04/08/2016

Leitura espiritual

Leitura Espiritual

Temas actuais do cristianismo 



São Josemaria Escrivá

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Mas nem tudo depende dos pais. Os filhos têm de pôr também alguma coisa da sua parte. A juventude sempre teve uma grande capacidade de entusiasmo por todas as coisas grandes, pelos ideais elevados, por tudo o que é autêntico. Convém ajudá-los a compreender a beleza despretensiosa - por vezes calada e sempre revestida de naturalidade - que há na vida dos seus pais. Que reparem, sem lhes causar tristeza, no sacrifício que fizeram por eles, na sua abnegação - muitas vezes heróica - para manter a família. E que os filhos aprendam também a não dramatizar, a não representar o papel de incompreendido. Que não esqueçam que estarão sempre em dívida para com os pais e que o modo de corresponderem - já que não podem pagar o que devem - deve ser feito de veneração, de carinho grato, filial.

Sejamos sinceros: a família unida é o normal. Há atritos, diferenças... Mas isto são coisas banais, que, até certo ponto, contribuem inclusivamente para dar sabor aos nossos dias. São insignificâncias que o tempo supera sempre. Depois, só fica o estável, que é o amor, um amor verdadeiro - feito de sacrifício - e nunca fingido, que os leva a preocuparem-se uns com os outros, a adivinhar um pequeno problema e a sua solução mais delicada. E, porque tudo isto é normal, a maior parte das pessoas entendeu-me muito bem quando me ouviu chamar - já o venho repetindo desde a década de 20 - dulcíssimo preceito ao quarto mandamento do Decálogo.

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Talvez como reacção contra uma educação religiosa coactiva, reduzida às vezes a uma série de práticas rotineiras e sentimentais, parte da juventude de hoje prescinde quase totalmente da piedade cristã, porque a interpreta como beatice. Em sua opinião, qual é a solução para esse problema?

A solução é a que a pergunta traz já implícita: ensinar - primeiro com o exemplo e depois com a palavra - em que consiste a verdadeira piedade. A beatice não é mais do que uma triste caricatura pseudo-espiritual, fruto geralmente da falta de doutrina e também de certa deformação no humano. É lógico que repugne a quem ama o que é autêntico e sincero.

Vi com alegria como penetra nos jovens - nos de hoje como nos de há quarenta anos - a piedade cristã, quando a contemplam feita vida sincera, quando entendem que fazer oração é falar com o Senhor como se fala com um pai, com um amigo, sem anonimato, com um trato pessoal, uma conversa íntima; quando se procura que ressoem nas suas almas aquelas palavras de Jesus Cristo, que são um convite ao encontro confiante: vos autem dixi amicos (Jn. 15, 15), chamei-vos amigos; quando se faz um apelo forte à sua fé para que vejam que o Senhor é o mesmo ontem, hoje e sempre (Hebr. 13, 8).

Por outro lado, é muito necessário que vejam como essa piedade simples e cordial exige também o exercício das virtudes humanas e que não se pode reduzir a uns tantos actos de devoção semanais ou diários, mas que tem de penetrar na vida inteira, que tem de dar sentido ao trabalho, ao descanso, à amizade, à diversão, a tudo. Não podemos ser filhos de Deus só de vez em quando, ainda que haja alguns momentos especialmente dedicados a considerá-lo, a penetrarmo-nos desse sentido da nossa filiação divina, que é a essência da piedade.

Disse há pouco que a juventude entende tudo isto muito bem. E agora acrescento que quem procura vivê-lo sente-se sempre jovem. O cristão, mesmo que seja um velho de oitenta anos, se viver em união com Jesus Cristo, pode saborear com toda a verdade as palavras que se rezam ao pé do altar: subirei ao altar de Deus, do Deus que alegra a minha juventude [ii].

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Então, parece-lhe importante educar os filhos desde pequenos na vida de piedade? Pensa que na família se devem realizar actos de piedade?

Considero que é precisamente o melhor caminho para dar aos filhos uma autêntica formação cristã. A Sagrada Escritura fala-nos dessas famílias dos primeiros cristãos - a Igreja doméstica, diz S. Paulo [iii] - às quais a luz do Evangelho dava novo impulso e nova vida.

Em todos os ambientes cristãos se conhecem por experiência os bons resultados que dá essa natural e sobrenatural iniciação à vida de piedade, feita no calor do lar. A criança aprende a colocar o Senhor na linha dos primeiros e fundamentais afectos, aprende a tratar a Deus como Pai e à Virgem como Mãe, aprende a rezar seguindo o exemplo dos pais. Quando se compreende isto, vê-se a enorme tarefa apostólica que os pais podem realizar e como têm obrigação de ser sinceramente piedosos, para poderem transmitir - mais do que ensinar - essa piedade aos filhos.

E os meios? Há práticas de piedade - poucas, breves e habituais - que sempre se viveram nas famílias cristãs, e entendo que são maravilhosas: a oração antes e depois das refeições, a recitação do Terço juntos - apesar de não faltar, nestes tempos, quem ataque essa solidíssima devoção mariana -, as orações pessoais ao levantar e ao deitar. Tratar-se-á de costumes diversos segundo os lugares, mas penso que sempre se deve fomentar algum acto de piedade, que os membros da família realizem juntos, de forma simples e natural, sem beatices.

Dessa maneira conseguiremos que Deus não seja considerado um estranho a quem se vai ver uma vez por semana à igreja, ao Domingo. Que Deus seja visto e tratado como é na realidade, também no meio do lar, porque, como disse o Senhor, onde estão dois ou três reunidos em meu nome, aí estou Eu no meio deles [iv].

Digo com gratidão e com orgulho de filho que continuo a rezar - de manhã e à noite e em voz alta - as orações que aprendi, quando era criança, dos lábios de minha mãe. Essas orações levam-me a Deus, fazem-me sentir o carinho com que me ensinaram a dar os meus primeiros passos de cristão e, oferecendo ao Senhor o dia que começa ou dando-Lhe graças pelo que acaba, peço a Deus que aumente no Céu a felicidade dos que especialmente amo, e no Céu depois nos mantenha unidos para sempre.

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Continuemos, se mo permite, com a juventude. Através da secção Gente jovem, da nossa revista, chegam-nos muitos problemas próprios deles. Um, muito frequente, é a imposição que às vezes os pais fazem no momento de determinar a orientação dos filhos. Isto sucede tanto na orientação do curso ou da profissão, como na escolha de noivo, ou, mais ainda, se pretendem seguir o chamamento de Deus para se dedicar ao serviço das almas. Haverá alguma justificação para essa atitude dos pais? Não será uma violação da liberdade, imprescindível para chegar à maturidade pessoal?

Em última instância, está claro que as decisões que determinam o rumo de uma vida deve tomá-las cada um pessoalmente, com liberdade, sem coacção nem pressão de espécie alguma.

Isto não quer dizer que não seja necessária, ordinariamente, a intervenção de outras pessoas. Precisamente porque são passos decisivos, que afectam uma vida inteira, e porque a felicidade depende em grande parte de como se dêem, é lógico que requeiram serenidade, que se evite a precipitação, que exijam responsabilidade e prudência. E uma parte da prudência consiste justamente em pedir conselho. Seria presunção - que se costuma pagar cara - pensar que podemos decidir sem a graça de Deus e sem o calor e a luz de outras pessoas, especialmente dos nossos pais.

Os pais podem e devem prestar aos filhos uma ajuda preciosa, descobrindo-lhes novos horizontes, comunicando-lhes a sua experiência, fazendo-os reflectir para que não se deixem arrastar por estados emocionais passageiros, oferecendo-lhes uma apreciação realista das coisas.

Umas vezes, prestarão essa ajuda com o seu conselho pessoal; outras, animando os seus filhos a recorrer a outras pessoas competentes: a um amigo sincero e leal, a um sacerdote douto e piedoso, a um perito em orientação profissional.

Mas o conselho não tira a liberdade, dá elementos de opinião, e isso amplia as possibilidades de escolha e faz com que a decisão não seja determinada por factores irracionais. Depois de ouvir os pareceres de outros e de ponderar tudo bem, chega um momento em que é preciso escolher, e então ninguém tem o direito de violar a liberdade. Os pais devem precaver-se da tentação de se quererem projectar indevidamente nos filhos - de construí-los segundo as próprias preferências -, devem respeitar as inclinações e as aptidões que Deus dá a cada um. Se há verdadeiro amor, isto, em geral, torna-se simples. Inclusive no caso extremo, quando o filho toma uma decisão que os pais têm fortes motivos para julgar errada e até para prevê-la como origem de infelicidade, a solução não está na violência mas em compreender e - mais de uma vez - em saber permanecer a seu lado para ajudá-lo a superar as dificuldades e, se fosse necessário, para extrair daquele mal todo o bem possível.

Os pais que amam deveras e procuram sinceramente o bem dos seus filhos, depois dos conselhos e das considerações oportunas, devem-se retirar com delicadeza, para que nada prejudique o grande bem da liberdade que torna o homem capaz de amar e servir a Deus. Devem lembrar-se de que o próprio Deus quer ser amado e servido com liberdade, e respeita sempre as nossas decisões pessoais: Deus deixou o homem - diz-nos a Escritura - nas mãos do seu livre-arbítrio [v].

Umas palavras mais para me referir expressamente ao último dos casos concretos expostos - a decisão de dedicar-se ao serviço da Igreja e das almas. Quando pais católicos não compreendem essa vocação, penso que fracassaram na sua missão de formar uma família cristã, que nem sequer são conscientes da dignidade que o Cristianismo dá à sua própria vocação matrimonial. Aliás, a experiência que tenho no Opus Dei é muito positiva. Costumo dizer aos sócios da Obra que devem noventa por cento da sua vocação aos seus pais, porque os souberam educar e os ensinaram a ser generosos. Posso assegurar que na imensa maioria dos casos - praticamente na totalidade - os pais não só respeitam como também amam essa decisão dos filhos e que passam a ver a Obra como uma ampliação da própria família. É uma das minhas grandes alegrias e uma confirmação mais de que, para sermos muito divinos, temos de ser também muito humanos.

(cont)





[i] Entrevista realizada por Pilar Salcedo, publicada em Telva (Madrid), em 1 de Fevereiro de 1968 e reproduzida em Mundo Cristiano (Madrid) em 1 de Março do mesmo ano.
[ii] Ps. XVII, 4
[iii] 1 Cor. 16, 1 9
[iv] Mt 18, 20
[v] Ece. 15, 14

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