15/01/2017

Leitura espiritual


Leitura espiritual


A Cidade de Deus 


Vol. 1

LIVRO III

CAPÍTULO XVIII

Que enormes desgraças afligiram os Romanos durante as Guer­ras Púnicas, apesar do pedido de socorro em vão dirigido aos deuses.

De resto, já durante as Guerras Púnicas, quando a vitória se mantinha vacilante e incerta entre os dois impé­rios e os dois mais poderosos povos lançavam um contra o outro os seus ataques com todo o seu poderio e grandes recursos, quantos pequenos reinos foram esmagados! quantas extensas e célebres urbes foram destruídas! quantas cidades foram desoladas e aniquiladas! As regiões e os territórios que em tão largas e fundas extensões foram devastadas! As vezes que ambas as partes foram, ora vencedoras, ora vencidas! Que perdas de homens entre os combatentes e as populações inermes! Que tamanhas armadas destroçadas em batalhas navais ou tragadas por tantas e tão diversas tempestades! Se fôssemos a contar ou a relembrar tudo isto, mais não seríamos que mero historiador.

O Povo Romano, tomado então de grande medo, recorria a vãos e ridículos remédios. Por indicação dos Livros Sibilinos restabeleceram-se os jogos seculares, cuja celebração, de cem em cem anos, se tinha estabelecido em tempos mais felizes, mas que, agora, por negligência, tinham sido varridos da memória. Os pontífices renovaram também os jogos consagrados aos deuses infernais e igualmente abolidos no passado durante os anos melhores. E de facto, quando foram renovados, os infernos, enriquecidos por uma tal afluência de mortos, também se regozijavam.

Entretanto, os míseros humanos — com as suas raivosas guerras, suas cruentas hostilidades, suas vitórias funestas para ambas as partes, — ofereciam aos demónios jogos grandiosos, aos infernos copiosos banquetes.

Nada aconteceu na Primeira Guerra Púnica de maior lástima do que terem sido os Romanos vencidos e o próprio Régulo feito prisioneiro — do que já fizemos menção nos livros primeiro e segundo. Era indubitavelmente um grande homem que antes tinha vencido e domado os Cartagineses. Teria levado a termo a Primeira Guerra Púnica se, ávido em excesso de glória e de louvor, não tivesse imposto aos Cartagineses fatigados condições mais duras do que eles podiam suportar. Se o cativeiro, totalmente imprevisto, e a mais humilhante escravidão, se o indefectível juramento e a mais cruel das mortes daquele varão não obrigou tais deuses a corar de vergonha, é porque na verdade são eles seres aéreos que não têm sangue.

Naqueles tempos também não faltaram, a dentro das muralhas, as mais graves provações. O Tibre transbordou muito para além do normal e devastou quase todos os bairros baixos da Urbe — uns foram arrastados sob o ímpeto da torrente, outros esboroaram-se encharcados pelas águas durante muito tempo estagnadas. A esta catástrofe sucedeu um incêndio ainda mais pernicioso que, assenhoreando-se dos mais altos edifícios à volta do Foram, nem sequer poupou o seu mais íntimo santuário, o Templo de Vesta, onde tinham o costume de lhe dar uma vida como que perpétua renovando-lhe com grande cuidado a fogueira mulheres virgens, a isso mais condenadas do que honradas. O fogo não se mantinha então apenas vivo — tomara-se voraz. Aterradas com a sua impetuosidade aquelas virgens não podiam livrar do incêndio os sagrados emblemas do destino que já tinham trazido a desgraça a três cidades em que estiveram. O pontífice Metelo, de certo modo esquecido da sua própria salvação, precipitou- -se, já meio queimado. Mas nem o fogo o reconheceu a ele, nem havia ali divindade alguma, porque, se tivesse havido, já teria fugido. Um homem pôde, pois, valer mais aos emblemas de Vesta do que esta ao homem. Mas, se de si próprios não repeliam o fogo, como podiam ajudar contra as águas e as chamas a cidade, de cuja salvação se julgavam os mentores? Assim também este facto tomou patente que eles nada podiam. Não lhes apresentaríamos estas objecções se eles declarassem que esses emblemas sagrados se destinavam não a proteger bens temporais, mas a simbolizar bens ete­mos. Assim, se essas coisas corporais e visíveis vieram a perecer, em nada serão rebaixadas as realidades que representavam, podendo ser novamente reparadas para os seus fins. Mas, na verdade, com assombrosa cegueira, julgam que estes emblemas perecíveis podem tom ar imperecíveis a salvação terrestre e a felicidade temporal da cidade. Por isso, quando se lhes mostra que, apesar da sua presença, esses emblemas sagrados não puderam impedir que a saúde fosse abalada nem que a desgraça recaísse sobre eles, envergonham-se de mudar a opinião que não podem defender.

CAPÍTULO XIX

Aflições da Segunda Guerra Púnica em que se consumiram as energias de ambas as partes.

Da Segunda Guerra Púnica seria demasiado longo recordar as calamidades dos dois povos combatendo em paragens tão grandes e tão distantes que, como confessam os que se determinaram não tanto a contar as guerras romanas como a louvar o Império Romano, o vencedor mais parecia vencido. De facto, Aníbal surge na Hispânia, transpõe os montes Pirenéus, atravessa a Gália a passo de corrida, galga os Alpes e, no decurso de uma tão longa volta, vai aumentando as suas forças, tudo devasta, tudo subjuga e entra pelas portas da Itália como uma torrente! Que cruentos combates se travaram! Quantas vezes foram os Romanos vencidos! Quantas praças se passaram para o inimigo, quantas foram tomadas e saqueadas! Que pugnas cruéis! Tantas vezes gloriosas para Aníbal quantas desastrosas para Roma! Que direi da espantosa e horrenda catástrofe de Canas, onde Aníbal, apesar de crudelíssimo, saciado de tanta carnificina dos seus mais atrozes inimigos, diz-se que ordenou que se poupassem os sobreviventes? Daí mandou a Cartago três módios [i] de anéis de ouro. Com isto entenderiam que na batalha tinham morrido tantos nobres romanos que a perda era mais fácil de medir que de contar — e daí se podia calcular que a destruição da tropa restante (tanto mais numerosa quanto de menor categoria), que jazia sem anel, mais se podia conjecturar do que precisar. Seguiu-se uma tal carência de soldados, que os Romanos recrutavam réus de crimes propondo-lhes a impunidade, escravos concedendo-lhes a liberdade e, com estes ele­mentos, conseguiram alistar (mas não restaurar) um vergonhoso exército. A estes escravos — não os ofendamos — a estes libertos, que iriam combater pela República Romana, faltaram as armas. Arrancaram-nas dos templos, como se os Romanos dissessem aos deuses: entregai as armas que em vão conservastes durante tanto tempo; talvez que os nossos escravos delas possam tirar o proveito que vós, divindades nossas, não soubestes tirar. E como o erário não bastava para pagar os soldos, lançou-se mão das riquezas privadas para ajudar as despesas públicas. Cada um contribuiu com o que tinha, a ponto que, exceptuando os anéis e as bulas (míseras insígnias da nobreza), ninguém ficou com Ouro algum, nem mesmo o Senado, muito menos as restantes ordens e as tribos. Quem suportaria os pagãos, se, em nossos tempos, fossem obrigados a tal penúria? Apenas os podemos suportar quando, por um prazer supérfluo, entregam mais aos histriões do que às legiões para lhes salvarem a vida em último transe.

CAPÍTULO XX

Destruição dos Saguntinos aos quais, quando estavam a morrer por amizade aos Romanos, os deuses nenhum auxílio prestaram.

Mas de todos os males desta Segunda Guerra Púnica, nenhum foi mais lamentável e mais digno de lastimáveis queixumes do que a destruição de Sagunto. Esta cidade da Hispânia tão amiga do Povo Romano, foi destruída por a este povo se manter fiel. De facto, Aníbal, rompendo o pacto com os Romanos, procurou um motivo para os excitar à guerra. Impôs por isso a Sagunto um assédio feroz. Quando a notícia chegou a Roma, foram enviados legados a Aníbal para lhe fazerem levantar o cerco. Votados ao desprezo, vão a Cartago e aí apresentam a sua queixa acerca da ruptura do pacto e, nada tendo conseguido, voltam a Roma. Enquanto estas coisas morosamente vão correndo, aquela mísera cidade, tão opulenta, a mais dedicada à sua República e à República Romana, ao oitavo ou nono mês foi destruída pelos Cartagineses. Ler a sua ruína e mais ainda descrevê-la, causa horror. Todavia, com brevidade a rememorarei, porque muito interessa ao assunto de que se trata. Primeiro, mirraram de fome, a ponto de alguns, diz-se, comerem os cadáveres dos seus. Finalmente, cansados de todas estas coisas, não querendo de forma alguma cair cativos nas mãos de Aníbal, atearam à vista de todos uma altíssima fogueira e a ela se lançaram e todos os seus mutuamente feridos pelo ferro.

Era aí que eles deviam fazer alguma coisa esses deuses glutões e tra­paceiros, ávidos das carnes dos sacrifícios, que andam a enganar as pessoas com a fumarada dos seus falazes vaticínios! Era aí que deviam fazer alguma coisa para socorrerem uma cidade tão amiga do Povo Romano e para a não deixarem morrer por fidelidade ao seu ju ramento! Afinal foram eles que presidiram como mediadores ao pacto que a ligou a Roma.

Foi por se ter mantido fiel ao pacto assinado, ao compromisso tomado, à palavra dada sob a sua presidência, que Sagunto foi sitiada, esmagada e destruída por um pérfido. Se estes mesmos deuses, mais tarde, com tempestades e raios, junto das muralhas de Roma, aterraram e afastaram Aníbal, deviam ter feito antes alguma coisa de semelhante. Ouso até dizer: teria sido mais honesto que eles, se o pudessem, desencadeassem a tempestade em benefício dos amigos de Roma em perigo por causa da sua fidelidade à aliança e então privados de todo o auxílio, do que desencadeá-la em benefício dos próprios Romanos que combatiam pelo seu próprio interesse e dispunham de largos recursos contra Aníbal. Se tivessem sido os sustentáculos da fidelidade e da glória romana, teriam dela desviado o grave crime da desgraça de Sagunto. Mas, na verdade, que loucura acreditar que Roma não sucumbiu às mãos de Aníbal vencedor, devido a esses deuses defensores, que não puderam socorrer Sagunto nem evitar que ela perecesse por amizade a Roma! Se o povo de Sagunto fosse cristão e tivesse de sofrer algo deste género pela fé evangélica, embora se não aniquilasse a si próprio pelo ferro e o fogo, sofrendo a sua ruína pela fé do Evangelho, teria, todavia, sofrido com esperança, pela qual acreditara em Cristo, não de uma recompensa por um tempo breve, mas por uma eternidade sem fim.

Mas, quanto a esses deuses, que se veneram, diz-se, e que é preciso venerar para assegurar a feliz posse de bens frágeis e transitórios, que nos responderão, a propósito da morte dos Saguntinos, os que os defendem e os desculpam, senão o que respondem a propósito da morte de Régulo? Há esta diferença: aquele era um só homem e aqui é toda uma cidade. Mas, num e noutro caso, a causa da morte foi a fidelidade ao juramento. Por causa dele quis um voltar para o inimigo e não quis a outra para ele passar. Será então que a fidelidade ao juramento provoca a ira dos deuses? Será que podem perecer, não só um homem isolado, mas até cidades inteiras, mesmo com deuses pro­pícios? Escolham o que quiserem. Se esses deuses se irritam com a fidelidade ao juramento, então que escolham os pérfidos adoradores. Se, porém, homens e cidades podem perecer, mesmo sendo eles propícios, vítimas de numerosos e graves tormentos, então o seu culto de nada serve para a felicidade na Terra.

Deixem, pois, de arder em ira os que se julgam uns desgraçados porque se perderam os sacrifícios aos deuses. Porque, apesar da presença e da benevolência destes, bem poderiam, não só queixar-se da sua desgraça, como agora fazem, mas serem aniquilados, como o foram Régulo e os saguntinos no meio de horríveis tormentos.

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] 1 O módio correspondia sensivelmente a 8,64 litros.

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