Vol. 1
LIVRO
IV
CAPÍTULO
X
Opiniões
seguidas por aqueles que propuseram deuses diferentes para as diferentes
partes do Mundo.
E porque é que lhe unem Juno como esposa, que
se diz sua «irmã e cônjuge»? Porque, dizem, segundo a tradição, Júpiter está
no éter, Juno no ar e estes dois elementos, um superior e outro inferior, estão
unidos. Já não é, portanto, aquele de quem foi dito:
tudo está cheio de Júpiter [i].
pois também Juno enche uma parte. Será que os
dois cônjuges enchem os dois elementos residindo ao mesmo tempo um e outro nos
dois? Então, porque é que se atribui o éter a Júpiter e o ar a Juno? No fim de
contas, estas duas divindades bastariam: para quê atribuir o mar a Neptuno e a
terra a Plutão? E para que estes não fiquem também sem esposas, juntam Salácia
a Neptuno e Prosérpina a Plutão. É que, dizem, assim como Juno reside no ar,
isto é, na parte inferior do céu, assim também Salácia ocupa a parte inferior
do mar e Prosérpina a parte inferior da terra. Procuram, mas não encontram, a
maneira de remendar estas fábulas. Se assim fosse, os antigos teriam falado de
três e não de quatro elementos do mundo para atribuírem a cada elemento uma
parelha de deuses. Todavia, o que afirmam é bem diferente: o éter é uma coisa e
o ar é outra. Quanto à água, superior ou inferior, não deixa de ser água.
Imagina tu que é diferente: deixará ela por isso de ser água? E a terra
«inferior» que outra coisa poderá ser senão terra, por muito diferente que
seja? E eis que com estes quatro ou três elementos já o conjunto do mundo
corpóreo está completo. Onde ficará Minerva? Que ocupará ela? Que é que
preencherá? Encontrou um lugar no Capitólio ao mesmo tempo que eles, embora não
seja filha de ambos. Se, como dizem, Minerva ocupa a parte superior do éter — e
por essa razão os poetas fingem que ela nasceu da cabeça de Júpiter — porque
não a consideram então como rainha dos deuses, mesmo acima de Júpiter? Porque
seria indecoroso colocar a filha acima do pai? Porque é que não se observou a
mesma justiça a propósito do próprio Júpiter para com Saturno? Porque este foi
vencido? Então, combateram? Longe disso, dizem; palavrório de fábulas é que
isso é! Vá — não acreditemos em fábulas e façamos dos deuses melhor juízo.
Porque é que então não foi dado ao pai de Júpiter uma morada, se não mais
sublime pelo menos de igual categoria? Porque, dizem, Saturno é a duração do
tempo. Portanto prestar culto a Saturno é prestar culto ao tempo e supor que
Júpiter, rei dos deuses, nasceu do tempo. Que há de indigno em dizer-se que
Júpiter e Juno nasceram do tempo — se aquele é o céu e esta a terra — sendo
certo que o céu e a terra foram criados? De facto, também os seus doutores e
sábios consignaram isto nos seus livros. Não foi segundo as ficções dos poetas
mas segundo os livros dos filósofos que Vergílio escreveu:
Então, o Pai Omnipotente, o Éter, desceu em forma de
chuva fecunda, ao seio da sua ditosa esposa
[ii],
isto é, no seio de Telure, a Terra. Porque ainda
aqui querem que haja diferenças. Julgam que na própria terra uma coisa é a
Terra, outra Telure outra Telumão e que cada um destes deuses tem os seus
próprios nomes, distingue-se pelas suas funções e é venerado em altares e com
ritos próprios.
A esta mesma Terra chamam também a mãe dos
deuses, e assim já as ficções dos poetas se tomam mais toleráveis, pois não é
nos seus poemas mas nos livros sagrados que é chamada não só a «irmã e esposa»
mas também a mãe de Júpiter. Querem ainda que a mesma Terra seja Ceres e também
Vesta. Mas é frequente apresentarem Vesta como o fogo dos lares, sem o qual a
cidade não poderia existir. E por isso eram virgens que costumavam consagrar ao
seu serviço, porque, assim como nada nasce do fogo, também nada nasce de uma virgem.
Todas estas frivolidades deviam com certeza vir a ser abolidas e extintas por
quem nasceu duma virgem. Efectivamente, quem suportará que os que tributam tão
grande honra (e até como que castidade) ao fogo, não se envergonhem de chamar
Vénus a Vesta, desvanecendo assim a louvável virgindade das suas servidoras? É
que, se Vesta é Vénus, como é que virgens podem correctamente servi-la,
abstendo-se das obras de Vénus? Haverá duas Vénus — uma virgem e outra senhora
(mulier)? Ou antes três — uma das
virgens, que é também Vesta, outra das casadas e outra das meretrizes? Era a
esta que os Fenícios davam de presente a prostituição das filhas antes de as
vincularem aos maridos. Qual delas é a mulher de Vulcano? Com certeza que não é
a virgem, pois tem um marido. Que seja a meretriz — nem pensar nisso: não vá
parecer que se pretende fazer injúrias ao filho de Juno, ao colaborador de
Minerva. Portanto, tem que se concluir que se trata da que respeita às casadas.
Mas não queremos que a imitem no que ela fez com Marte. Lá voltas de novo às
fábulas, dirão! Que justiça é essa que se inflama contra nós por isto
afirmarmos dos seus deuses e não inflama contra si próprios os que no teatro
assistem gostosamente a estes crimes dos seus deuses? E (o que não seria de
acreditar se não se provasse sem contestação) estas representações teatrais dos
crimes dos deuses foram instituídas em louvor desses mesmos deuses.
CAPÍTULO
XL
Os
doutores dos pagãos defendem a opinião de que os diversos deuses mais não são
que um e o mesmo Júpiter.
Afirmem pois o que lhes apetecer baseados em
argumentos de ordem física e em conclusões das suas controvérsias:
— umas vezes, que Júpiter é
a alma deste mundo corpóreo, alma que enche e move toda esta mole formada e
constituída por quatro, ou por quantos elementos lhes aprouver;
— outras vezes, que ele cede
à irmã e aos irmãos a sua parte;
— outras, que ele é o éter que envolve o
ar desde Juno, lá em cima, até ao difundido cá por baixo;
— umas vezes, que ele
próprio é o céu todo com o ar e que fecunda com as suas chuvas e sementes a
Terra, simultaneamente sua esposa e mãe (pois que nada de torpe há entre os
deuses);
— outras vezes, finalmente
(para não desfiar todas as possibilidades), que ele é o deus único ao qual
muitos atribuem o que foi dito pelo mais ilustre dos poetas:
o deus de facto percorre todas as terras, todas as
extensões dos mares, todas as profundezas do Céu [iii];
— ele é Júpiter no éter e
Juno nos ares;
— é Nephino nos mares e
Salácia nas regiões inferiores do mar;
— é na terra Plutão, e Prosérpina nas
regiões inferiores da terra;
—
é Vesta nos lares domésticos e Vulcano na fornalha dos ferreiros;
— nos astros é o Sol, a Lua e
as estrelas, e nos adivinhos é Apolo;
— no comércio é Mercúrio, Jano no começo
das coisas, Saturno no tempo, Marte e Belona nas guerras, Líder nas vinhas,
Ceres nas searas, Diana nas florestas, Minerva nas artes;
— está, finalmente, na
multidão dos deuses, a bem dizer plebeus;
— é quem preside, com o nome
de Libero, à emissão seminal dos homens e, com o nome de Libera, à das
mulheres;
— é Diespáter, que leva a
seu termo o parto;
— é a deusa Mena, que
preside às regras das mulheres;
— é Lucina, invocada pelas
parturientes;
— é quem, com o nome de
Ópis, presta socorro aos recém-nascidos, recebendo-os do seio da terra;
— é quem, com o nome do deus
Vaticano, lhes abre a boca para os vagidos;
— com o nome da deusa
Levana, os ergue da terra;
— com o nome da deusa
Cunina, vigia os berços;
— é ele e não outro quem,
com o nome das deusas Carmentes, narra os destinos dos recém-nascidos;
— quem, com o nome de
Fortuna, preside aos acontecimentos fortuitos;
— com o da deusa Rumina,
munge a mama para o pequenino
— por isso é que os antigos
chamaram ruma à mama;
— com o da deusa Potina,
lhes administra a bebida;
— com o da deusa Edura, lhes
fornece a comida;
— quem do pavor das crianças
tira o nome de Pavência, o de Venília da esperança que vem, o de Volúpia da
voluptuosidade, o de Agenória do esforço.
— Dos estímulos com que o
homem é impelido para o excesso de actividade, vem-lhe o nome de Stímula, e de
Strénia da energia (strenuus) para a
acção;
— a que ensina a contar (numerare) é Numeria e a que ensina a
cantar (canere) é Canena;
— é ainda o deus Consus
porque aconselha, a deusa Sência porque inspira os pensamentos (sententia), a deusa Juventas que,
chegada a idade de envergar a toga pretexta, apadrinha a entrada na idade
juvenil;
— é a Fortuna barbuda que
reveste de barba os adolescentes (a estes os quiseram honrar, considerando esta
curiosa divindade pelo menos como um deus masculino, quer chamando-lhe Barbado,
por causa da barba, como se chamou Nodato, por causa dos nós (nodus), quer chamando-lhe Fortúnio em
vez de Fortuna ainda por causa das barbas);
— como deus Jugatino ele une
os esposos;
— com o nome da deusa Virginiense
é invocado quando se desaperta a cinta da noiva;
— ele é mesmo Mutuno ou
Tutuno, ou seja, entre os gregos, Priapo.
Se ele não se envergonha de ser tudo o que
disse e até o que não disse (pois não tenciono dizer tudo), isto é, que Júpiter
sozinho seja todos os deuses e todas as deusas, quer sejam estas, como
pretendem uns, partes dele ou potências dele, como parece a outros, a quem
apraz ver nele a alma do mundo, o que constitui a opinião de muitos dos seus
grandes doutores.
Se assim é (e qual seja não o indago por ora)
— que perderiam, se adorassem, numa síntese mais sensata, um Deus apenas? Que
poderiam «dele desprezar, adorando-o a ele próprio»? Se deviam evitar que se
irassem algumas das partes que eram esquecidas ou postas de lado — então não é
ele (Júpiter), como pretendem, a vida total do único animador que em si contém
todos os deuses como potências suas, como membros seus, como partes suas; mas
cada uma das suas partes tem vida própria, separada das outras, uma vez que uma
pode irar-se com a exclusão de outra e que uma se amansa quando a outra se
indigna. Se se disser que o próprio Júpiter todo inteiro se ofende, isto é,
todas as suas partes ao mesmo tempo, no caso de não serem veneradas todas elas,
uma a uma — diz-se uma tolice. Na verdade, uma parte não seria posta de parte
quando fosse venerado o próprio Uno que a todas contém. Mas omito outras questões,
que muitas são. Quando afirmam que todos os astros são partes de Júpiter, que
todos vivem e têm alma racional, que, portanto, são indiscutivelmente deuses —
não reparam quantos não veneram, a quantos não constroem templos nem levantam
altares, pois entenderam que não os deviam levantar senão a muito poucos
astros, aos quais deviam ser oferecidos sacrifícios em especial. Se, pois, se
enfurecem os que não são venerados em especial, não haverá que recear, dado o
pequeno número dos satisfeitos, viver na cólera de todo o céu?
Mas, se se veneram todos os astros honrando
Júpiter que a todos contém, poderiam então elevar-lhes súplicas a todos os
compreendidos em Júpiter (desta forma, nenhum teria que se encolerizar, já que,
neste único, nenhum estaria posto de parte). Seria melhor do que reservar o
culto para uns tantos, dando lugar a que injustificadamente se indignem os que
— decerto muitos mais — tivessem sido preteridos, sobretudo quando do alto do
céu onde brilham, vêem preferir-se-lhes um Priapo exibindo-se na sua obscena
nudez.
CAPÍTULO
XII
Opinião
dos que consideram Deus como a alma do Mundo e o Mundo o corpo de Deus.
Quê? Isto não deve deixar de emocionar os
homens argutos ou sejam eles o que forem, porque, se pusermos de parte a
discussão apaixonada, não é preciso ser um grande génio para compreender que
se Deus é a alma do Mundo e o Mundo o corpo
desta alma, então Deus é um ser vivo único, composto de um corpo e de uma alma;
e se Deus, no próprio seio da natureza,
contém em si todas as coisas de maneira que da sua alma, como princípio
vivificante de toda esta mole, derivam a vida e a alma de todos os seres vivos
conforme a sorte que coube a cada um quando nasceu — então nada há que não seja
parte de Deus.
Se assim é — quem não vê quanta impiedade e
irreligiosidade daí decorre: pois o que qualquer calcar, a Deus calcará, e ao
m atar qualquer ser vivo, matará parte de Deus?
Não quero referir tudo o que pode ocorrer aos
que nisto pensam, mas não pode ser referido sem vergonha.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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