Tempo de Advento
Evangelho:
Mt 1, 18-25
18 A geração de Jesus Cristo foi deste modo: Estando Maria, Sua mãe,
desposada com José, antes de coabitarem achou-se ter concebido por obra do
Espírito Santo. 19 José, seu esposo, sendo justo, e não querendo
expô-la a difamação, resolveu repudiá-la secretamente. 20 Pensando
ele estas coisas, eis que um anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos, e lhe
disse: «José, filho de David, não temas receber em tua casa Maria, tua esposa,
porque o que nela foi concebido é obra do Espírito Santo. 21 Dará à
luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus, porque Ele salvará o Seu povo dos
seus pecados».22 Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que foi
dito pelo Senhor por meio do profeta que diz: 23 “Eis que a Virgem
conceberá e dará à luz um filho, e Lhe porão o nome de Emanuel, que significa:
Deus connosco”. 24 Ao despertar José do sono, fez como lhe tinha mandado
o anjo do Senhor, e recebeu em sua casa Maria, sua esposa. 25 E, sem
que ele a tivesse conhecido, deu à luz um filho, e pôs-Lhe o nome de Jesus.
Comentário:
Uma vez mais, a liturgia, desta vez
por São Mateus, coloca à nossa consideração o acontecimento maior da história
humana.
Tem, naturalmente, uma intenção
declarada: que todos gravem no seu coração estes momentos e, meditando neles,
encontremos o exemplo que necessitamos imitar para fortalecer a nossa fé, confirmar
a nossa esperança, aumentar o nosso amor.
(ama, comentário sobre Mt 1, 18-24, Monte
Real, 2013.12.22)
Leitura espiritual
Existe Deus?
Verdade do cristianismo? -
3
A unidade fundamental
(embora crítica) com a racionalidade filosófica, presente na noção de Deus,
confirma-se e concretiza-se agora na unidade igualmente crítica com a moral
filosófica.
Assim como no campo do
religioso o cristianismo superava os limites de uma escola de sabedoria
filosófica, justamente porque o Deus pensado se deixava encontrar como um Deus
vivo, assim também aqui ocorreu uma superação da teoria ética numa práxis
moral, vivida em comum e feita concreta, na qual a perspectiva filosófica é
transcendida e transposta para a acção real, sobretudo graças à concentração de
toda a moral no duplo mandamento do amor a Deus e ao próximo.
Simplificando, poderíamos
dizer que o cristianismo convencia pela união da fé com a razão e pela
orientação da acção para a caritas, para a solicitude amorosa pelos que sofrem,
pelos pobres e pelos fracos, para lá de toda a diferença de condição.
Esta força íntima do
cristianismo pode ver-se, com clareza, no modo como o imperador Juliano tentou
restabelecer o paganismo numa forma renovada.
Como pontifex maximus da religião restaurada dos antigos deuses,
procurou instituir – o que nunca antes existira – uma hierarquia pagã, feita de
sacerdotes e metropolitas.
Os sacerdotes deviam ser
exemplos de moralidade; deviam dedicar-se ao amor de deus (a divindade suprema
entre os deuses) e do próximo.
Eram obrigados a realizar
actos de caridade para com os pobres, já não lhes era permitido ler as comédias
licenciosas e os romances eróticos, e deviam pregar nos dias de festa sobre um
tema filosófico para instruir e formar o povo.
Teresio Bosco diz
justamente, a este respeito, que o imperador tentava deste modo, não
restabelecer o paganismo, mais cristianizá-lo – numa síntese limitada ao culto
dos deuses, de racionalidade e religião.
Olhando
retrospectivamente, podemos dizer que a força que transformou o cristianismo
numa religião mundial consistiu na sua síntese entre razão, fé e vida; esta
síntese condensou-se precisamente na expressão religio vera.
Impõe-se, por isso, cada
vez mais a questão: porque é que, hoje,
esta síntese já não convence?
Porque é que, hoje, ao
invés, surgem contraditórios e até reciprocamente exclusivos a racionalidade e
o cristianismo?
Que é que na
racionalidade?
Que é que mudou no
cristianismo?
Houve um tempo em que o
neoplatonismo, sobretudo Porfírio, contrapôs à síntese cristã uma outra
interpretação da relação entre filosofia e religião, uma interpretação que
tentava ser uma refundação filosófica da religião politeísta.
Ora, hoje, este modo de
harmonizar a religião e a racionalidade parece impor-se, de novo, como a forma
de religiosidade ajustada à consciência moderna.
Porfírio formula assim a
sua primeira ideia fundamental: latet
omne verum, “oculta está toda a verdade”.
Recordemos a parábola do
elefante, atestada justamente pela concepção em que budismo e neoplatonismo se
encontram.
De acordo com ela, sobre a
verdade, sobre Deus, não há certeza alguma, apenas opiniões.
Na crise de Roma, no final
do século IV, o senador Símaco – imagem especular de Varrão e da sua teoria da
religião – resumiu a concepção neoplatónica em algumas fórmulas simples e
pragmáticas, que podemos encontrar no seu discurso perante o imperador
Valentiniano II, no ano 384, em defesa do paganismo e da reposição da deusa
Vitória no Senado romano.
Cito apenas a frase
decisiva, e que se tornou célebre: “Todos
veneramos o mesmo, todos pensamos o mesmo, contemplamos as mesmas estrelas, um
só é o céu sobre as nossas cabeças, o mesmo mundo nos circunda; que importam os
diversos tipos de sabedoria pelos quais cada um busca a verdade? Não se pode
chegar por um único caminho a um mistério tão grande”.
É tal e qual o que, hoje,
afirma a racionalidade: não conhecemos a verdade como tal; nas imagens mais
diversas contemplamos, no fundo, a mesma coisa.
Mistério ingente, o divino
não se pode reduzir a uma só figura que exclua todas as outras, a um único
caminho que a todos vincularia. Há muitos caminhos, há muitas imagens, todas
reflectem algo do todo e nenhuma é, por si mesma, o todo.
O ethos da tolerância é
próprio de quem reconhece em cada uma delas uma parte de verdade, de quem não
põe a sua acima das outras e se insere tranquilamente na sinfonia polimorfa do
eterno Inacessível.
Este oculta-se por detrás
de símbolos, mas estes símbolos afiguram-se como a nossa única possibilidade de
chegar, de algum modo, à divindade.
Foi, portanto, superada
pelo progresso da racionalidade a pretensão do cristianismo de ser a religio
vera?
Estará ele, pois, obrigado
a abandonar esta pretensão e a ingressar na visão neoplatónica ou budista ou
hinduísta da verdade e do símbolo, a contentar-se, como propusera Troeltsch,
com mostrar do rosto de Deus a parte virada para a Europa?
Será necessário,
porventura, ir além de Troeltsch, que via ainda no cristianismo a religião mais
adequada para a Europa, tendo em conta que esta põe em dúvida tal adequação?
Eis a verdadeira questão
que, hoje, a Igreja e a teologia têm de enfrentar.
Todas as crises que agora
observamos no seio do cristianismo só de modo secundário se baseiam em aspectos
institucionais.
Na Igreja, os problemas
das instituições e das pessoas derivam, em última instância, desta questão e do
enorme peso que ela tem.
Ninguém esperará, no final
do segundo milénio cristão, que esta provocação fundamental encontre, mesmo só
de longe, uma resposta definitiva num artigo.
Não pode de modo algum
encontrar respostas puramente teóricas, tal como a religião, enquanto atitude
última do homem, nunca é só teoria.
Exige a combinação de
conhecimento e de acção em que assentava a força persuasiva do cristianismo dos
Padres da Igreja.
Não quer isto dizer que
nos possamos subtrair à urgência que o problema tem sob o ponto de vista
intelectual, remetendo para a necessidade da práxis.
Para terminar, tentarei
apenas abrir uma perspectiva que possa indicar a direcção.
Vimos que a originária
unidade relacional, embora nunca de todo alcançada, entre racionalidade e fé, a
que Tomás de Aquino deu uma forma sistemática, se rompeu não tanto pela
evolução da fé quanto pelos novos progressos da racionalidade.
Poderiam apontar-se como
etapas desta mútua separação Descartes, Espinosa, Kant.
A nova síntese integradora
tentada por Hegel não restitui à fé o seu lugar filosófico, mas tende a
convertê-la em razão e a suprimi-la como fé.
A esta absolutização do
espírito contrapõe Marx a unicidade da
matéria; a filosofia deve então circunscrever-se inteiramente à ciência exacta.
Só o rigoroso conhecimento
científico é conhecimento.
E assim se diz adeus à
ideia do divino.
A profecia de Auguste
Comte de que, um dia, haveria uma física do homem e que as grandes questões,
até agora confiadas à metafísica, seriam abordadas no futuro de um modo tão
“positivo” como tudo o que, já hoje, é ciência positiva, encontrou, no nosso
século, um eco impressionante nas ciências humanas.
Olvida-se cada vez mais a
separação entre a física e a metafísica, introduzida pelo pensamento cristão.
Tudo deve voltar a ser
“física”.
A teoria evolucionista
foi-se cristalizando como o caminho para fazer desaparecer de vez a metafísica,
para tornar supérflua a “hipótese de Deus” (Laplace) e formular uma explicação
do mundo estritamente “científica”.
Uma teoria evolucionista
que explique de modo englobante todo o real tornou-se uma espécie de “filosofia
primeira” que representa, por assim dizer, o autêntico fundamento da
compreensão racional do mundo.
Toda a tentativa de
introduzir outras causas distintas das elaboradas por uma teoria “positiva”,
toda a tentativa de “metafísica” surge necessariamente como uma recidiva no
aquém da razão, como uma renúncia à pretensão universal da ciência.
Também a ideia cristã de
Deus é tida por acientífica. A esta ideia já não corresponde nenhuma theologia physica: a única theologia naturalis é, nesta visão, a
doutrina evolucionista, e esta não conhece nenhum Deus, nenhum Criador, no
sentido do cristianismo (do judaísmo e do Islão), nenhuma alma do mundo ou
dinamismo intrínseco, no sentido do estoicismo.
Quando muito, em sentido
budista, poderia considerar-se o mundo inteiro como uma aparência, e o nada
como a verdadeira realidade, e
justificar assim as formas místicas de religião que, pelo menos, não se estão
em competição directa com a razão.
Ter-se-á dito com isto a
última palavra?
Estarão definitivamente
separados o cristianismo e a razão?
Seja como for, não se
discute o alcance da doutrina evolucionista como filosofia primeira e a
exclusividade do método positivo como único tipo de ciência e de racionalidade.
É necessário que esta
discussão seja iniciada por ambas as partes com serenidade e disponibilidade
para ouvir – o que até agora só aconteceu de modo muito reduzido.
Ninguém poderá pôr
seriamente em dúvida as provas científicas dos processos micro-evolutivos.
Reinhard Junker e
Sieghfried Scherer dizem, a este respeito, no seu Kritisches Lehrbuch sobre a
evolução:
“Tais fenómenos (os processos micro-evolutivos) são bem conhecidos a
partir dos processos naturais de variação e de formação.
O
seu exame por meio da biologia evolutiva levou a conhecimentos significativos
acerca da capacidade maravilhosa de adaptação dos sistemas vivos”.
Dizem neste sentido que,
com razão, se pode caracterizar a investigação sobre a origem como a disciplina
régia da biologia.
A pergunta que um crente
pode fazer em face da razão moderna não é acerca de isto, mas sobre a extensão
de uma philosophia universalis que
ambiciona tornar-se uma explicação geral do real e tende a não admitir qualquer
outro nível de pensamento.
Na própria doutrina
evolucionista, o problema apresenta-se quando se passa da micro à
macro-evolução, passagem a cujo respeito Szamarthy e Maynard Smith, ambos
defensores de uma teoria evolucionista omnicompreensiva, afirmam:
“Não há motivos teóricos que permitam pensar que, com o tempo, linhas
evolutivas aumentem em complexidade; nem sequer há provas empíricas de que tal
aconteça”.
(cont)
joseph
ratzinger (bento xvi)
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