13/08/2016

Leitura espiritual

Leitura Espiritual


Cristo que passa



São Josemaria Escrivá
            
O outro inimigo, escreve S. João, é a concupiscência dos olhos, uma avareza de fundo que nos leva a valorizar apenas o que se pode tocar.
Os olhos ficam como que pegados às coisas terrenas e, por isso mesmo, não sabem descobrir as realidades sobrenaturais.
Podemos, portanto, socorrer-nos desta expressão da Sagrada Escritura para nos referirmos à avareza dos bens materiais e, além disso, àquela deformação que nos leva a observar o que nos rodeia - os outros, as circunstâncias da nossa vida e do nosso tempo - só com visão humana.

Os olhos da alma embotam-se; a razão crê-se auto-suficiente para compreender todas as coisas, prescindindo de Deus.
É uma tentação subtil, que se apoia na dignidade da inteligência, da inteligência que o nosso Pai, Deus, deu ao homem para que O conheça e O ame livremente.
Arrastada por essa tentação, a inteligência humana considera-se o centro do universo, entusiasma-se de novo com a falsa promessa da serpente, sereis como deuses, e, enchendo-se de amor por si mesma, volta as costas ao amor de Deus.

Deste modo, a nossa existência pode entregar-se sem condições nas mãos do terceiro inimigo, a superbia vitae.
Não se trata simplesmente dos pensamentos efémeros de vaidade ou de amor-próprio; é uma presunção generalizada.
Não nos enganemos, porque este é o pior dos males, a raiz de todos os extravios.
A luta contra a soberba há-de ser constante, pois não se disse já, dum modo tão gráfico, que essa paixão só morre um dia depois da morte da pessoa?
É a altivez do fariseu, a quem Deus se mostra renitente em justificar por encontrar nele uma barreira de auto-suficiência.
É a arrogância que conduz a desprezar os outros homens, a dominá-los, a maltratá-los, porque, onde houver soberba aí haverá também ofensa e desonra.


7             
A misericórdia de Deus

Começa hoje o tempo do Advento e é bom que tenhamos considerado as insídias destes inimigos da alma: a desordem da sensualidade e a leviandade; o desatino da razão que se opõe ao Senhor; a presunção altaneira, esterilizadora do amor a Deus e às criaturas.

Todas estas disposições de ânimo são obstáculos certos e o seu poder perturbador é grande.
Por isso a liturgia faz-nos implorar a misericórdia divina: a ti elevo a minha alma, Senhor, meu Deus.
E em ti confio; não seja eu confundido!
Não riam de mim os meus inimigos, rezamos no intróito.
E na antífona do ofertório iremos repetir: espero em ti,; que eu não seja confundido!

Agora que se aproxima o tempo da salvação, dá gosto ouvir dos lábios de S. Paulo: depois de Deus, Nosso Salvador, ter manifestado a sua benignidade e o seu amor para com os homens, libertou-nos, não pelas obras de justiça que tivéssemos feito, mas por sua misericórdia.

Se lerdes as Santas Escrituras, descobrireis constantemente a presença da misericórdia de Deus: enche a terra, estende-se a todos os seus filhos, super omnem carnem; cerca-nos, antecede-nos, multiplica-se para nos ajudar e foi continuamente confirmada.
Deus tem-nos presente na sua misericórdia, ao ocupar-se de nós como Pai amoroso.
É uma misericórdia suave, agradável, como a nuvem que se desfaz em chuva no tempo da seca.

Jesus Cristo resume e compendia toda a história da misericórdia divina: Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.
E, noutra ocasião: Sede pois misericordiosos como também vosso Pai é misericordioso.
Ficaram também muito gravadas em nós, entre muitas outras cenas do Evangelho, a clemência com a mulher adúltera, a parábola do filho pródigo, a da ovelha perdida, a do devedor perdoado, a ressurreição do filho da viúva de Naim.
Quantas razões de justiça para explicar este grande prodígio!
Era o filho único daquela pobre viúva; era ele quem dava sentido à sua vida; só ele poderia ajudá-la na sua velhice!
Mas Cristo não faz o milagre por justiça; fá-lo por compaixão, porque interiormente se comove perante a dor humana.

Que segurança deve produzir-nos a comiseração do Senhor!
Se ele clamar por mim, ouvi-lo-ei, porque sou misericordioso.
É um convite, uma promessa que não deixará de cumprir. Aproximemo-nos, pois, confiadamente do trono da graça a fim de alcançar misericórdia e o auxílio da graça, no tempo oportuno.
Os inimigos da nossa santificação nada poderão, porque essa misericórdia de Deus nos defende.
E se caímos por nossa culpa e da nossa fraqueza, o Senhor socorre-nos e levanta-nos.
Tinhas aprendido a afastar a negligência, a afastar de ti a arrogância, a adquirir piedade, a não ser prisioneiro das questões mundanas, a não preferir o caduco ao eterno.
Mas, como a debilidade humana não pode manter o passo decidido num mundo resvaladiço, o bom médico indicou-te também os remédios contra a desorientação e o juiz misericordioso não te negou a esperança do perdão.

            
Correspondência humana

É neste clima da misericórdia de Deus que se desenvolve a existência do cristão.
Este é o âmbito do seu esforço por se comportar como filho do Pai.
E quais são os principais meios para conseguirmos que a vocação se mantenha firme?
Vou dizer-te hoje dois, que são dois eixos vivos da conduta cristã: a vida interior e a formação doutrinal, o conhecimento profundo da nossa fé.

Vida interior, em primeiro lugar.
Há ainda tão pouca gente que entenda isto!
Ao ouvir falar de vida interior, pensa-se logo na obscuridade do templo, quando não no ambiente abafado de algumas sacristias. Estou há mais de um quarto de século a dizer que não se trata disso. Eu falo da vida interior de cristãos normais e correntes, que habitualmente se encontram em plena rua, ao ar livre; e que na rua, no trabalho, na família e nos momentos de diversão estão unidos a Jesus todo o dia.
E o que é isto senão vida de oração contínua?
Não é verdade que compreendeste a necessidade de ser alma de oração, numa intimidade com Deus que te leva a endeusar-te?
Esta é a fé cristã e assim o compreenderam sempre as almas de oração. Torna-se Deus aquele homem, escreve Clemente de Alexandria, porque quer o mesmo que Deus quer.

A princípio custará.
É preciso esforçarmo-nos por nos dirigir ao Senhor, por lhe agradecermos a sua piedade paternal e concreta para connosco.
A pouco e pouco o amor de Deus torna-se palpável - embora isto não seja coisa de sentimentos - como uma estocada na alma.
É Cristo que nos persegue amorosamente: Eis que estou à porta e chamo.
Como anda a tua vida de oração?
Não sentes às vezes, durante o dia, desejos de falar mais devagar com Ele?
Não Lhe dizes: logo vou contar-te isto e aquilo; logo vou conversar sobre isso contigo?

Nos momentos dedicados expressamente a esse colóquio com o Senhor o coração expande-se, a vontade fortalece-se, a inteligência - ajudada pela graça - enche a realidade humana com a realidade sobrenatural.
E, como fruto, sairão sempre propósitos claros, práticos, de melhorares a tua conduta, de tratares delicadamente, com caridade, todos os homens, de te empenhares a fundo - com o empenho dos bons desportistas - nesta luta cristã de amor e de paz.

A oração torna-se contínua como o bater do coração, como as pulsações. Sem essa presença de Deus não há vida contemplativa.
E sem vida contemplativa de pouco vale trabalhar por Cristo, porque em vão se esforçam os que constroem se Deus não sustenta a casa.


(cont)

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