Vol. 1
CAPÍTULO
III
Quão imprudentemente os
Romanos acreditaram que os deuses Penates impotentes para guardarem Troia, os
haviam de proteger.
Eis
a que deuses se compraziam os Romanos de entregarem a defesa da Urbe!
Que
lamentável erro!
E
ardem em cólera contra nós quando dizemos estas coisas dos seus deuses!
Todavia,
não se enfurecem contra os seus escritores e até pagam, para os estudarem, a
professores que consideram dignos de honras e estipêndio público.
Precisamente
segundo Virgílio — que, como o maior e o mais brilhante de todos os poetas,
leem desde crianças, para que o espírito ainda tenro delas fique dele
impregnado de forma a não mais poder ser esquecido, conforme os versos de
Horácio:
A
vasilha que recentemente se impregnou de perfume, largo tempo o conservará.[i]
Precisamente,
segundo Virgílio, Juno aparece cheia de ódio aos Troianos, açulando Éolo, rei
dos ventos, contra eles, dizendo:
Um
povo meu inimigo vai sulcando as ondas do Tirreno; leva consigo, para Itália,
ílio e os Penates vencidos.[ii]
Foi
a estes Penates vencidos que homens prudentes tiveram que recomendar Roma para
que não fosse vencida?
Juno
falava assim como uma irada mulher que não sabe o que diz. E que diz Eneias,
tantas vezes chamado piedoso?
Não
será ele quem conta como
Panto,
filho de Otreu, sacerdote da cidadela de Febo, levando de rastos nas suas mãos
os objectos sagrados, os deuses vencidos e o seu netito, vem em louca correria
até aos meus umbrais? [iii]
Não
mostra que tais deuses — que não duvida de chamar vencidos — a ele foram
confiados em vez de ser ele a eles confiado, quando diz
Troia
confia-te os seus objectos sagrados e os seus penates? [iv]
Se,
pois, Virgílio considera estes deuses vencidos e até confiados a um homem para
conseguirem a fuga — não será uma loucura pensar que Roma foi acertadamente
confiada a tais protectores, e que só poderia ser assolada se os perdesse?
Mais
ainda — prestar culto a uns deuses vencidos como esses guias e defensores que
mais será senão ter, não divindades propícias, mas maus pagadores? [v]
Que
é mais razoável: acreditar que Roma teria evitado essa calamidade se os deuses
não tivessem perecido antes dela, ou que eles teriam perecido de há muito se
ela não tivesse feito o impossível por conservá-los?
De
facto, quem é que se não apercebe à primeira vista de quão louca foi a sua
presunção de se julgar invencível sob a protecção de defensores vencidos e de
atribuir a sua ruína à perda dos seus deuses protectores, quando a sua perdição
pode muito bem ter resultado de ter escolhido protectores perecíveis?
Não,
não era o prazer de mentir que impedia os poetas a escreverem e a cantarem
aquilo acerca dos deuses vencidos: era a verdade que os obrigava a confessá-lo
como homens de boa fé.
Estas
questões tratá-las-ei noutro lugar, mais oportuna, diligente e
pormenorizadamente.
Por
agora, vou tratar rapidamente conforme o plano traçado e as minhas possibilidades,
dos ingratos que, blasfemando, imputam a Cristo os males de que estão padecendo
como resultado da corrupção da sua vida.
Até
eles foram poupados por amor a Cristo, e nem sequer prestam atenção a esse
facto. Com sacrílega e perversa desenvoltura, servem-se contra este nome das
mesmas línguas de que hipocritamente se serviram para salvarem a vida — essas
línguas que, cheios de medo, refrearam nos lugares sagrados, para ficarem a salvo
e sem perigo, mas uma vez respeitados pelos inimigos por amor a Cristo, logo
vomitam maldições contra Ele.
CAPÍTULO
IV
O asilo de Juno em Troia a
ninguém salvou das mãos dos Gregos. Pelo contrário, as basílicas dos apóstolos
livraram todos os que a elas se acolheram do furor dos bárbaros.
A
própria Troia, como disse, mãe do Povo Romano, não pôde defender nos templos os
seus habitantes do fogo e ferro dos Gregos, que prestavam culto aos mesmos
deuses.
Todavia,
no
asilo sagrado de Juno, os guardiões escolhidos — Fénix e o cruel Ulisses—
guardavam os despojos da guerra.
Por aqui e por ali, se
amontoavam os tesouros de Troia, retirados dos templos em chamas: mesas aos
deuses consagradas, taças de ouro maciço, vestes roubadas.
À volta, em pé e em longa
fila, estão apavoradas as mães com os filhinhos. [vi]
É
isto: foi escolhido o lugar consagrado a tão grande deusa, não para impedir a
saída dos cativos, mas antes para os manter ali cativos.
Compara
agora aquele asilo — que não é de qualquer divindade gregária, nem da
turbamulta dos deuses, mas da própria irmã e esposa de Júpiter, rainha de todos
os deuses — , compara-o com os lugares dedicados aos nossos Apóstolos.
Daquele,
levavam-se os despojos roubados aos deuses e aos templos incendiados, não para
os oferecerem aos vencidos mas para os repartirem pelos vencedores — para aqui,
bem ao contrário, trazia-se com honra e até com um sagrado respeito o que fosse
encontrado em outra parte pertencente a estes lugares;
ali,
perdia-se a liberdade — aqui, ficava ela assegurada;
ali,
assegurava-se o cativeiro — aqui, proibia-se;
ali,
eram encerrados como presa da ambição dos inimigos — para aqui os traziam os
inimigos, movidos de compaixão, para lhes concederem a liberdade.
Enfim,
àquele templo da deusa Juno, tinha-o escolhido o orgulho e a avareza dos frívolos
gregos — ao passo que estas basílicas de Cristo foram escolhidas pela humildade
e a compaixão mesmo de bárbaros desumanos.
A
menos que os Gregos, naquela sua vitória, poupassem os templos dos deuses
comuns e não tivessem ousado ferir ou reduzir ao cativeiro os infelizes e vencidos
Troianos lá refugiados; nesse caso, Virgílio teria mentido ao jeito dos poetas.
Mas
é ele mesmo quem nos descreve o costume dos inimigos quando saqueiam cidades.
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[i] Quo
semel est imbuta recens servabit odorem Testa diu.
Horácio, Epist. I, 2, 69-70.
[ii] Gens
inimica mihi Tyrrhenum navigat aequor, Ilium in Italiam portans victosque
penates.
Vergílio, Eneida, I, 67-68.
[iii]
Panthus Othryades, areis Phoebique sacerdos, Sacra manu, uictosque deos,
parvumque nepotem Ipse trahit, cursuque amens ad limina tendit.
Vergílio, Eneida, II, 319-321.
[iv]
Sacra suosque tibi commendat Troia Penates?
Vergílio, Eneida, II, 293.
[v]
Neste passo Santo Agostinho faz um jogo de palavras que na tradução perde muito
do seu vigor e toda a sua graça. O texto latino reza assim: quid est aliud quam
tenere non numina bona se d nomirn mala? À letra: «que mais é senão, ter não
bons deuses mas créditos (títulos de dívida) maus»?
Efectivamente, na linguagem jurídica, nomen
significa nome, título, de um devedor, e, portanto título de crédito. Os mala
nomina são portanto os títulos incobráveis. Cf. Ernout-Meillet: Dic. Etymol, de
la langue lat.. Paris 1939
[vi]
Junonis asylo
Custodes lecti, Phoenix et dims Ulyxes, Praedam
adservabant; hue undique Troia gaza Incensis erepta adytis, mensaeque deorum Crateresque
auro solidi captivaque vestis Congeritur. Pueri et pavidae longo or dine matres
Stant circum.
Vergílio, Eneida, II, 761-767.
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