Vol. 1
LIVRO
III
CAPÍTULO
XVIII
Que
enormes desgraças afligiram os Romanos durante as Guerras Púnicas, apesar do
pedido de socorro em vão dirigido aos deuses.
De resto, já durante as Guerras Púnicas,
quando a vitória se mantinha vacilante e incerta entre os dois impérios e os
dois mais poderosos povos lançavam um contra o outro os seus ataques com todo o
seu poderio e grandes recursos, quantos pequenos reinos foram esmagados!
quantas extensas e célebres urbes foram destruídas! quantas cidades foram
desoladas e aniquiladas! As regiões e os territórios que em tão largas e fundas
extensões foram devastadas! As vezes que ambas as partes foram, ora vencedoras,
ora vencidas! Que perdas de homens entre os combatentes e as populações
inermes! Que tamanhas armadas destroçadas em batalhas navais ou tragadas por
tantas e tão diversas tempestades! Se fôssemos a contar ou a relembrar tudo
isto, mais não seríamos que mero historiador.
O Povo Romano, tomado então de grande medo,
recorria a vãos e ridículos remédios. Por indicação dos Livros Sibilinos
restabeleceram-se os jogos seculares, cuja celebração, de cem em cem anos, se
tinha estabelecido em tempos mais felizes, mas que, agora, por negligência,
tinham sido varridos da memória. Os pontífices renovaram também os jogos
consagrados aos deuses infernais e igualmente abolidos no passado durante os
anos melhores. E de facto, quando foram renovados, os infernos, enriquecidos
por uma tal afluência de mortos, também se regozijavam.
Entretanto, os míseros humanos — com as suas
raivosas guerras, suas cruentas hostilidades, suas vitórias funestas para ambas
as partes, — ofereciam aos demónios jogos grandiosos, aos infernos copiosos
banquetes.
Nada aconteceu na Primeira Guerra Púnica de
maior lástima do que terem sido os Romanos vencidos e o próprio Régulo feito
prisioneiro — do que já fizemos menção nos livros primeiro e segundo. Era
indubitavelmente um grande homem que antes tinha vencido e domado os
Cartagineses. Teria levado a termo a Primeira Guerra Púnica se, ávido em
excesso de glória e de louvor, não tivesse imposto aos Cartagineses fatigados
condições mais duras do que eles podiam suportar. Se o cativeiro, totalmente
imprevisto, e a mais humilhante escravidão, se o indefectível juramento e a
mais cruel das mortes daquele varão não obrigou tais deuses a corar de
vergonha, é porque na verdade são eles seres aéreos que não têm sangue.
Naqueles tempos também não faltaram, a dentro
das muralhas, as mais graves provações. O Tibre transbordou muito para além do
normal e devastou quase todos os bairros baixos da Urbe — uns foram arrastados
sob o ímpeto da torrente, outros esboroaram-se encharcados pelas águas durante
muito tempo estagnadas. A esta catástrofe sucedeu um incêndio ainda mais pernicioso
que, assenhoreando-se dos mais altos edifícios à volta do Foram, nem sequer
poupou o seu mais íntimo santuário, o Templo de Vesta, onde tinham o costume de
lhe dar uma vida como que perpétua renovando-lhe com grande cuidado a fogueira
mulheres virgens, a isso mais condenadas do que honradas. O fogo não se
mantinha então apenas vivo — tomara-se voraz. Aterradas com a sua impetuosidade
aquelas virgens não podiam livrar do incêndio os sagrados emblemas do destino
que já tinham trazido a desgraça a três cidades em que estiveram. O pontífice
Metelo, de certo modo esquecido da sua própria salvação, precipitou- -se, já
meio queimado. Mas nem o fogo o reconheceu a ele, nem havia ali divindade
alguma, porque, se tivesse havido, já teria fugido. Um homem pôde, pois, valer
mais aos emblemas de Vesta do que esta ao homem. Mas, se de si próprios não
repeliam o fogo, como podiam ajudar contra as águas e as chamas a cidade, de
cuja salvação se julgavam os mentores? Assim também este facto tomou patente
que eles nada podiam. Não lhes apresentaríamos estas objecções se eles
declarassem que esses emblemas sagrados se destinavam não a proteger bens
temporais, mas a simbolizar bens etemos. Assim, se essas coisas corporais e
visíveis vieram a perecer, em nada serão rebaixadas as realidades que
representavam, podendo ser novamente reparadas para os seus fins. Mas, na
verdade, com assombrosa cegueira, julgam que estes emblemas perecíveis podem
tom ar imperecíveis a salvação terrestre e a felicidade temporal da cidade. Por
isso, quando se lhes mostra que, apesar da sua presença, esses emblemas
sagrados não puderam impedir que a saúde fosse abalada nem que a desgraça
recaísse sobre eles, envergonham-se de mudar a opinião que não podem defender.
CAPÍTULO
XIX
Aflições
da Segunda Guerra Púnica em que se consumiram as energias de ambas as partes.
Da Segunda Guerra Púnica seria demasiado
longo recordar as calamidades dos dois povos combatendo em paragens tão grandes
e tão distantes que, como confessam os que se determinaram não tanto a contar
as guerras romanas como a louvar o Império Romano, o vencedor mais parecia
vencido. De facto, Aníbal surge na Hispânia, transpõe os montes Pirenéus,
atravessa a Gália a passo de corrida, galga os Alpes e, no decurso de uma tão
longa volta, vai aumentando as suas forças, tudo devasta, tudo subjuga e entra
pelas portas da Itália como uma torrente! Que cruentos combates se travaram!
Quantas vezes foram os Romanos vencidos! Quantas praças se passaram para o
inimigo, quantas foram tomadas e saqueadas! Que pugnas cruéis! Tantas vezes
gloriosas para Aníbal quantas desastrosas para Roma! Que direi da espantosa e
horrenda catástrofe de Canas, onde Aníbal, apesar de crudelíssimo, saciado de
tanta carnificina dos seus mais atrozes inimigos, diz-se que ordenou que se
poupassem os sobreviventes? Daí mandou a Cartago três módios [i] de anéis
de ouro. Com isto entenderiam que na batalha tinham morrido tantos nobres
romanos que a perda era mais fácil de medir que de contar — e daí se podia
calcular que a destruição da tropa restante (tanto mais numerosa quanto de
menor categoria), que jazia sem anel, mais se podia conjecturar do que
precisar. Seguiu-se uma tal carência de soldados, que os Romanos recrutavam
réus de crimes propondo-lhes a impunidade, escravos concedendo-lhes a liberdade
e, com estes elementos, conseguiram alistar (mas não restaurar) um vergonhoso
exército. A estes escravos — não os ofendamos — a estes libertos, que iriam
combater pela República Romana, faltaram as armas. Arrancaram-nas dos templos,
como se os Romanos dissessem aos deuses: entregai as armas que em vão
conservastes durante tanto tempo; talvez que os nossos escravos delas possam
tirar o proveito que vós, divindades nossas, não soubestes tirar. E como o
erário não bastava para pagar os soldos, lançou-se mão das riquezas privadas
para ajudar as despesas públicas. Cada um contribuiu com o que tinha, a ponto
que, exceptuando os anéis e as bulas (míseras insígnias da nobreza), ninguém
ficou com Ouro algum, nem mesmo o Senado, muito menos as restantes ordens e as
tribos. Quem suportaria os pagãos, se, em nossos tempos, fossem obrigados a tal
penúria? Apenas os podemos suportar quando, por um prazer supérfluo, entregam
mais aos histriões do que às legiões para lhes salvarem a vida em último
transe.
CAPÍTULO
XX
Destruição
dos Saguntinos aos quais, quando estavam a morrer por amizade aos Romanos, os
deuses nenhum auxílio prestaram.
Mas de todos os males desta Segunda Guerra
Púnica, nenhum foi mais lamentável e mais digno de lastimáveis queixumes do que
a destruição de Sagunto. Esta cidade da Hispânia tão amiga do Povo Romano, foi
destruída por a este povo se manter fiel. De facto, Aníbal, rompendo o pacto
com os Romanos, procurou um motivo para os excitar à guerra. Impôs por isso a
Sagunto um assédio feroz. Quando a notícia chegou a Roma, foram enviados
legados a Aníbal para lhe fazerem levantar o cerco. Votados ao desprezo, vão a
Cartago e aí apresentam a sua queixa acerca da ruptura do pacto e, nada tendo
conseguido, voltam a Roma. Enquanto estas coisas morosamente vão correndo,
aquela mísera cidade, tão opulenta, a mais dedicada à sua República e à
República Romana, ao oitavo ou nono mês foi destruída pelos Cartagineses. Ler a
sua ruína e mais ainda descrevê-la, causa horror. Todavia, com brevidade a
rememorarei, porque muito interessa ao assunto de que se trata. Primeiro,
mirraram de fome, a ponto de alguns, diz-se, comerem os cadáveres dos seus.
Finalmente, cansados de todas estas coisas, não querendo de forma alguma cair cativos
nas mãos de Aníbal, atearam à vista de todos uma altíssima fogueira e a ela se
lançaram e todos os seus mutuamente feridos pelo ferro.
Era aí que eles deviam fazer alguma coisa
esses deuses glutões e trapaceiros, ávidos das carnes dos sacrifícios, que
andam a enganar as pessoas com a fumarada dos seus falazes vaticínios! Era aí
que deviam fazer alguma coisa para socorrerem uma cidade tão amiga do Povo
Romano e para a não deixarem morrer por fidelidade ao seu ju ramento! Afinal
foram eles que presidiram como mediadores ao pacto que a ligou a Roma.
Foi por se ter mantido fiel ao pacto
assinado, ao compromisso tomado, à palavra dada sob a sua presidência, que
Sagunto foi sitiada, esmagada e destruída por um pérfido. Se estes mesmos
deuses, mais tarde, com tempestades e raios, junto das muralhas de Roma,
aterraram e afastaram Aníbal, deviam ter feito antes alguma coisa de
semelhante. Ouso até dizer: teria sido mais honesto que eles, se o pudessem,
desencadeassem a tempestade em benefício dos amigos de Roma em perigo por causa
da sua fidelidade à aliança e então privados de todo o auxílio, do que
desencadeá-la em benefício dos próprios Romanos que combatiam pelo seu próprio
interesse e dispunham de largos recursos contra Aníbal. Se tivessem sido os sustentáculos
da fidelidade e da glória romana, teriam dela desviado o grave crime da
desgraça de Sagunto. Mas, na verdade, que loucura acreditar que Roma não
sucumbiu às mãos de Aníbal vencedor, devido a esses deuses defensores, que não
puderam socorrer Sagunto nem evitar que ela perecesse por amizade a Roma! Se o
povo de Sagunto fosse cristão e tivesse de sofrer algo deste género pela fé
evangélica, embora se não aniquilasse a si próprio pelo ferro e o fogo,
sofrendo a sua ruína pela fé do Evangelho, teria, todavia, sofrido com
esperança, pela qual acreditara em Cristo, não de uma recompensa por um tempo
breve, mas por uma eternidade sem fim.
Mas, quanto a esses deuses, que se veneram,
diz-se, e que é preciso venerar para assegurar a feliz posse de bens frágeis e
transitórios, que nos responderão, a propósito da morte dos Saguntinos, os que
os defendem e os desculpam, senão o que respondem a propósito da morte de
Régulo? Há esta diferença: aquele era um só homem e aqui é toda uma cidade.
Mas, num e noutro caso, a causa da morte foi a fidelidade ao juramento. Por
causa dele quis um voltar para o inimigo e não quis a outra para ele passar.
Será então que a fidelidade ao juramento provoca a ira dos deuses? Será que
podem perecer, não só um homem isolado, mas até cidades inteiras, mesmo com
deuses propícios? Escolham o que quiserem. Se esses deuses se irritam com a
fidelidade ao juramento, então que escolham os pérfidos adoradores. Se, porém,
homens e cidades podem perecer, mesmo sendo eles propícios, vítimas de numerosos
e graves tormentos, então o seu culto de nada serve para a felicidade na Terra.
Deixem, pois, de arder em ira os que se
julgam uns desgraçados porque se perderam os sacrifícios aos deuses. Porque,
apesar da presença e da benevolência destes, bem poderiam, não só queixar-se da
sua desgraça, como agora fazem, mas serem aniquilados, como o foram Régulo e os
saguntinos no meio de horríveis tormentos.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
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