Leitura espiritual
A Cidade de Deus |
Vol. 1
LIVRO
IV
CAPÍTULO
XIII
Segundo
alguns, só os seres animados e racionais constituem partes de um só Deus.
Se, porém, pretendem que apenas os seres
vivos racionais, tais como os homens, constituem partes de Deus — não vejo, na
realidade, se o Mundo todo é Deus, como é que se excluem os animais de serem
partes dele. Mas discutir para quê? A respeito do próprio ser vivo racional,
isto é, do homem — que há de mais lamentável do que crer que quando se açoita
uma criança é uma parte de Deus que se açoita? Quem poderá admitir sem de todo
perder o senso que há partes de Deus que se tornam lascivas, iníquas, ímpias, e
totalmente condenáveis? Por fim — porque se hão-de os deuses indignar contra os
que os não veneram, quando, afinal, não são venerados pelas suas próprias
partes? Só resta, portanto, afirmar que os deuses, todos eles, têm as suas
vidas próprias, cada um vive para si, nenhum deles é parte de qualquer outro,
mas devem venerar-se apenas todos os que podem ser conhecidos e venerados, pois
eles são tão numerosos que nem todos o podem ser. Como Júpiter lhes preside
como rei, julgo que é a ele que se atribui a fundação e a dilatação do Império
Romano. Com efeito, se não foi ele mesmo quem o fez, que outro deus julgam que
poderia empreender uma tão vasta empresa, já que todos estão ocupados nos seus
deveres e trabalhos próprios sem que cada um se intrometa nos dos outros? Foi,
pois, pelo rei dos deuses que o reino dos homens se pôde estender e prosperar.
CAPÍTULO
XIV
Atribui-se,
sem razão, a dilatação dos reinos a Júpiter: bastaria para isso Vitória, se ela
é, como dizem, uma deusa.
Agora, e antes de mais nada, eu pergunto:
Porque é que o próprio Estado não é um Deus? Porque é que não há-de ser assim
se a Vitória é uma deusa? Ou que necessidade há de Júpiter nesta questão, se a
Vitória favorece e é propícia e sempre se põe do lado dos que ela quer que
sejam vencedores? Quando esta deusa é favorável e propícia — que povos poderão
fugir ao seu domínio, que reinos resistirão, mesmo que Júpiter se mantenha
inactivo ou ocupado em outra coisa?
Será talvez que desagrada aos bons fazerem
guerras injustas e, para estenderem os seus Estados, provocarem inesperadamente
para o combate vizinhos tranquilos que nenhuma injustiça cometeram? Se são
estes os seus verdadeiros sentimentos — pois apoio-os e louvo-os.
CAPÍTULO
XV
Convém
aos bons quererem estender a sua dominação?
Vejam, pois, bem se por acaso convirá a
homens de bem que se regozijem com a extensão do Império. Foi a iniquidade
daqueles contra os quais foram movidas justas guerras que ajudou o Império a
dilatar-se. Este decerto continuaria diminuto se os povos vizinhos, por serem
pací ficos e justos, não lhe tivessem dado azo com suas ofensas e provocações.
Assim, para a felicidade da humanidade, não teria havido mais que pequenos
reinos felizes por viverem em absoluta concórdia com os seus vizinhos e no
mundo haveria muitos Estados como na cidade há muitas moradas de cidadãos. Por
isso é que guerrear, alargar o império sobre povos dominados, parece aos maus
uma felicidade e aos bons uma necessidade. Mas, como seria pior ainda que os
justos fossem subjugados pelos injustos, não é uma incongruência que também se
chame felicidade a esta necessidade. Sem dúvida, porém, que viver em concórdia
com um bom vizinho é uma felicidade maior do que subjugar um mau vizinho agressivo.
Maus votos são os de quem deseja que haja quem odeie ou a quem tema para poder
ter quem possa vencer. Se, portanto, foi conduzindo guerras justas, isentas de
impiedade e de iniquidade, que os Romanos puderam conquistar um tão dilatado
império — não deveriam então venerar também como uma deusa a iniquidade alheia?
É que, de facto, esta contribuiu, como vimos, para a dilatação do Império,
provocando inimigos injustos para que contra eles surgissem guerras justas e se
dilatasse o Império. Porque é que a iniquidade não será também uma deusa, pelo
menos dos povos estrangeiros, se o Pavor e o Palor e a Febre merecem ser deuses
romanos?
Com estas duas, isto é, com a Iniquidade
alheia e a Vitória — a Iniquidade suscitando motivos para a guerra e a Vitória
conduzindo a guerra a um feliz resultado, dilatou- -se o Império sem que
Júpiter se mexesse. Aliás, que participação poderia ter tido nisso Júpiter,
quando os benefícios que lhe poderiam ser atribuídos são tidos por deuses,
chamam-se deuses, como deuses se veneram e são invocados como partes dele?
Poderia ter chegado a ter alguma se tivesse recebido o nome do estado, como se
chamou deusa à Vitória. Ou, se o estado é um presente de Júpiter, porque é que
também a Vitória não é tida por um seu presente? Como tal seria tida, sem
dúvida, se no Capitólio não se venerasse uma pedra, mas se reconhecesse e
adorasse o verdadeiro
Rei dos Reis e Senhor dos Senhores [i].
CAPÍTULO
XVI
Porque
é que os Romanos, que assinalam um deus para cada acontecimento e para cada
movimento, quiseram que o templo de Quietude (Quies) ficasse fora de portas?
Mas o que mais admira é que os Romanos tenham
atribuído um deus para cada coisa e quase para cada movimento. Invocam a deusa
Agenória, que os leva a agir; a deusa Stímula, que os estimula a agir além da
medida; a deusa Múrcia, que imobiliza o homem desmedidamente e o toma, como diz
Pompónio, múrcido, isto é, extremamente preguiçoso e inactivo; a deusa Strénia,
que os torna vivazes. Decidiram oferecer sacrifícios públicos a todos estes
deuses e deusas. Todavia, invocando embora a deusa Quietude, (Quies) que lhes
assegura a tranquilidade, não quiseram prestar-lhe oficialmente culto porque
ela tinha o seu templo fora da porta Colina. Terá sido isto indício de um
espírito inquieto ou tal significa, pois aquele que persevera em adorar aquela
turbamulta, não de deuses com certeza, mas de demónios, não pode manter aquela
tranquilidade para que nos chama o verdadeiro médico quando nos diz:
Aprendei de mim, pois sou manso e humilde de coração, e
encontrareis a paz nas vossas almas [ii]?
CAPÍTULO
XVII
Se
o poder de Júpiter é soberano, deverá Vitória ser ainda considerada como deusa?
Dirão talvez que Júpiter envia a deusa
Vitória e que esta, obedecendo-lhe como ao rei dos deuses, se dirige para os
que ele lhe indicou e se põe ao lado deles? Isso diz- -se com verdade, não
desse Júpiter imaginado caprichosamente como rei dos deuses, mas do verdadeiro
Rei dos Séculos que envia, não a Vitória, que nada tem duma substância, mas o
seu anjo, para tornar merecedor quem Ele quer, Ele cujos desígnios podem ser
ocultos, mas não injustos. Com efeito, se a Vitória é uma deusa, porque é que o
Triunfo não é, ele também, um deus e não se junta à Vitória como marido ou
irmão ou filho? Efectivamente, tem havido tais opiniões acerca dos deuses que,
se os poetas as tivessem imaginado e se nós os criticássemos, poderiam
responder-nos «são ficções dos poetas de que nos devemos rir e que não se devem
atribuir às verdadeiras divindades». E, contudo, não zombavam de si próprios,
não, quando liam estas extravagâncias nos poetas, mas os adoravam nos templos.
Era, portanto, a Júpiter que eles deviam rogar, só a ele deviam suplicar. Se
Vitória é uma deusa e até sujeita a esse rei, não pode, quando é enviada por
ele, atrever-se a resistir-lhe e a satisfazer a sua própria vontade.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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