Tempo comum XX Semana
Evangelho:
Mt 19, 16-22
16 Aproximando-se d'Ele um jovem, disse-Lhe: «Mestre, que hei-de fazer
de bom para alcançar a vida eterna?». 17 Jesus respondeu-lhe:
«Porque me interrogas acerca do que é bom? Um só é bom. Porém, se queres entrar
na vida eterna, guarda os mandamentos». 18 «Quais?», perguntou ele.
Jesus disse: «Não matarás, não cometerás adultério, não roubarás, não
levantarás falso testemunho, 19 honra teu pai e tua mãe, e ama o teu
próximo como a ti mesmo». 20 Disse-Lhe o jovem: «Tenho observado
tudo isso. Que me falta ainda?». 21 Jesus disse-lhe: «Se queres ser
perfeito, vai, vende o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu;
depois vem e segue-Me». 22 O jovem, porém, tendo ouvido estas palavras,
retirou-se triste, porque tinha muitos bens.
Comentário:
Parece quase um atrevimento o
teor da pergunta porque talvez deixe antever um sentimento de credor.
Como se dissesse: então o que faço não é suficiente?
Ainda me falta algo?
A verdade é que nos falta sempre algo e também quase sempre quando se trata dessa entrega sem condições ao chamamento divino.
(ama, comentário
sobre, Mt 19 16-22 Cascais, 2014.08.18)
Leitura espiritual
CRISTO QUE
PASSA
6
O outro inimigo, escreve
S. João, é a concupiscência dos olhos, uma avareza de fundo que nos leva a
valorizar apenas o que se pode tocar.
Os olhos ficam como que
pegados às coisas terrenas e, por isso mesmo, não sabem descobrir as realidades
sobrenaturais.
Podemos, portanto,
socorrer-nos desta expressão da Sagrada Escritura para nos referirmos à avareza
dos bens materiais e, além disso, àquela deformação que nos leva a observar o
que nos rodeia - os outros, as circunstâncias da nossa vida e do nosso tempo -
só com visão humana.
Os olhos da alma
embotam-se; a razão crê-se auto-suficiente para compreender todas as coisas,
prescindindo de Deus.
É uma tentação subtil,
que se apoia na dignidade da inteligência, da inteligência que o nosso Pai,
Deus, deu ao homem para que O conheça e O ame livremente.
Arrastada por essa
tentação, a inteligência humana considera-se o centro do universo,
entusiasma-se de novo com a falsa promessa da serpente, sereis como deuses, e,
enchendo-se de amor por si mesma, volta as costas ao amor de Deus.
Deste modo, a nossa
existência pode entregar-se sem condições nas mãos do terceiro inimigo, a superbia vitae.
Não se trata
simplesmente dos pensamentos efémeros de vaidade ou de amor-próprio; é uma
presunção generalizada.
Não nos enganemos,
porque este é o pior dos males, a raiz de todos os extravios.
A luta contra a soberba
há-de ser constante, pois não se disse já, dum modo tão gráfico, que essa
paixão só morre um dia depois da morte da pessoa?
É a altivez do fariseu,
a quem Deus se mostra renitente em justificar por encontrar nele uma barreira
de auto-suficiência.
É a arrogância que
conduz a desprezar os outros homens, a dominá-los, a maltratá-los, porque, onde
houver soberba aí haverá também ofensa e desonra.
7
A misericórdia de Deus
Começa hoje o tempo do
Advento e é bom que tenhamos considerado as insídias destes inimigos da alma: a
desordem da sensualidade e a leviandade; o desatino da razão que se opõe ao
Senhor; a presunção altaneira, esterilizadora do amor a Deus e às criaturas.
Todas estas disposições
de ânimo são obstáculos certos e o seu poder perturbador é grande.
Por isso a liturgia
faz-nos implorar a misericórdia divina: a ti elevo a minha alma, Senhor, meu
Deus.
E em ti confio; não seja
eu confundido!
Não riam de mim os meus
inimigos, rezamos no intróito.
E na antífona do
ofertório iremos repetir: espero em ti,; que eu não seja confundido!
Agora que se aproxima o
tempo da salvação, dá gosto ouvir dos lábios de S. Paulo: depois de Deus, Nosso
Salvador, ter manifestado a sua benignidade e o seu amor para com os homens,
libertou-nos, não pelas obras de justiça que tivéssemos feito, mas por sua
misericórdia.
Se lerdes as Santas
Escrituras, descobrireis constantemente a presença da misericórdia de Deus:
enche a terra, estende-se a todos os seus filhos, super omnem carnem; cerca-nos, antecede-nos, multiplica-se para nos
ajudar e foi continuamente confirmada.
Deus tem-nos presente na
sua misericórdia, ao ocupar-se de nós como Pai amoroso.
É uma misericórdia
suave, agradável, como a nuvem que se desfaz em chuva no tempo da seca.
Jesus Cristo resume e
compendia toda a história da misericórdia divina: Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.
E, noutra ocasião: Sede pois misericordiosos como também vosso
Pai é misericordioso.
Ficaram também muito
gravadas em nós, entre muitas outras cenas do Evangelho, a clemência com a
mulher adúltera, a parábola do filho pródigo, a da ovelha perdida, a do devedor
perdoado, a ressurreição do filho da viúva de Naim.
Quantas razões de
justiça para explicar este grande prodígio!
Era o filho único
daquela pobre viúva; era ele quem dava sentido à sua vida; só ele poderia
ajudá-la na sua velhice!
Mas Cristo não faz o
milagre por justiça; fá-lo por compaixão, porque interiormente se comove
perante a dor humana.
Que segurança deve
produzir-nos a comiseração do Senhor!
Se ele clamar por mim,
ouvi-lo-ei, porque sou misericordioso.
É um convite, uma
promessa que não deixará de cumprir. Aproximemo-nos, pois, confiadamente do
trono da graça a fim de alcançar misericórdia e o auxílio da graça, no tempo
oportuno.
Os inimigos da nossa
santificação nada poderão, porque essa misericórdia de Deus nos defende.
E se caímos por nossa
culpa e da nossa fraqueza, o Senhor socorre-nos e levanta-nos.
Tinhas aprendido a
afastar a negligência, a afastar de ti a arrogância, a adquirir piedade, a não
ser prisioneiro das questões mundanas, a não preferir o caduco ao eterno.
Mas, como a debilidade
humana não pode manter o passo decidido num mundo resvaladiço, o bom médico
indicou-te também os remédios contra a desorientação e o juiz misericordioso
não te negou a esperança do perdão.
8
Correspondência humana
É neste clima da
misericórdia de Deus que se desenvolve a existência do cristão.
Este é o âmbito do seu
esforço por se comportar como filho do Pai.
E quais são os
principais meios para conseguirmos que a vocação se mantenha firme?
Vou dizer-te hoje dois,
que são dois eixos vivos da conduta cristã: a vida interior e a formação
doutrinal, o conhecimento profundo da nossa fé.
Vida interior, em
primeiro lugar.
Há ainda tão pouca gente
que entenda isto!
Ao ouvir falar de vida
interior, pensa-se logo na obscuridade do templo, quando não no ambiente
abafado de algumas sacristias. Estou há mais de um quarto de século a dizer que
não se trata disso. Eu falo da vida interior de cristãos normais e correntes,
que habitualmente se encontram em plena rua, ao ar livre; e que na rua, no
trabalho, na família e nos momentos de diversão estão unidos a Jesus todo o
dia.
E o que é isto senão
vida de oração contínua?
Não é verdade que
compreendeste a necessidade de ser alma de oração, numa intimidade com Deus que
te leva a endeusar-te?
Esta é a fé cristã e
assim o compreenderam sempre as almas de oração. Torna-se Deus aquele homem,
escreve Clemente de Alexandria, porque quer o mesmo que Deus quer.
A princípio custará.
É preciso esforçarmo-nos
por nos dirigir ao Senhor, por lhe agradecermos a sua piedade paternal e
concreta para connosco.
A pouco e pouco o amor
de Deus torna-se palpável - embora isto não seja coisa de sentimentos - como
uma estocada na alma.
É Cristo que nos
persegue amorosamente: Eis que estou à porta e chamo.
Como anda a tua vida de
oração?
Não sentes às vezes,
durante o dia, desejos de falar mais devagar com Ele?
Não Lhe dizes: logo vou
contar-te isto e aquilo; logo vou conversar sobre isso contigo?
Nos momentos dedicados
expressamente a esse colóquio com o Senhor o coração expande-se, a vontade
fortalece-se, a inteligência - ajudada pela graça - enche a realidade humana
com a realidade sobrenatural.
E, como fruto, sairão
sempre propósitos claros, práticos, de melhorares a tua conduta, de tratares
delicadamente, com caridade, todos os homens, de te empenhares a fundo - com o
empenho dos bons desportistas - nesta luta cristã de amor e de paz.
A oração torna-se
contínua como o bater do coração, como as pulsações. Sem essa presença de Deus
não há vida contemplativa.
E sem vida contemplativa
de pouco vale trabalhar por Cristo, porque em vão se esforçam os que constroem
se Deus não sustenta a casa.
(cont)
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