Tempo de Quaresma II Semana
Evangelho:
Lc 6 36-38
36 Sede
misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso. 37 Não
julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai
e sereis perdoados; 38 dai e dar-se-vos-á. Uma medida boa, cheia,
recalcada e a transbordar vos será lançada nas dobras do vosso vestido. Porque,
com a mesma medida com que medirdes para os outros, será medido para vós».
Comentário:
A
medida que o Senhor usa para connosco é infinitamente desproporcional à que
usamos para com os outros e, até, para com Ele.
Não
admira que seja assim; a nossa é uma medida humana, a de Deus é divina; a nossa
é limitada pelas nossas fraquezas, calculismo e pouca generosidade; a de Deus
não tem limites; a que temos usamo-la na terra, a de Deus é
"fabricada" no Céu.
A
medida de Deus e a medida dos homens!
Ainda
bem que o Senhor é generoso porque se, de facto e - como diz - usasse para
connosco a medida que usamos não nos chegariam senão uma ínfima parte das
graças que tem para nos dar.
(ama, comentário sobre Lc 6, 36-38,
2011.03.21)
Leitura espiritual
EXORTAÇÃO APOSTÓLICA EVANGELII GAUDIUM
DO SANTO PADRE FRANCISCO
AO EPISCOPADO, AO CLERO ÀS
PESSOAS CONSAGRADAS E AOS FIÉIS LEIGOS SOBRE O ANÚNCIO DO EVANGELHO NO MUNDO
ACTUAL
1. A Alegria do Evangelho enche o
coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam
salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do
isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria. Quero, com esta
Exortação, dirigir-me aos fiéis cristãos a fim de os convidar para uma nova
etapa evangelizadora marcada por esta alegria e indicar caminhos para o
percurso da Igreja nos próximos anos.
I. alegria
que se renova e comunica
2. O grande risco do mundo actual, com
sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza individualista
que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres
superficiais, da consciência isolada.
Quando a vida interior se fecha nos próprios
interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já
não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem
fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco, certo e permanente, que
correm também os crentes. Muitos caem nele, transformando-se em pessoas
ressentidas, queixosas, sem vida.
Esta não é a escolha duma vida digna e
plena, este não é o desígnio que Deus tem para nós, esta não é a vida no
Espírito que jorra do coração de Cristo ressuscitado.
3. Convido todo o cristão, em qualquer
lugar e situação que se encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal
com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por
Ele, de O procurar dia a dia sem cessar. Não há motivo para alguém poder pensar
que este convite não lhe diz respeito, já que «da alegria trazida pelo Senhor
ninguém é excluído»
[1].
Quem arrisca, o Senhor não o desilude;
e, quando alguém dá um pequeno passo em direcção a Jesus, descobre que Ele já
aguardava de braços abertos a sua chegada. Este é o momento para dizer a Jesus
Cristo: «Senhor deixei-me enganar, de mil maneiras fugi do vosso amor, mas aqui
estou novamente para renovar a minha aliança convosco. Preciso de Vós. Resgatai-me
de novo, Senhor; aceitai- -me mais uma vez nos vossos braços redentores». Como
nos faz bem voltar para Ele, quando nos perdemos! Insisto uma vez mais: Deus nunca
Se cansa de perdoar, somos nós que nos cansamos de pedir a sua misericórdia.
Aquele que nos convidou a perdoar «setenta vezes sete» [2] dá-nos o
exemplo: Ele perdoa setenta vezes sete. Volta uma vez e outra a carregar-nos
aos seus ombros.
Ninguém nos pode tirar a dignidade que
este amor infinito e inabalável nos confere. Ele permite-nos levantar a cabeça
e recomeçar, com uma ternura que nunca nos defrauda e sempre nos pode restituir
a alegria. Não fujamos da ressurreição de Jesus; nunca nos demos por mortos,
suceda o que suceder. Que nada possa mais do que a sua vida que nos impele para
diante!
4. Os livros do Antigo Testamento
preanunciaram a alegria da salvação, que havia de tornar-se superabundante nos
tempos messiânicos. O profeta Isaías dirige-se ao Messias esperado, saudando-O
com regozijo: «Multiplicaste a alegria, aumentaste o júbilo»[3].
E anima os habitantes de Sião a
recebê-Lo com cânticos: «Exultai de alegria!»[4].
A quem já O avistara no horizonte, o
profeta convida-o a tornar-se mensageiro para os outros: «Sobe a um alto monte,
arauto de Sião! Grita com voz forte, arauto de Jerusalém»[5].
A criação inteira participa nesta
alegria da salvação: «Cantai, ó céus! Exulta de alegria, ó terra! Rompei em
exclamações, ó montes! Na verdade, o Senhor consola o seu povo e se compadece
dos desamparados»[6].
Zacarias, vendo o dia do Senhor, convida
a vitoriar o Rei que chega «humilde, montado num jumento»: «Exulta de alegria,
filha de Sião! Solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei
vem a ti. Ele é justo e vitorioso»[7].
Mas o convite mais tocante talvez seja
o do profeta Sofonias, que nos mostra o próprio Deus como um centro irradiante
de festa e de alegria, que quer comunicar ao seu povo este júbilo salvífico.
Enche-me de vida reler este texto: «O
Senhor, teu Deus, está no meio de ti como poderoso salvador! Ele exulta de alegria
por tua causa, pelo seu amor te renovará. Ele dança e grita de alegria por tua
causa»[8].
É a alegria que se vive no meio das
pequenas coisas da vida quotidiana, como resposta ao amoroso convite de Deus
nosso Pai: «Meu filho, se tens com quê, trata-te bem (...). Não te prives da
felicidade presente»[9].
Quanta ternura paterna se vislumbra
por detrás destas palavras!
5. O Evangelho, onde resplandece
gloriosa a Cruz de Cristo, convida insistentemente à alegria.
Apenas alguns exemplos: «Alegra-te» é
a saudação do anjo a Maria[10].
A visita de Maria a Isabel faz com que
João salte de alegria no ventre de sua mãe[11].
No seu cântico, Maria proclama: «O meu
espírito se alegra em Deus, meu Salvador»[12].
E, quando Jesus começa o seu
ministério, João exclama: «Esta é a minha alegria! E tornou-se completa!»[13].
O próprio Jesus «estremeceu de alegria
sob a acção do Espírito Santo»[14].
A sua mensagem é fonte de alegria:
«Manifestei-vos estas coisas, para que esteja em vós a minha alegria, e a vossa
alegria seja completa»[15].
A nossa alegria cristã brota da fonte
do seu coração transbordante. Ele promete aos seus discípulos: «Vós haveis de
estar tristes, mas a vossa tristeza há-de converter-se em alegria»[16].
E insiste: «Eu hei-de ver-vos de novo!
Então, o vosso coração há-de alegrar-se e ninguém vos poderá tirar a vossa
alegria»[17].
Depois, ao verem-No ressuscitado,
«encheram-se de alegria»[18].
O livro dos Actos dos Apóstolos conta
que, na primitiva comunidade, «tomavam o alimento com alegria»[19].
Por onde passaram os discípulos,
«houve grande alegria»[20]; e
eles, no meio da perseguição, «estavam cheios de alegria»[21].
Um eunuco, recém-baptizado, «seguiu o
seu caminho cheio de alegria»[22]; e o
carcereiro «entregou-se, com a família, à alegria de ter acreditado em Deus»[23].
Porque não havemos de entrar, também
nós, nesta torrente de alegria?
6. Há cristãos que parecem ter
escolhido viver uma Quaresma sem Páscoa.
Reconheço, porém, que a alegria não se
vive da mesma maneira em todas as etapas e circunstâncias da vida, por vezes muito
duras. Adapta-se e transforma-se, mas sempre permanece pelo menos como um feixe
de luz que nasce da certeza pessoal de, não obstante o contrário, sermos
infinitamente amados.
Compreendo as pessoas que se vergam à
tristeza por causa das graves dificuldades que têm de suportar, mas aos poucos
é preciso permitir que a alegria da fé comece a despertar, como uma secreta mas
firme confiança, mesmo no meio das piores angústias: «A paz foi desterrada da
minha alma, já nem sei o que é a felicidade (…).
Isto, porém, guardo no meu coração;
por isso, mantenho a esperança.
É que a misericórdia do Senhor não
acaba, não se esgota a sua compaixão. Cada manhã ela se renova; é grande a tua
fidelidade. (...) Bom é esperar em silêncio a salvação do Senhor» [24]
7. A tentação apresenta-se,
frequentemente, sob forma de desculpas e queixas, como se tivesse de haver
inúmeras condições para ser possível a alegria. Habitualmente isto acontece,
porque «a sociedade técnica teve a possibilidade de multiplicar as ocasiões de
prazer; no entanto ela encontra dificuldades grandes no engendrar também a
alegria».[25]
Posso dizer que as alegrias mais belas
e espontâneas, que vi ao longo da minha vida, são as alegrias de pessoas muito
pobres que têm pouco a que se agarrar. Recordo também a alegria genuína
daqueles que, mesmo no meio de grandes compromissos profissionais, souberam
conservar um coração crente, generoso e simples.
De várias maneiras, estas alegrias
bebem na fonte do amor maior, que é o de Deus, a nós manifestado em Jesus
Cristo.
Não me cansarei de repetir estas
palavras de Bento XVI que nos levam ao centro do Evangelho: «Ao início do ser
cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um
acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o
rumo decisivo».[26]
8. Somente graças a este encontro – ou
reencontro – com o amor de Deus, que se converte em amizade feliz, é que somos
resgatados da nossa consciência isolada e da auto-referencialidade.
Chegamos a ser plenamente humanos,
quando somos mais do que humanos, quando permitimos a Deus que nos conduza para
além de nós mesmos a fim de alcançarmos o nosso ser mais verdadeiro.
Aqui está a fonte da acção
evangelizadora.
Porque, se alguém acolheu este amor
que lhe devolve o sentido da vida, como é que pode conter o desejo de o
comunicar aos outros?
II. a
doce e reconfortante alegria de evangelizar
9. O bem tende sempre a comunicar-se.
Toda a experiência autêntica de verdade e de beleza procura, por si mesma, a
sua expansão; e qualquer pessoa que viva uma libertação profunda adquire maior
sensibilidade face às necessidades dos outros.
E, uma vez comunicado, o bem radica-se
e desenvolve-se.
Por isso, quem deseja viver com
dignidade e em plenitude, não tem outro caminho senão reconhecer o outro e
buscar o seu bem.
Assim, não nos deveriam surpreender
frases de São Paulo como estas: «O amor de Cristo nos absorve completamente»[27]; «ai de
mim, se eu não evangelizar!»[28].
10. A proposta é viver a um nível
superior, mas não com menor intensidade: «Na doação, a vida se fortalece; e se
enfraquece no comodismo e no isolamento.
De facto, os que mais desfrutam da
vida são os que deixam a segurança da margem e se apaixonam pela missão de
comunicar a vida aos demais»[29] .
Quando a Igreja faz apelo ao
compromisso evangelizador, não faz mais do que indicar aos cristãos o
verdadeiro dinamismo da realização pessoal: «Aqui descobrimos outra profunda
lei da realidade: “A vida se alcança e amadurece à medida que é entregue para
dar vida aos outros”.
Isto é, definitivamente, a missão»[30].
Consequentemente, um evangelizador não
deveria ter constantemente uma cara de funeral.
Recuperemos e aumentemos o fervor de
espírito, «a suave e reconfortante alegria de evangelizar, mesmo quando for
preciso semear com lágrimas! (...)
E que o mundo do nosso tempo, que procura
ora na angústia ora com esperança, possa receber a Boa Nova dos lábios, não de
evangelizadores tristes e descoroçoados, impacientes ou ansiosos, mas sim de
ministros do Evangelho cuja vida irradie fervor, pois foram quem recebeu
primeiro em si a alegria de Cristo»[31].
Uma
eterna novidade
11. Um anúncio renovado proporciona
aos crentes, mesmo tíbios ou não praticantes, uma nova alegria na fé e uma
fecundidade evangelizadora.
Na realidade, o seu centro e a sua
essência são sempre o mesmo: o Deus que manifestou o seu amor imenso em Cristo
morto e ressuscitado.
Ele torna os seus fiéis sempre novos;
ainda que sejam idosos, «renovam as suas forças. Têm asas como a águia, correm
sem se cansar, marcham sem desfalecer» [32].
Cristo é a «Boa Nova de valor eterno» [33], sendo
«o mesmo ontem, hoje e pelos séculos» [34], mas a
sua riqueza e a sua beleza são inesgotáveis.
Ele é sempre jovem, e fonte de
constante novidade. A Igreja não cessa de se maravilhar com a «profundidade de
riqueza, de sabedoria e de ciência de Deus» [35].
São João da Cruz dizia: «Esta
espessura de sabedoria e ciência de Deus é tão profunda e imensa, que, por mais
que a alma saiba dela, sempre pode penetrá-la mais profundamente».[36]
Ou ainda, como afirmava Santo Ireneu:
«Na sua vinda, [Cristo] trouxe consigo toda a novidade».[37]
Com a sua novidade, Ele pode sempre
renovar a nossa vida e a nossa comunidade, e a proposta cristã, ainda que atravesse
períodos obscuros e fraquezas eclesiais, nunca envelhece.
Jesus Cristo pode romper também os
esquemas enfadonhos em que pretendemos aprisioná-Lo, e surpreende-nos com a sua
constante criatividade divina. Sempre que procuramos voltar à fonte e recuperar
o frescor original do Evangelho, despontam novas estradas, métodos criativos,
outras formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras cheias de renovado
significado para o mundo actual.
Na realidade, toda a acção evangelizadora
autêntica é sempre «nova».
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[1] Paulo VI, Exort.
ap. Gaudete in Domino (9 de Maio de 1975), 22: AAS 67 (1975), 297.
[2] Mt
18, 22
[3] 9, 2
[4] 12, 6
[5] 40, 9
[6] 49, 13
[7] 9, 9
[8] 3, 17
[9] Sir 14, 11.14
[10] Lc 1, 28)
[11] cf. Lc 1, 41)
[12] Lc 1, 47
[13] Jo 3, 29
[14] Lc 10, 21
[15] Jo 15, 11
[16] Jo 16, 20
[17] Jo 16, 22
[18] Jo 20, 20
[19] 2, 46
[20] 8, 8
[21] 13, 52
[22] 8, 39
[23] 16, 34
[24] Lm 3, 17.21-23.26).
[25] Ibid., 8: o. c.,
292.
[26] Carta enc. Deus
caritas est (25 de Dezembro de 2005), 1: AAS 98 (2006), 217
[27] 2 Cor 5, 14
[28] 1 Cor 9, 16
[29] V Conferência Geral
do Episcopado Latino-americano e do Caribe, Documento de Aparecida (29 de Junho
de 2007), 360.
[30] Ibid., 360.
[31] Paulo VI, Exort.
ap. Evangelii nuntiandi (8 de Dezembro de 1975), 80: AAS 68 (1976), 75.
[32] Is 40, 31
[33] Ap 14, 6
[34] Heb 13, 8
[35] Rm 11, 33
[36] Cântico espiritual,
36, 10.
[37] Adversus haereses,
IV, 34, 1: PG 7, 1083: «Omnem novitatem attulit, semetipsum afferens»
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