Evangelho: Mt 19, 23-30
23 Jesus disse a Seus discípulos: «Em verdade vos digo que um rico
dificilmente entrará no Reino dos Céus. 24 Digo-vos mais: É mais
fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, que entrar um rico no Reino
dos Céus». 25 Os discípulos, ouvidas estas palavras, ficaram muito
admirados, dizendo: «Quem poderá, então, salvar-se?». 26 Porém,
Jesus, olhando para eles, disse-lhes: «Aos homens isto é impossível, mas a Deus
tudo é possível». 27 Então Pedro, tomando a palavra, disse-Lhe: «Eis que abandonámos tudo e
Te seguimos; qual será a nossa recompensa?». 28 Jesus disse-lhes:
«Em verdade vos digo que, no dia da regeneração, quando o Filho do Homem
estiver sentado no trono da Sua glória, vós, que Me seguistes, também estareis
sentados sobre doze tronos, e julgareis as doze tribos de Israel. 29
E todo aquele que deixar a casa, ou os irmãos ou irmãs, ou o pai ou a mãe, ou
os filhos, ou os campos, por causa do Meu nome, receberá cem vezes mais e
possuirá a vida eterna. 30 Muitos dos primeiros serão os últimos, e
muitos dos últimos serão os primeiros.
Comentário:
Quem, por mais que
empenhe, pretende alcançar a meta tem, antes de mais, de convencer-se de duas
coisas:
A primeira: que por
si mesmo, sem ter alguém que o guie, aconselhe e o ajude a estabelecer um
‘plano de treino’, nunca conseguirá o que pretende!
A segunda: que só
com o auxílio divino solicitado com perseverança, fé e esperança, lhe será
possível percorrer todo o caminho que leva à salvação eterna.
Daqui que, cientes
destas verdades, recorrer à direcção espiritual, é a atitude certa a tomar.
(ama, comentário sobre Mt 19, 27-29,
2013.08.20)
Leitura espiritual
Magistério
cardeal joseph ratzinger
Algumas perguntas pessoais
…/11
O "giro
linguístico".
O
fundamento para a renúncia inequívoca à verdade estriba no que hoje se denomina
o "giro linguístico": não se poderia remontar para além da linguagem
e das suas representações, a razão estaria condicionada pela linguagem e vinculada
à linguagem. Já em 1901 F. Mauthner cunhou a seguinte frase: "O que se denomina
pensamento é pura linguagem". M. Reiser comenta, neste contexto, o abandono
da convicção de que com meios linguísticos se pode ascender ao que é supra-linguístico.
O relevante exegeta protestante U. Luz afirma [...] que a crítica histórica
abdicou na Idade Moderna da questão da verdade, e considera-se obrigado a aceitar
e reconhecer como correta essa capitulação: agora já não haveria uma verdade a buscar
para além do texto, mas apenas posições sobre a verdade que concorreriam entre si,
ofertas de verdade que seria preciso defender com um discurso público no
mercado das visões do mundo.
Quem
medita sobre semelhantes modos de ver as coisas, perceberá que lhe vem quase que
inevitavelmente à memória uma passagem profunda do Fedro de Platão. Nela, Sócrates
conta a Fedro uma história ouvida dos antigos, que "tinham conhecimento do
que é verdadeiro". Certa vez Thot, o "pai das letras" e o
"deus do tempo", teria visitado o rei egípcio Thamus, de Tebas.
Instruiu o soberano em diversas artes que havia inventado, e especialmente na
arte de escrever que tinha concebido. Ponderando o seu próprio invento, disse
ao rei: "Este conhecimento, ó rei, tornará os egípcios mais sábios e
fortalecerá a sua memória; é o elixir da memória e da sabedoria". Mas o
rei não se deixou impressionar. Previu o contrário como consequência do
conhecimento da escrita:
"Este
método produzirá esquecimento nas almas dos que o aprenderem porque descuidarão
o exercício da memória, já que agora, fiando-se da escrita externa, recordarão
apenas de uma maneira externa, não a partir do seu próprio interior e de si mesmos.
Por conseguinte, tu inventaste um meio, não para recordar, mas para perceber, e
transmites aos teus aprendizes apenas a representação da sabedoria, não a
própria sabedoria. Pois agora são eruditos em muitas coisas, mas sem verdadeira
instrução, e assim pensam ser entendidos em mil coisas quando na realidade não
entendem nada, e são gente com quem é difícil tratar, pois não são verdadeiros
sábios, mas sábios apenas na aparência".
Quem
pensa no modo como hoje os programas de televisão do mundo inteiro inundam o homem
com informações e o tornam assim "sábio na aparência"; quem pensa nas
enormes possibilidades do computador e da Internet, que por exemplo permitem a
quem consulta ter imediatamente à sua disposição todos os textos de um Padre da
Igreja nos quais aparece uma palavra, sem no entanto ter compreendido o seu
pensamento –esse não considerará exageradas as prevenções do rei. Platão não
rejeita a escrita enquanto tal, como nós também não rejeitamos as novas
possibilidades de informação, antes fazemos delas um uso agradecido; mas dá um
sinal de alerta cuja seriedade se comprova diariamente pelas consequências do
"giro linguístico", como também por muitas circunstâncias que nos são
familiares a todos.
H.
Schade mostra o núcleo daquilo que Platão tem a dizer-nos hoje quando escreve:
"É acerca do predomínio de um mero método filológico e da consequente
perda da realidade que Platão nos previne".
Quando
a escrita, o escrito, se converte em barreira que oculta o conteúdo,
transforma-se numa anti-arte, que não torna o homem mais sábio, mas leva-o a
extraviar-se numa sabedoria falsa e doente. Por isso, em face do "giro
linguístico", A. Kreiner adverte com razão: "O abandono da convicção
de que se pode remeter com meios linguísticos a conteúdos extralinguísticos
equivale ao abandono de um discurso que de algum modo ainda estava cheio de
sentido". E sobre esta mesma questão o Papa [João Paulo II] comenta na
Encíclica [Fides et ratio]. "A interpretação desta Palavra (a de Deus) não
pode levar-nos de interpretação em interpretação, sem nunca chegarmos a
descobrir uma afirmação simplesmente verdadeira".
O
homem não está aprisionado na sala de espelhos das interpretações; pode e deve
buscar o acesso ao real, que está além das palavras e se lhe revela nas
palavras e através delas
[i].
Outras religiões
Intolerância religiosa?
Com muita frequência,
alguns interpretam o facto de anunciar Cristo como uma ruptura no diálogo com
as outras religiões. Como é possível anunciar Cristo e dialogar ao mesmo tempo?
[...]
Cristo é totalmente diferente de todos os fundadores de outras religiões, e não
pode ser reduzido a um Buda, ou a um Sócrates, ou a um Confúcio. É realmente a
ponte entre o céu e a terra, a luz da verdade que se mostrou a todos nós. Mas o
dom de conhecer Jesus não significa que não haja fragmentos importantes de
verdade em outras religiões.
À
luz de Cristo, podemos instaurar um diálogo fecundo com um ponto de referência comum,
e assim podemos ver como todos esses fragmentos de verdade contribuem para um
aprofundamento da nossa própria fé e para uma autêntica comunhão espiritual da humanidade
[ii].
Vítima da intolerância.
A Igreja declara-se contra
a intolerância. Mas não é ela mesma vítima da intolerância?
Com
efeito. Houve, por um lado, filosofias de estilo totalitário [que a
perseguiram], embora na actualidade o marxismo esteja em crise. Por outro, o
racionalismo agnóstico não é tão pacífico como poderia parecer. Alguns
consideram a Igreja o último baluarte da intolerância, mas quando combatem essa
[pretensa] intolerância, tornam-se eles mesmos intolerantes. E então a
intolerância pode converter-se em violência [iii].
Liberdade
de opinião? Não quereria entrar aqui nas complexas discussões dos últimos anos,
mas apenas ressaltar um aspecto fundamental para todas as culturas: o respeito
pelo que é sagrado para outra pessoa, e particularmente o respeito pelo sagrado
no sentido mais alto, por Deus. É lícito supor que deveríamos poder encontrar
esse respeito mesmo em quem não está disposto a crer em Deus. Onde se viola
esse respeito, perde-se algo essencial na sociedade.
Na
sociedade actual, graças a Deus, multa-se todo aquele que desonra a fé de
Israel, a sua imagem de Deus, as suas grandes figuras. Multa-se também aquele
que vilipendia o Corão e as convicções de fundo do Islão. Mas quando se trata
de Cristo e do que é sagrado para os cristãos, a liberdade de opinião aparece
como o bem supremo, cuja limitação representaria uma ameaça ou até uma destruição
da tolerância e da liberdade em geral.
No
entanto, a liberdade de opinião tem um limite: não pode destruir a honra e a
dignidade do outro; não há liberdade para mentir ou para destruir os direitos
humanos.
O
Ocidente sente um ódio por si mesmo que é estranho e só pode ser considerado patológico.
Tenta, louvavelmente, abrir-se, cheio de compreensão, para valores externos,
mas já não se ama a si próprio; só vê da sua História o que é censurável e destrutivo,
ao mesmo tempo que não é capaz de perceber o que é grande e puro.
A
Europa precisa de uma nova aceitação de si própria - embora certamente crítica
e humilde -, se quiser verdadeiramente sobreviver [iv].
Todas as religiões
conduzem à salvação?
Ultimamente,
vem-se impondo de modo bastante geral esta tese: todas as religiões são
caminhos de salvação. Talvez não o caminho ordinário, mas ao menos caminhos
"extraordinários" de salvação: por todas as religiões se chegaria à
salvação. Isto transformou-se na visão habitual.
Semelhante
tese não corresponde apenas à ideia da tolerância e do respeito pelos outros que
hoje nos é imposta. Corresponde também à imagem moderna de Deus: Deus não pode
rejeitar homem algum apenas porque não conhece o cristianismo e, em consequência,
cresceu noutra religião. Aceitará a sua vida religiosa da mesma forma que faz
com a nossa.
Embora
esta tese - reforçada nos últimos tempos com muitos outros argumentos – seja bastante
clara à primeira vista, não deixa de suscitar dúvidas. Pois as religiões particulares
não exigem apenas coisas diferentes, mas também coisas opostas. [...]
Sendo assim, está-se
aceitando como válido que atitudes contraditórias conduzem à mesma meta; em
poucas palavras, estamos novamente diante da questão do relativismo.
Pressupõe-se
sub-repticiamente que, no fundo, todos os conteúdos são igualmente válidos. O
que é que vale realmente, não o sabemos.
Cada
um tem de percorrer o seu caminho, ser feliz à sua maneira, como dizia
Frederico II da Prússia. Assim, a cavalo das teorias da salvação, o relativismo
torna a entrar sub-repticiamente pela porta traseira: a questão da verdade é
separada da questão das religiões e da salvação. A verdade é substituída pela
boa intenção; a religião mantém-se no plano subjetivo, porque não se pode
conhecer aquilo que é objetivamente bom e verdadeiro [v].
Todas as religiões são
boas?
As
religiões (e agora também o agnosticismo e o ateísmo) são consideradas iguais.
Mas com certeza isto não é assim. Com efeito, há formas de religião degeneradas
e doentias, que não elevam o homem, mas o alienam: a crítica marxista da
religião não carecia totalmente de base.
Também
as religiões nas quais é preciso reconhecer uma grandeza moral, e que estão a
caminho da verdade, podem adoecer em certos trechos desse caminho. No hinduísmo
(que mais propriamente é um nome coletivo para diversas religiões), há
elementos grandiosos, mas também aspectos negativos: por exemplo o
entrelaçamento com o sistema de castas, a prática da queima de viúvas - que se
formou a partir de representações inicialmente simbólicas -, bem como as
aberrações do shaktismo [vi],
para mencionar apenas um par de situações.
Também
o Islão, com toda a grandeza que representa, está continuamente exposto ao perigo
de perder o equilíbrio, de dar espaço à violência e deixar que a religião deslize
para o ritualismo externo.
E
naturalmente há também, como todos nós bem sabemos, formas doentias no cristianismo.
Assim
aconteceu quando os cruzados, na conquista da cidade santa de Jerusalém, em que
Cristo morreu por todos os homens, mergulharam muçulmanos e judeus num banho de
sangue. Isto significa que a religião exige discernimento, discernimento em
relação às formas das religiões e discernimento no interior da própria religião,
conforme o seu próprio nível.
Com
o indiferentismo quanto aos conteúdos e às ideias -todas as religiões, embora distintas,
seriam iguais -, não se pode ir adiante. O relativismo é perigoso, tanto para a
formação do ser humano individualmente como em comunidade. A renúncia à verdade
não cura o homem. Não se pode esquecer o enorme mal que se fez na História em
nome de opiniões e intenções boas [vii].
Salvação e moral.
Quando
se fala do significado salvífico das religiões, surpreendentemente pensa-se, na
maioria das vezes, apenas em que todas possibilitariam a vida eterna, com o que
se acaba neutralizando o pensamento da vida eterna, pois todo o mundo chegaria
a ela de uma forma ou de outra. Mas assim rebaixa-se de maneira inconveniente a
questão da salvação.
O
céu começa na terra. A salvação no além pressupõe uma vida correspondente no aquém.
Não podemos, pois, perguntar-nos apenas quem vai para o céu e desentender-nos
simultaneamente da questão do céu. É necessário perguntar o que é o céu e como vem
à terra. A salvação do além deve refletir-se numa forma de vida que torne o
homem humano no aquém, isto é, neste mundo, e portanto conforme com a vontade
de Deus.
Isto
significa [...] que, na questão da salvação, é preciso olhar para além das
próprias religiões, para um horizonte ao qual pertencem as regras de uma vida
recta e justa, regras que não podem ser relativizadas arbitrariamente. Eu
diria, pois, que a salvação começa com a vida recta e justa do homem neste
mundo, que abarca sempre os dois pólos, o do indivíduo e o da comunidade.
Há
formas de comportamento que nunca podem servir para tornar recto e justo o homem,
e outras que sempre pertencem ao ser recto e justo do homem. Isto significa que
a salvação não está nas religiões como tais, mas depende também de até que
ponto levam os homens, junto com elas, ao bem, à busca de Deus, da verdade e do
bem. Por isso, a questão da salvação traz sempre consigo um elemento de crítica
religiosa, embora também possa aliar-se positivamente com as religiões. Em
qualquer caso, tem a ver com a unidade do bem, com a unidade do verdadeiro, com
a unidade de Deus e do homem [viii].
O caminho da consciência.
Não
disse que a salvação pode ser atingida por todos os caminhos. O caminho da
consciência, [que consiste em] manter o olhar focado na verdade e no bem objectivo,
é o único caminho, embora possa tomar muitas formas por causa do grande número
de pessoas e de situações. Mas o bem é um só, e a verdade não se contradiz. O
facto de o ser humano não os atingir não relativiza as exigências da verdade e
da bondade. Por isso, não basta permanecer na religião que se herdou, mas é preciso
que se esteja atento ao verdadeiro bem e assim se seja capaz de transcender os limites
da própria religião.
Mas
isto só faz sentido se a verdade e o bem existirem realmente. Seria impossível
percorrer o caminho para Cristo se Ele não existisse. Viver com os olhos do
coração abertos, purificar-se interiormente e buscar a luz são condições indispensáveis
para a salvação humana. Portanto, é absolutamente necessário proclamar a
verdade, isto é, fazer brilhar a luz (não a pôr "sob o alqueire, mas num
candelabro" [cfr. Jo 5, 14-15] [ix].
(cont)
(Revisão
da versão portuguesa por ama)
[i]
Conferência no
encontro de presidentes de comissões episcopais da América Latina para a
doutrina da fé, Guadalajara (México), Nov 1996)
[ii]
El
relativismo, nuevo rostro de Ia intolerância
[iii]
L’abolition de
l’homme
[iv]
Fundamentos
espirituales de Europa, conferência na biblioteca do Senado da República
Italiana, 13.05.2004; repr. em Zenit, 22.05.2004
[v]
Fe, verdad y
cultura
[vi]
Conjunto de
crenças dentro do tantrismo - movimento filosófico e ritualístico que influenciou
diversas seitas hinduístas, budistas etc. - que preconiza a realização
espiritual por meio de prácticas densamente simbolistas, que em alguns casos
abrangem a magia negra, o culto à morte e prácticas sexuais orgiásticas (N. do
T.)
[vii] Ibid
[viii] Fe, verdad y cultura
[ix] Entrevista à
Frankfurter Aligemeine Zeitung
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