Em seguida devemos tratar da razão de
ser dos preceitos judiciais.
E nesta questão discutem-se quatro
artigos:
Art. 1 — Se a lei antiga constituiu
convenientemente os chefes.
Art. 2 — Se os preceitos judiciais
relativos ao convívio social foram convenientemente estabelecidos.
Art. 3 — Se os preceitos judiciais
relativos aos estrangeiros foram convenientemente estabelecidos.
Art. 4 — Se a lei antiga estabeleceu
convenientemente preceitos relativos à sociedade doméstica.
Art.
1 — Se a lei antiga constituiu convenientemente os chefes.
O primeiro discute-se assim. — Parece
que a lei antiga constituiu inconvenientemente os chefes.
1. — Pois, como diz o Filósofo, a
ordenação do povo depende precipuamente do chefe máximo.
Ora, a lei não determina como esse
chefe supremo devia ser constituído, só determina sobre os chefes inferiores.
Assim, diz, primeiro (Ex 18, 21): Escolhe
dentre os do povo uns tantos homens tementes a Deus, etc., e (Nm 11, 16): Ajunta-me setenta homens dos anciãos de
Israel, e (Dt 1, 13): Dai dentre vós
homens sábios e capazes, etc. Logo, a lei antiga constituiu
insuficientemente os chefes do povo.
2. Demais. — É próprio do que é óptimo
fazer coisas óptimas, como diz Platão. Ora, a óptima constituição de um estado
ou de um povo qualquer é ser governado por um rei. Pois esse regime representa
por excelência o governo divino, pelo qual o Deus único governa o mundo desde o
princípio. Logo, a lei devia ter constituído um rei para o povo e não deixar a
escolha ao seu arbítrio, como o permitiu, (Dt 17, 14-15): Quando disseres eu constituirei um rei para me governar, elegerás
aquele, etc.
3. Demais. — Diz a Escritura (Mt 12,
25): todo reino dividido contra si mesmo
será desolado, o que ficou experimentalmente patenteado no povo judeu, cuja
causa da destruição foi a divisão do reino. Ora, a lei deve principalmente
buscar o que respeita ao bem comum do povo. Logo, a lei antiga devia ter
proibido a divisão do reino em dois governos. E isso nem devia ter sido feito
por autoridade divina, como, segundo se lê na Escritura (1 Rs 11, 29), o foi
por autoridade de Ahias Silonita.
4. Demais. — Assim como os sacerdotes
são constituídos para a utilidade do povo, no concernente a Deus, conforme o
diz a Escritura (Heb 5, 1), assim os príncipes são constituídos para essa mesma
utilidade, na ordem das coisas humanas. Ora, aos sacerdotes e aos levitas da
lei destinavam-se certos proventos de que deviam viver, como os dízimos, as
primícias e muitas outras semelhantes. Logo e pela mesma razão, aos príncipes
do povo devia ordenar-se o que lhes servisse de sustento, e tanto mais quando
lhes era proibido aceitar donativos, como diz a Escritura (Ex 23, 8): Não
aceitarás donativos, porque eles fazem cegar ainda aos prudentes e pervertem as
palavras dos justos.
5. Demais. — Assim como o regime real
é o melhor de todos, assim o regime do tirano é a pior corrupção do governo.
Ora, o Senhor, ao constituir o rei, instituiu um direito tirânico, conforme a
Escritura (1 Sm 8, 11): Este será o
direito do rei que vos há de governar, ele tomará os vossos filhos etc.
Logo, a lei dispôs inconvenientemente sobre a constituição dos príncipes.
Mas, em contrário, o povo de Israel gabava-se
da formosura do seu governo (Nm 24, 5): Que
formosos são os teus pavilhões, ó Jacó, e que belas as tuas tendas, ó Israel!
Ora, a formosura do governo do povo depende de príncipes bem constituídos.
Logo, pela lei o povo foi bem constituído em relação aos seus reis.
A respeito da boa
constituição dos chefes de uma cidade ou nação, devemos considerar duas coisas.
Uma, que todos tenham parte no governo, assim se conserva a paz do povo e todos
amam e guardam um tal governo, como diz Aristóteles. A outra é relativa à
espécie do regime ou à constituição dos governos. E tendo estes diversas
espécies, como diz o Filósofo, as principais são as seguintes. A monarquia,
onde o chefe único governa segundo o exige a virtude, a aristocracia, i. é, o
governo dos melhores, na qual alguns poucos governam segundo também o exige a
virtude. Ora, o governo melhor constituído, de qualquer cidade ou reino, é
aquele onde há um só chefe, que governa segundo a exigência da virtude e é o
superior de todos. E, dependentes dele, há outros que governam, também conforme
a mesma exigência. Contudo esse governo pertence a todos, quer por os chefes poderem
ser escolhidos dentre todos, quer também por serem eleitos por todos. Donde,
essa forma de governo é a melhor, quando combinada: monarquia, por ser só um o
chefe, aristocracia, por muitos governarem conforme o exige a virtude,
democracia i. é, governo do povo, por, deste, poderem ser eleitos os chefes e
ao mesmo pertencer à eleição deles.
E isto foi o que instituiu a lei
divina. Pois Moisés e os seus sucessores governavam o povo, sendo, como
singularmente, os chefes de todos, e isso é uma espécie de monarquia. Mas eram
escolhidos setenta e dois anciões, conforme a virtude. Pois, diz a Escritura
(Dt 1, 15) Eu tirei das vossas tribos
homens sábios e nobres e os constitui príncipes, sinal de um regime
aristocrático.
Mas era também democrático por serem
esses escolhidos dentre todo o povo: Escolhe
dentre os do povo uns tantos sábios, etc. E também era o povo quem os escolhia:
Dai entre vós homens sábios, etc. Por
onde é claro que a melhor constituição dos chefes foi a estabelecida pela lei.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO.
— O povo judeu era governado por Deus, com especial cuidado. Por isso diz a
Escritura (Dt 7, 6): O Senhor teu Deus te
escolheu para seres o seu povo próprio. Por isso, o Senhor reservou para si
a escolha do chefe supremo. E foi isto que Moisés pediu (Nm 27, 16): O Senhor Deus dos espíritos de todos os
homens escolha algum homem que vigie sobre essa multidão. Assim, por ordem
de Deus, foi Josué constituído no principado, depois de Moisés. E a respeito de
cada um dos juízes, sucessores de Josué, se lê que Deus suscitou ao povo um
salvador, e que o espírito do Senhor esteve neles, como está claro na
Escritura. Por isso o Senhor também não cometeu ao povo a eleição do rei, mas a
reservou para si, como se lê na Escritura (Dt 17, 15): Constituirás rei aquele a quem o Senhor teu Deus tiver escolhido.
RESPOSTA À SEGUNDA. — O governo real é
o melhor regime para o povo, não se corromper. Mas, por causa do grande poder
de que o rei é dotado, o seu governo facilmente degenera em tirania, se não for
perfeita a virtude de quem foi investido nesse poder. Pois, como diz
Aristóteles, só o virtuoso pode suportar a boa fortuna. Ora, são poucos os de
virtude perfeita, e principalmente os judeus eram cruéis e inclinados à
avareza, vícios que sobretudo fazem os homens cair na tirania. Por isso o
Senhor, desde o princípio, não lhes deu nenhum rei com amplos poderes, mas
juízes e governadores, que lhes servissem de guardas. Mas depois, o pedido do
povo, concedeu-lhe, quase indignado, um rei, como é claro pelo que disse a
Samuel (1 Sm 8, 7): Não é a ti que eles rejeitaram, mas a mim, para eu não
reinar sobre eles. Contudo, desde o princípio, para a escolha do rei,
instituiu, primeiro, o modo de elegê-lo. Para isso estabeleceu as duas
condições seguintes. Que, ao elegê-lo, procurassem conhecer o juízo de Deus. E
não constituíssem reis de outra nação, por terem esses pouca afeição à nação de
que foram feitos chefes, e por consequência não cuidam dela. Em segundo lugar,
ordenou como os reis já constituídos deviam ter o seu género de vida: não
multiplicarem os seus carros e cavalos, nem as mulheres, nem acumular riquezas
imensas. Pois é por tais cobiças, que resvalam na tirania e se divorciam da
justiça. Também determinou o modo de se haverem para com Deus: lerem sempre e
meditarem a sua lei, e tê-lo sempre em temor e obediência. Ordenou ainda como
havia de proceder em relação aos súditos: não os desprezar soberbamente, nem
oprimi-los nem se desviarem da justiça.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A divisão do
reino e a multidão dos reis foram dadas, antes, como pena aos judeus, por causa
das suas muitas dissensões, que suscitaram principalmente contra o reinado
justo de David, do que para a perfeição deles. Donde o dizer a Escritura (Os
13, 11): Eu te darei um rei no seu furor:
e ainda (Os 8, 4): Eles reinaram por si
mesmos e não por mim, eles foram príncipes e eu não os conheci.
RESPOSTA À QUARTA. — Os sacerdotes
eram destinados ao culto, conforme a sucessão na família. E isto para serem
tidos em maior reverência, por não poder qualquer do povo vir a ser sacerdote.
Por isso, a honra que lhes era devida redundava em reverência ao culto divino.
Por onde, era necessário se lhes destinassem certos bens especiais de que
vivessem, os quais eram tirados dos dízimos, das primícias, como também das
oblações e dos sacrifícios. Os príncipes, porém, eram tirados dentre todo o
povo, e por isso tinham certos bens próprios de que podiam viver. E tanto mais
quanto o Senhor proibira que mesmo o rei superabundasse em riquezas ou em magnificência
de aparato. Quer porque, assim, não lhes era fácil serem arrastados pela
soberba e caírem na tirania, ou também porque, não sendo os príncipes muito
ricos e sendo laborioso o principado e cheio de cuidados, este não era muito
desejado pela gente do povo, e assim desapareciam os motivos de sedição.
RESPOSTA À QUINTA. — O direito
referido não era devido ao rei por instituição divina, mas antes, prenunciava a
usurpação dos reis, que para si constituíram um direito iníquo, degenerando em
tiranos e depredadores do povo. Isso é claro pelo que a Escritura acrescenta: E
vós sereis seus servos, o que constitui, propriamente, a tirania, pois, os
tiranos governam os seus súditos como se estes fossem escravos. E o dito de
Samuel tinha por fim aterrá-los para não pedirem um rei. Mas, continua ainda a
Escritura, o povo não quis dar ouvidos às razões de Samuel. Pode porém acontecer
que um bom rei, sem tirania, tome os filhos do povo, constituindo-se seus
tribunos e centuriões, e se apodere de muitos bens dos seus súditos, a fim de
procurar o bem comum.
Nota:
Revisão da versão portuguesa por ama.
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