fala com simpatia das mistificações dos demónios, sem exprimir claramente o nome cristão; mas como, assim, seria suprimido tudo aquilo em que o Egipto se assemelha ao Céu (conforme nos garantia a observação) o testemunho que Trismegisto nos dá do futuro toma um tom doloroso. Ele é, de facto, daqueles de quem o Apóstolo diz:

Ao descobrirem Deus, não o glorificaram como Deus nem lhe prestaram graças; mas tomaram-se vãos nos seus pensamentos e o seu coração insensato se obnubilou. Dizendo-se sábios, tomaram-se loucos, substituindo à majestade de Deus incorruptível imagens feitas à imagem do homem corruptível [v],
e o mais que seria longo recordar.

Realmente, a respeito do único e verdadeiro Deus construtor do mundo, muitas coisas diz que correspondem à verdade; e não compreendo como é que tal cegueira do coração o leva a afirmar que os homens estão sujeitos aos deuses que (é ele que o confessa) pelos homens foram feitos, e a deplorar a supressão futura desta sujeição — como se houvesse alguma coisa mais deplorável para o homem do que ser dominado pelas suas próprias ficções. Porque a verdade é que é mais fácil a um homem deixar de ser homem, adorando como deuses as obras das suas mãos, do que às suas obras tornarem-se deuses pelo culto que um homem lhes presta. Realmente, a um homem de tão elevada dignidade, se não é inteligente é mais fácil descer à categoria dos brutos do que a obra do homem ser preferida à obra de Deus feita à sua semelhança, isto é, ao próprio homem. É precisamente por isso que o homem se afasta daquele que o fez quando acima dele coloca o que ele próprio fez.

Estas eram as vacuidades enganosas, perniciosas, sacrílegas que o egípcio Hermes lamentava por saber que chegaria o tempo da sua abolição. No seu lamento, porém, havia tanto de impudência como na sua ciência havia de imprudência. Efectivamente, não fora o Espírito Santo quem lho revelara, como aos santos profetas que, conhecendo antecipadamente estes factos, exultavam de alegria:

Se o homem faz deuses então é porque não são deuses [vi],

e noutra passagem:

Dia virá, diz o Senhor, em que exterminarei da face da Terra o nome dos ídolos e será abolida a sua memória [vii].

Quanto ao próprio Egipto — e isto respeita à presente questão — o santo Elias profetiza assim:

E (os deuses) do Egipto, feitos pelas mãos dos homens, serão atirados para longe da sua face e o coração (dos egípcios) será vencido dentro deles [viii].

Da mesma estirpe eram aqueles que se regozijavam por ter chegado Aquele que sabiam que havia de vir: tal era Simião, tal era Ana que reconheceu Jesus acabado de nascer; tal era Isabel que, por graça do Espírito, o reconheceu apesar de apenas concebido; tal era Pedro ao exclamar, por revelação do Pai:

Tu és Cristo, filho de Deus vivo [ix].

Mas, ao contrário, os espíritos que a este egípcio tinham indicado o momento da sua futura perda, eram precisamente os que, a tremer, viriam a dizer ao Senhor ainda presente na sua carne:

Porque vieste perder-nos antes do tempo [x]?
quer porque fora demasiado súbito o acontecimento que de facto esperavam, mas para mais tarde, quer porque eles chamavam «a sua perda» ao facto de serem desprezados porque reconhecidos. E esta desgraça chegava-lhes antes do tempo (ante tempus), isto é, antes do tempo do juízo em que serão punidos com a condenarão eterna com todos os homens que permanecem retidos na sua companhia. Tal é o ensino da religião que não engana nem se engana, diferentemente desse Hermes que, impelido pelos ventos da doutrina que sopram de um e de outro lado e misturando o verdadeiro e o falso, deplora a próxima perdição duma religião que ele próprio mais tarde confessará constituir um erro.

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Asclepius, XXIII, ed. de Festugière-Nock, p. 325.
[ii] Id. Ib., pág. 326.
[iii] Id. Ib., pág. 326.
[iv] Id. Ib. p. 327.
[v] Rom., I, 21-22.
[vi] Jerem., XVI, 20.
[vii] Zacarias, XIII. 2.
[viii] Isaias, XIX, 1.
[ix] Mat., X V I, 16.
[x] Mat., VIII, 29.

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