SE
É POSSÍVEL ENSINAR ALGO SEM SINAIS.
AS
COISAS NÃO SE APRENDEM PELAS PALAVRAS
AGOSTINHO
– Lembras quantas voltas
demos para chegar a tão modesto resultado? Desde o começo da nossa conversa,
que dura já um bom tempo, fatigamo-nos bastante para descobrir estas três coisas:
1) se era possível ensinar
sem sinais;
2) se havia sinais preferíveis
às coisas que expressam;
3) se o conhecimento das
coisas pode ser melhor que os sinais.
Mas há ainda uma quarta que
gostaria de saber agora: se as coisas que encontramos, estão para ti claras e
não te deixam possibilidade de dúvida.
ADEODATO
– Seria mesmo agradável,
depois de tantos rodeios, que tivéssemos chegado à certeza, mas esta pergunta
gera em mim certa inquietação, que me impede de assentir.
Tenho a impressão que tal
não me perguntarias se não tivesses alguma objeção a apresentar: e o emaranhado
do assunto não me permite ver tudo e responder com segurança, pois, entre
tantos véus, temo que se esconda algo que os olhos da minha mente não possam
divisar.
AGOSTINHO
– Agrada-me a tua dúvida,
porque revela uma alma sem leviandade, e isto garante imensamente a tranquilidade.
É de facto difícil não se
perturbar quando o que nós tínhamos como ponto de consenso fácil e pacífico é
derrubado e como que arrebatado das mãos por discussões.
Por isso, como é justo ceder
depois de observar e examinar bem os motivos, assim é perigoso conservar como
coisa certa o que não é.
Às vezes, quando desmorona
aquilo que tínhamos como estável e permanente, pode haver o receio que se gere
tão grande aversão ou medo da razão, que nos pareça não podermos mais depositar
nossa fé nem sequer na verdade mais evidente.
Mas, vamos adiante?
Reexaminemos, agora um pouco
mais rapidamente, se tens razão de duvidar.
Pergunto: se alguém, que não
conheça as armadilhas que se tendem aos pássaros com varas e visco, deparasse
com um caçador com este arnês, e que vá indo pelo caminho sem ter começado
ainda a sua tarefa e, vendo o caçador, apressasse o passo, e estranhando no seu
íntimo tudo aquilo, se perguntasse o que poderiam significar aqueles
apetrechos; e o caçador, sentindo-se observado e admirado, para fazer mostra de
si, exibisse a cana e o falcão, conseguisse atrair e apanhar um passarinho,
diga-me: o caçador, sem usar de sinais, mas usando a própria coisa, não estaria
a ensinar ao seu espectador o que esse queria saber?
ADEODATO
– Parece-me que o caso é
semelhante àquele que mencionei, isto é, de quem pergunta o que é caminhar.
Neste caso também não acho
que foi mostrada toda a arte de caçar.
AGOSTINHO
– É simples desfazer-se
desta impressão; eu acrescento: se aquele espectador fosse inteligente o
bastante para compreender por inteiro a arte de caçar só pelo que viu, isto
bastaria para demonstrar que alguns homens podem ser ensinados sem sinais sobre
algumas coisas, embora não sobre todas.
ADEODATO
– No caso, também posso
acrescentar isto: quem pergunta o que é caminhar, se for bem inteligente,
compreenderá por inteiro o que é caminhar, bastando que se lhe mostrem uns
poucos passos.
AGOSTINHO
– Podes, eu concordo com
prazer.
Chegamos, pois, a esse
resultado, ou seja, que umas coisas podem ser ensinadas sem sinais, sendo
portanto falso aquilo que há pouco nos parecia verdadeiro, isto é, não existir
nada que se possa mostrar ou ensinar sem sinais; e acode à nossa mente não uma
ou duas coisas, mas milhares que, sem precisar de sinal algum podem mostrar-se por
si mesmas.
Poderemos, pois, duvidar, eu
te pergunto?
Sem considerar os muitos espectáculos
em que uns actores representam nos teatros as coisas sem usar sinais, Deus e a
natureza não apresentam e mostram por si mesmos, ao observador, o sol e a luz,
que tudo banha e recobre, a lua e as estrelas, a terra e os mares com
infinidade de criaturas que os habitam?
Todavia, se observarmos isto
com maior atenção, talvez não encontremos nada que se possa aprender pelos seus
próprios sinais.
De facto, se me for
apresentado um sinal e eu não souber de que coisa é o sinal, este nada poderá
me transmitir; se, ao contrário, já souber de que é sinal, que estará me
ensinando?
Assim, quando leio “Et saraballae eorum non sunt immutatae”
(E as suas coifas não foram trocadas), a palavra (coifas) não me explica a
coisa que significa.
Pois se uns objectos que
servem para cobrir a cabeça têm este nome de ‘saraballae” (coifas), terei porventura, depois de ouvi-lo,
aprendido o que é cabeça e o que é cobertura?
Ao contrário, eu já as
conhecia antes, pois delas adquiri conhecimento sem que as ouvisse chamar assim
por outrem, mas vendo-as com os meus próprios olhos.
Quando as duas sílabas da
palavra “caput” (cabeça) soaram pela
primeira vez ao meu ouvido, desconhecia o seu significado como quando ouvi e li
pela primeira vez “saraballae”.
Porém, ouvindo repetidamente
dizer “caput” (cabeça), e notando e
observando a palavra quando era pronunciada, reparei facilmente que ela
significava aquela coisa que eu bem conhecia, por tê-la visto.
Mas antes de entender seu
significado, a palavra era para mim apenas um som, e aprendi que era um sinal
quando a associei àquilo de que era sinal, e aprendi o seu significado pela
visão directa do objecto.
Vemos, pois, que é mais pelo
conhecimento da coisa que se aprende o sinal do que o contrário.
Para que compreendas isto
com maior clareza, imagina que estejamos ouvindo agora, pela primeira vez,
pronunciar a palavra “caput”
(cabeça).
(Lembra-te que buscamos o
conhecimento não da coisa que é significada, mas do próprio sinal, conhecimento
que nós não temos enquanto ignorarmos o que sinaliza).
Se, na nossa pesquisa, nos
mostrassem ou apontassem com o dedo a própria coisa, ao vê-la teríamos
conhecimento do sinal; isto é, saberíamos o que quer dizer aquele sinal que
tínhamos ouvido, mas não compreendido. No sinal há duas coisas: o som e o significado;
ora, o som não foi certamente recebido como sinal de algo, mas como simples
verberação no ouvido,
enquanto o significado foi apanhado pela visão da coisa que é significada.
Como o apontar do dedo só
pode significar o objecto que o dedo está apontando, e como o dedo não está
apontado pelo sinal, mas para a parte do corpo que se chama “caput” (cabeça), ocorre que, pelo gesto,
não venho a conhecer a coisa, que já conhecia, nem o sinal que o dedo não estava
apontado.
Mas não quero colocar grande
ênfase no gesto de apontar o dedo, pois o tenho mais como sinal do acto de
indicar do que das próprias coisas indicadas; vê o que ocorre quando dizemos: “ecce” (eis), e habitualmente
acompanhamos este advérbio com o gesto de apontar como se não bastasse um só
desses sinais para indicar.
E procurarei ao máximo convencer-te,
se o puder, disto: que nada aprendemos por meio dos sinais chamados palavras;
antes, como já disse, aprendemos o valor da palavra, ou seja, o significado
oculto no som pelo conhecimento ou da percepção da coisa significada; mas não a
própria coisa mediante o significado.
E o que disse da cabeça,
poderia dizer do que serve para cobrir a cabeça e de infindáveis outras coisas;
que, embora as conhecesse, nunca, até agora, tive o conhecimento daquelas “saraballae” (coifas). Se alguém com um
gesto me apontasse estas “saraballae”
(coifas) ou as pintasse, ou me mostrasse algo de parecido, não diria, como
aliás poderia se quisesse falar um pouco mais, que não mas ensinou, mas que não
me ensinou com as palavras o que está diante de mim. Se, ao tê-las diante de
mim eu fosse avisado com as palavras:
“Ecce saraballae” (eis as coifas), aprenderia uma coisa que não
sabia, não pelas palavras que foram pronunciadas, mas pela visão directa da
coisa em si, à qual associei o nome, cujo valor gravei.
Pois, quando aprendi a própria
coisa, não acreditei nas palavras de outrem, mas nos meus olhos; talvez
acreditasse também nelas, mas apenas como um alerta, ou seja, para procurar com
os olhos o objecto em questão.
(Revisão
de versão portuguesa por ama)
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