Em seguida devemos tratar da graça de
Deus, quanto à sua essência.
E nesta questão, discutem-se quatro
artigos:
Art. 1 — Se a graça produz algum
efeito na alma.
Art. 2 — Se a graça é uma qualidade da
alma.
Art. 3 — Se a graça é o mesmo que a
virtude.
Art. 4 — Se a graça está na essência
da alma como no sujeito, ou em alguma das duas potências.
Art.
1 — Se a graça produz algum efeito na alma.
[II
Sent., dist. XXVI, a. 1, III Cont. Gent., cap. CL, De Verit., q. XXVII, a. 1].
O primeiro discute-se assim. — Parece
que a graça não produz nenhum efeito na alma.
1. — Pois, no mesmo sentido em que se
diz que temos a graça de Deus, também se diz que temos a de uma pessoa qualquer,
donde o dizer a Escritura (Gn 39, 21): O
Senhor deu a José a graça na presença do carcereiro mor. Ora, quando se diz
que alguém recebeu graça de outrem, isso nenhum efeito produz em quem a recebeu,
mas, significa, que há uma certa aceitação em quem a dispensou. Logo, quando se
diz, que o homem recebeu graça de Deus, isso nenhum efeito lhe produz na alma,
significando apenas a aceitação divina.
2. Demais. — Como a alma vivifica o
corpo, assim Deus, a alma, por isso, diz a Escritura (Dt 30, 20): Deus é a tua vida. Ora, a alma vivifica
o corpo imediatamente. Logo, não há nenhum meio-termo entre Deus e a alma, e
portanto, a graça não produz na alma nenhum efeito.
3. Demais. — Ao lugar da Escritura (Rm
1, 7) — Graça vos seja dada e paz —
diz a Glosa: Graça, i. é, remissão dos pecados. Ora, a remissão dos pecados não
produz nenhum efeito na alma, só fazendo com que Deus não impute o pecado,
conforme a Escritura (Sl 31, 2): Bem-aventurado
o homem a quem o Senhor não imputou pecado. Logo, também a graça nada
produz na alma.
Mas, em contrário. — A luz não produz nenhum
efeito no objecto iluminado. Ora, a graça é uma luz da alma, e por isso diz
Agostinho: A luz da verdade abandona o
que prevaricou contra a lei, o qual, abandonado, se torna cego. Logo, a
graça produz algum efeito na alma.
Conforme o modo comum de
falar, a graça pode ser tomada em tríplice acepção. Primeiro, como amor de
outrem, assim, costuma dizer-se que um soldado tem a graça do rei, para
significar que o rei o tem na sua graça. Segundo, na acepção de um dom gratuitamente
dado, e assim costumamos dizer: Faço-te esta graça. Terceiro, como recompensa
de um benefício gratuitamente feito, e assim quando se diz que damos graças
pelos benefícios. Ora, destas três acepções, a segunda depende da primeira,
pois, do amor com que temos alguém em nossa graça, procede o que gratuitamente
lhe fazemos. E da segunda procede a terceira, porque dos benefícios gratuitamente
feitos procede a acção de graças.
Ora, quanto às duas últimas acepções,
é manifesto, que a graça produz em quem a recebeu, primeiro, o próprio dom,
gratuitamente feito, e segundo, reconhecimento desse dom. Mas na primeira
acepção, é preciso fazer-se uma diferença entre a graça de Deus e a humana.
Pois, como o bem da criatura procede da vontade divina, do amor de Deus, pelo
qual quer o bem da criatura, há-de decorrer algum bem para esta. Ao passo que a
vontade do homem se move pelo bem preexistente nas coisas, e por isso o seu
amor não produz totalmente o bem do seu objecto, mas, ao contrário, o
pressupõe, parcial ou totalmente. Donde é claro, que todo bem da criatura
resulta de algum amor de Deus, sendo esse bem entretanto produzido e não,
coexistente com o amor eterno. Ora, nessa diferença de bens se funda a do amor
de Deus pela criatura. Assim, um é o amor comum, com que ama todas as coisas,
que existem, no dizer da Escritura (Sb 11, 25), e, pelo qual, dá o ser natural
às coisas criadas. Outro é o amor especial, pelo qual eleva a criatura racional
a participar do bem divino, condição essa que lhe excede a natureza. E por esse
amor dizemos que ela ama a Deus, absolutamente falando, porque por ele, Deus
quer, absolutamente, o bem eterno da criatura, que é Ele próprio.
Assim, pois, quando se diz que o homem
tem a graça de Deus, significa isso um dom sobrenatural, procedente de Deus
para o homem. — Mas às vezes também se chama graça de Deus ao próprio e eterno
amor divino, e nessa acepção é que se considera a graça da predestinação, pela
qual Deus escolheu alguns, ou os predestinou, gratuitamente e não, por méritos
deles. Tal é o que diz a Escritura (Ef 1, 5): Predestinou-nos para sermos seus filhos adoptivos em louvor e glória da
sua graça.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO.
— Quando se diz, que alguém tem a graça de outrem, ou a de Deus, entende-se que
há, no primeiro, algo de agradável ao segundo, ou a Deus, mas diferentemente.
Pois, o que em alguém é agradável a outrem é pressuposto ao amor deste. Ao
contrário, o que há no homem de agradável a Deus, já é causado pelo amor
divino.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Deus é a vida da
alma, a modo de causa eficiente, ao passo que a alma é a vida do corpo, a modo
de causa formal. Ora, entre a matéria e a forma não há nenhum meio-termo, pois
esta, por si mesma, informa a matéria ou o sujeito. Ao passo que o agente
informa o sujeito, não pela sua substância, mas pela forma, que causa na
matéria.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Agostinho diz: Quando disse que a graça consiste na
remissão dos pecados e a paz, na reconciliação com Deus, isso não significa que
a paz e a reconciliação não pertençam à graça geral, mas que, especialmente, a
graça significa a remissão dos pecados. Logo, nem só a remissão dos pecados
pertence à graça, mas também, muitos outros dons de Deus. Donde, a remissão dos
pecados não se opera sem algum efeito divinamente causado em nós, como a seguir
se demonstrará (q. 113, a. 2).
Nota:
Revisão da versão portuguesa por ama.
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