Semana II da Páscoa
Evangelho:
Jo
3 1-8
1 Havia entre os
fariseus um homem chamado Nicodemos, um dos principais entre os judeus. 2 Este
foi ter com Jesus, de noite, e disse-Lhe: «Rabi, sabemos que foste enviado por
Deus como mestre, porque ninguém pode fazer estes milagres que Tu fazes, se
Deus não estiver com ele». 3 Jesus respondeu-lhe: «Em verdade, em verdade te
digo que não pode ver o reino de Deus, senão aquele que nascer de novo». 4
Nicodemos disse-Lhe: «Como pode um homem nascer, sendo velho? Porventura pode
tornar a entrar no seio de sua mãe e renascer?». 5 Jesus respondeu-lhe: «Em
verdade, em verdade te digo que quem não renascer da água e do Espírito, não
pode entrar no reino de Deus.6 Aquilo que nasceu da carne, é carne, aquilo que
nasceu do Espírito, é espírito. 7 Não te maravilhes de Eu te dizer: É preciso
que nasçais de novo. 8 O vento sopra onde quer, e tu ouves a sua voz, mas não
sabes donde ele vem nem para onde vai; assim é todo aquele que nasceu do
Espírito».
Comentário:
Este episódio que São João nos relata garante-nos aquilo
que sabemos de Jesus Cristo: não faz acepção de pessoas.
Embora muitos queiram concluir que o Senhor é um
Salvador de pobres e desgraçados, doentes e pessoas de escassa cultura baseando-se
quase sempre na resistência dos chefes do povo, pessoas letradas e conhecedoras
das Escrituras e da sua não aceitação da figura e pessoa do Salvador, «Nicodemos, um dos
principais entre os judeus» - como
expressamente refere o Evangelista – vem desmentir essa falsa “teoria”.
O
que existe – isso sim – é são critério ou total ausência dele, a procura da verdade
ou a obstinação pelo que se julga ter como verdadeiro.
(ama,
comentário sobre Jo 3, 1-8, 2015.04.06)
Leitura espiritual
Jesus
foi um mero profeta ou revolucionário?
…/2
Uma resposta construída ao
longo da história
Como responder à questão
de saber se Jesus foi mero profeta ou revolucionário?
Devemos ter sempre
presente que os discípulos que com Ele se encontraram, O reconheceram como profeta
e aceitaram seu convite para ir ver onde morava e com Ele ficaram, transmitindo
depois jubilosos, uns aos outros, que haviam encontrado o Messias.[i]
Hoje, porém, parece que
procuramos respostas puramente históricas ou científicas, enquanto os
discípulos tinham também um desejo espiritual, interior, religioso.
Para melhor compreender
essa questão sobre a identidade de Jesus, é preciso refletir sobre como esse
questionamento se colocou através da história
do cristianismo.
Em 2013 comemoramos os
1700 anos da conversão de Constantino (†337), a qual teve um impacto decisivo
na vida dos cristãos.
A cultura grega dominava
no Império.
O cristianismo, tornado
religião do imperador e algumas décadas mais tarde, com Teodósio (†395), a
religião oficial do Império, precisava formular o reconhecimento de Jesus, como
Filho de Deus, numa linguagem compreensível à mentalidade helênica.
Grande desafio: exprimir
de maneira “lógica”, coerente com as exigências da razão, a unidade entre a
divindade e a humanidade, que os cristãos há três séculos professavam como
real, objectiva, histórica e ontológica, realizada no homem Jesus.
As hesitações do ensino
oficial estenderam-se por mais de um século.
Os bispos se confrontaram em diversas ocasiões
mais ou menos solenes e importantes, acompanhados de perto e até comandados
pelas autoridades imperiais, em virtude dos impactos políticos das diversas
correntes em choque.
Sem entrar nos detalhes da
história, é importante levar em conta os diversos encaminhamentos, para
compreender o alcance dos acordos que se firmaram somente na metade do século
V, numa primeira fase, deixando para o final do século VII, a definição que
prevalece até hoje.
Muito cedo, a pregação
cristã entrou em contacto com a filosofia grega.
Pensadores cristãos como
Justino (†165), em Roma, com base, aliás, no prólogo do quarto evangelho (cf.
Jo,1-14), identificavam Jesus como a Palavra de Deus (Logos) que, existindo em
Deus, se havia manifestado na história, em Jesus.
Em Antioquia da Síria,
porém, o discurso sobre Jesus seguia antes o caminho dos primeiros evangelhos e
partia da sua vida histórica.
Colocava-se assim, em torno do Jesus da
história, o centro do diálogo do cristianismo com o pensamento reinante na
sociedade.
Ao passo que em
Alexandria, no Egipto, onde se havia desenvolvido o pensamento judaico desde
várias décadas – a própria Bíblia foi aí traduzida em grego – o problema do
homem Jesus, Filho de Deus, se colocava a partir da Palavra de Deus, do Logos.
A questão que suscitava
era então, antes de tudo de, como entender quem era a Palavra de Deus, Deus,
sem ferir as exigências da unidade de Deus, ensinamento central da tradição
judaica e base do cristianismo.
Observava-se assim, em
Alexandria, no início do século IV um deslocamento do problema da unidade de
Jesus, homem e Filho de Deus, para a relação entre Deus, a que Jesus chamava de
Pai, e sua Palavra, encarnada em Jesus.
Foi então que o
cristianismo, durante alguns séculos, em diversas regiões do mundo habitado,
dividiu-se em duas correntes: os seguidores de Ário (†~336), que para
salvaguardar a unicidade de Deus, encaravam a Palavra de Deus como uma primeira
criatura, e os bispos que se mantinham fieis às expressões da fé herdadas dos
apóstolos.
Estes se impuseram no
primeiro concílio ecuménico, de Niceia (325), presidido por Constantino, que
professou a “consubstancialidade” da Palavra, reconhecendo a transcendência do
Filho de Deus, da mesma substância que o Pai.
Nos sessenta anos que se
seguiram, até aquele que foi reconhecido como segundo concílio ecuménico, de
Constantinopla (381), os cristãos conseguiram formular em termos acessíveis à
cultura reinante, a doutrina referente à grande originalidade da fé
neotestamentária, confessando a Deus como Pai, Filho e Espírito Santo, em nome
dos quais se baptizava na Igreja, desde os tempos apostólicos, como testemunha,
por exemplo, o final do evangelho de Mateus.[ii]
Reabre-se então, num novo
patamar, a questão de como exprimir a unidade de Jesus, homem adorado como
Filho de Deus.
Os antioquenos, reconhecendo
a unidade, falavam, entretanto, de um homem, um profeta, assumido por Deus como
Filho, enquanto os alexandrinos, para evitar a incoerência lógica de um homem que se torna Deus, falavam do Filho de
Deus que se torna homem, encarna-se, segundo o vocabulário do quarto evangelho.
Reacenderam-se as
disputas.
Reúne-se em Éfeso (430) o
terceiro concílio ecuménico, sem que o entendimento se faça.
Foi preciso esperar vinte
anos de ajustamentos políticos e religiosos, para se chegar a um entendimento
de base, em Calcedónia (451), no quarto concílio ecuménico, que deu oportunidade
à primeira grande afirmação da autoridade doutrinária universal do bispo de
Roma, Leão Magno (†461).
As definições de Calcedónia
reconheciam que, na Pessoa Divina do Verbo, uniam-se as duas naturezas, a
divina, existente desde toda a eternidade, e a humana herdada de Adão, sem
confusão nem mistura, sem separação, porém, e sem divisão. Filho de Deus, Jesus
não tinha pecado, mas filho de Adão, gerado no seio de Maria, experimentava os
limites e carências fruto da condição histórica de toda a humanidade.
A doutrina calcedonense
encontrou muitas resistências junto às populações marcadas por uma
religiosidade mística, tendente a ver, em Jesus, Deus entre nós e a dar pouco
peso às suas fraquezas como homem.
A controvérsia durará
ainda séculos e, de certo modo, ainda se prolonga nos dias de hoje, em algumas
igrejas autocéfalas.
Atualmente, porém,
sobretudo no Ocidente secularizado, é mais frequente os autores que tratam de
Jesus o encararem antes de tudo como um homem, tal qual os outros, profeta,
revolucionário e, mais comummente, comparável aos grandes líderes religiosos,
como Buda ou como Gandhi.
A comparação pode ser
enriquecedora da concepção meio etérea de Jesus, que alimenta a religião de
muitos de nossos contemporâneos.
Mas a grande convicção de
fé que devemos colher dessa história é que, com base na Revelação e na Tradição
cristãs, o filho de Maria, cujo Natal os cristãos celebram conjuntamente com
toda a humanidade, na festa da fraternidade universal, é a Palavra de Deus,
gerada em Deus desde toda a eternidade, que veio habitar entre nós, para nos
comunicar o seu Espírito e nos tornar verdadeiros filhos de Deus, por adopção.
Podemos dizer hoje, com
toda lucidez, na fé, a palavra do centurião, que sempre se repetiu na
comunidade cristã através dos séculos:
Esse homem é,
verdadeiramente, o Filho de Deus!
francisco catão
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