Evangelho: Mt 15, 21-28
21 Partindo dali, Jesus retirou-Se para a região de Tiro e de Sidónia. 22
E eis que uma mulher cananeia, que viera daqueles arredores, gritou: «Senhor,
Filho de David, tem piedade de mim! Minha filha está cruelmente atormentada
pelo demónio». 23 Ele, porém, não lhe respondeu palavra.
Aproximando-se Seus discípulos, pediram-Lhe: «Despede-a, porque vem gritando
atrás de nós». 24 Ele respondeu: «Eu não fui enviado senão às
ovelhas perdidas da casa de Israel». 25 Ela, porém, veio e
prostrou-se diante d'Ele, dizendo: «Senhor, valei-me». 26 Ele
respondeu: «Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cães». 27
Ela replicou: «Assim é, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas
que caem da mesa dos seus donos». 28 Então Jesus disse-lhe: «Ó
mulher, grande é a tua fé! Seja-te feito como queres». E, desde aquela hora, a
sua filha ficou curada.
Comentário:
A humildade pessoal
vence sempre o Coração de Jesus!
Como neste caso:
longe de argumentar contra a “classificação” que os judeus atribuíam aos
Cananeus, a mulher como que “faz ver” a Cristo que a sua condição não a inibe
de esperar ser atendida por aquele que, sem dúvida alguma, considera seu
“dono”.
O resultado: um dos
elogios mais veementes do Jesus Cristo e, claro, a obtenção do que Lhe pede.
(ama, comentário sobre Mt 15, 21-28, 2014.05.26)
Leitura espiritual
Magistério
cardeal joseph ratzinger
Algumas perguntas pessoais
…/9
Igreja da Cruz.
Jesus fracassou?
Com
certeza, não teve sucesso no sentido em que o tiveram César ou Alexandre Magno.
De um ponto de vista puramente terreno, inicialmente pareceu que tinha
fracassado: morreu, foi abandonado por quase todos e condenado pelas suas
palavras. A resposta do povo à sua mensagem não foi adesão, mas crucifixão.
Diante de um final assim, teremos de reconhecer que "sucesso" não é
um dos nomes de Deus e que não é cristão basear-se em sucessos externos ou em
números.
Os
caminhos de Deus são diferentes dos nossos: o seu sucesso vem pela Cruz e está
sempre sob esse sinal.
Se
dirigirmos o olhar para trás e observarmos a História, teremos de dizer que o
que nos impressiona não é a Igreja daqueles que tiveram sucesso: a Igreja dos
Papas senhores do mundo [com poder temporal] ou a Igreja daqueles que tiveram
de enfrentar o mundo. A Igreja que nos impressiona e que nos leva a crer é a
Igreja dos sofredores, a Igreja que perseverou com fortaleza e nos dá
esperança. Ainda hoje essa Igreja é o sinal de que Deus existe e de que o homem
não é só um fracasso, mas pode ser salvo
[i].
Poder e amor.
A
teologia do pequeno [dos humildes] é uma categoria fundamental do ser cristão.
Segundo a nossa fé, a grandeza especial de Deus manifesta-se precisamente na
ausência de poder. Isto pressupõe que, a longo prazo, a força da História se
encontra precisamente nas pessoas que amam, numa força, portanto, que não se
pode medir de acordo com categorias de poder. Assim, Deus revelou-se deliberadamente,
para mostrar quem Ele é, na impotência de Nazaré e do Gólgota. O maior não é,
pois, aquele que mais pode destruir -para o mundo, o potencial de destruição é
ainda a verdadeira demonstração de poder -; pelo contrário, a menor força de
amor já é maior do que o maior potencial de destruição [ii].
Fé e razão
Fé e filosofia.
A fé precisa realmente da
filosofia, ou a fé - que, em palavras de Santo Ambrósio, foi confiada a
pescadores e não a dialéticos - é completamente independente da existência ou
inexistência de uma filosofia aberta em relação a ela?
Se
se contempla a filosofia apenas como uma disciplina académica entre outras,
então a fé é de facto independente dela. Mas o Papa [João Paulo II] entende a
filosofia num sentido muito mais amplo e mais conforme com a sua origem. A
filosofia pergunta-se se o homem pode conhecer a verdade, as verdades
fundamentais sobre si mesmo, sobre a sua origem e o seu futuro, ou se vive numa
penumbra que não é possível esclarecer e tem de recluir-se, em última análise,
no âmbito da utilidade.
A
característica própria da fé cristã no mundo das religiões é que afirma
dizer-nos a verdade sobre Deus, o mundo e o homem, e que pretende ser a religio
vera, a religião da verdade. [...]
Mas
isto significa o seguinte: a questão da verdade é a questão essencial da fé
cristã, e, neste sentido, a fé tem inevitavelmente a ver com a filosofia [iii].
Razão e questões últimas.
Queria concluir com a
menção de um comentário à Encíclica [Fides et ratio] [iv]
publicado no semanário alemão Die Zeit, cuja tendência é antes distanciar-se
das posições da Igreja. O comentarista Jan Ross sintetiza com muita precisão o
núcleo da Encíclica ao dizer que a destituição da teologia e da metafísica
"não somente tornou o pensamento mais livre, mas também mais
estreito".
Sim,
Ross não receia falar de um "embrutecimento por descrença".
"Quando a razão se afastou das questões últimas, tornou-se apática e
entediante, deixou de ser capaz de lidar com os enigmas vitais do bem e do mal,
da morte e da imortalidade".
A voz do Papa [João Paulo
II] deu ânimo "a muitos homens e a povos inteiros; também soou dura e
cortante aos ouvidos de muitos, e até suscitou ódio, mas, se emudecer, far-se-á
um terrível silêncio".
Com
efeito, se se deixa de falar de Deus e do homem, do pecado e da graça, da morte
e da vida eterna, todo o grito e todo o ruído que houver será apenas uma
tentativa inútil de fazer esquecer o emudecimento daquilo que é próprio do ser
humano [v].
Dúvidas de fé.
Os católicos podem ter
dúvidas, ou são hipócritas e hereges quando as têm? O que parece estranho nos
cristãos é que façam uma distinção entre verdade religiosa e verdade
científica. Ocupam-se de Darwin e vão à igreja. É possível tal separação? Só
pode haver uma verdade. Ou o mundo foi realmente criado em seis dias ou se
desenvolveu em milhões de anos.
Num mundo tão confuso como
o nosso, a dúvida voltará sempre, inevitavelmente, a invadir cada pessoa. A
dúvida não tem de estar automaticamente ligada a uma negação da fé. Posso
confrontar-me seriamente com as questões que me inquietam, e ao mesmo tempo
confiar em Deus, no núcleo essencial da fé. Por um lado, posso tentar resolver
as contradições aparentes, mas, por outro, apesar de não poder encontrar
soluções para tudo, posso confiar em que se venha a resolver o que não é
possível solucionar agora.
Também na história da
teologia volta sempre a haver questões que, de momento, não podem ser
resolvidas, mas que não se devem pôr de parte com interpretações forçadas.
Também
faz parte da fé a paciência do tempo. O tema a que acabou de referir-se - Darwin,
a Criação, a teoria da evolução - é tema de um diálogo que ainda não está concluído
e que, no momento, provavelmente não poderá ser concluído com os meios de que
dispomos. O problema dos seis dias não se põe com particular agudeza entre a posição
da ciência moderna sobre a origem do mundo e a fé. Porque também na Bíblia é claramente
um esquema teológico, que não pretende narrar de forma literal a história da Criação.
No
próprio Antigo Testamento existem outras representações da Criação". No
livro de Job e nos livros sapienciais, encontramos relatos da Criação que
deixam claro que os crentes não pensavam que o processo da Criação estivesse,
por assim dizer, representado fotograficamente nesses textos, mesmo na ocasião
em que foram escritos.
Só
está representado na medida em que nos permite apreender o essencial: que o
mundo provém do poder de Deus e é criado por Ele. Como se desenvolveram depois
os processos concretos é uma questão completamente diferente, em que até a
própria Bíblia deixa uma grande abertura. Por outro lado, penso que a teoria da
evolução ainda não ultrapassou, em grande parte, o campo das hipóteses, e que,
muitas vezes, está misturada com filosofias quase míticas, sobre as quais ainda
tem de haver diálogos críticos [vi].
Perda da fé.
O
homem não é plasmado apenas do interior para o exterior. Existe também uma
linha de força que vai do exterior para o interior: negá-la ou desconsiderá-la
seria uma forma de espiritualismo que rapidamente se vingaria. O Sagrado, o
Santo, está presente aqui neste mundo, e quando a força educadora de suas
manifestações visíveis desaparece, acaba-se caindo num achatamento e num
embrutecimento dos homens e do mundo [vii].
Fé e outras religiões.
A
fé não pode sintonizar com filosofias que excluam a questão da verdade, mas
sintoniza, sim, com movimentos que se esforçam por sair do cárcere do
relativismo. Da mesma forma, não pode integrar directamente as antigas religiões.
No entanto, as religiões podem proporcionar-lhe formas e imagens de diverso tipo,
mas sobretudo atitudes, como o respeito, a humildade, a abnegação, a bondade, o
amor ao próximo, a esperança na vida eterna. Isto parece-me -seja dito entre
parêntesis - ser importante também para a questão do significado salvífico das
religiões. Não salvam, por assim dizer, na medida em que são sistemas fechados
e pela fidelidade a esses sistemas, mas colaboram com a salvação na medida em
que levam os homens a "perguntar-se por Deus" (como diz o Antigo
Testamento), a "buscar o seu rosto", a "buscar o Reino de Deus e
a sua justiça" [viii].
Fé adulta.
Não
devemos permanecer crianças na fé, em estado de menoridade. E em que é que
consiste ser crianças na fé? Responde São Paulo: significa ser batidos pelas ondas
e levados ao sabor de qualquer vento de doutrina... (Ef 4, 14). Uma descrição muito
actual! Quantos ventos de doutrina conhecemos nestes últimos decénios, quantas correntes
ideológicas, quantos modos de pensar!... A pequena barca do pensamento de muitos
cristãos foi não raro agitada por essas ondas, lançada de um extremo ao outro:
do marxismo ao liberalismo, até ao ponto de chegar à libertinagem; do
coletivismo ao individualismo radical; do ateísmo a um vago misticismo
religioso; do agnosticismo ao sincretismo, e por aí adiante.
Todos
os dias nascem novas seitas e cumpre-se assim o que São Paulo disse sobre o engano
dos homens, sobre a astúcia que tende a induzir ao erro (cfr. Ef 4, 14). Ter
uma fé clara segundo o Credo da Igreja cataloga-se frequentemente como
fundamentalismo, ao passo que o relativismo, isto é, deixar-se levar ao sabor
do qualquer vento de doutrina, aparece como a única atitude à altura dos tempos
actuais. Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que não reconhece nada
como definitivo e que usa como critério último apenas o próprio "eu"
e os seus apetites.
Nós,
pelo contrário, temos outro critério: o Filho de Deus, o verdadeiro homem. É
Ele a medida do verdadeiro humanismo. Não é "adulta" uma fé que segue
as ondas da moda e a última novidade; adulta e madura é antes uma fé
profundamente enraizada na amizade com Cristo. É essa amizade que se abre a
tudo aquilo que é bom e que nos dá o critério para discernir entre o que é
verdadeiro e o que é falso, entre o engano e a verdade.
Devemos
deixar amadurecer essa fé adulta. Para essa fé devemos guiar o rebanho de Cristo.
E é essa fé - e somente essa fé - que cria unidade e se realiza na caridade. Em
contraste com as contínuas peripécias daqueles que são como crianças batidas
pelas ondas. São Paulo oferece-nos a este propósito uma bela palavra: praticar
a verdade na caridade, como fórmula fundamental da existência cristã. Em
Cristo, verdade e caridade coincidem. Na medida em que nos aproximamos de
Cristo, também na nossa vida a verdade e a caridade se fundem. A caridade sem a
verdade seria cega; a verdade sem a caridade seria como um címbalo que tine (1
Cor 13, l) [ix].
Verdade e relativismo
Relativismo.
O
relativismo converteu-se no problema central da fé na hora actual.
Sem
dúvida, já não se apresenta apenas com a sua veste de renúncia resignada ante a
imensidão da verdade, mas também como uma posição definida positivamente pelos conceitos
de tolerância, conhecimento dialógico e liberdade, conceitos que ficariam limitados
se se afirmasse a existência de uma verdade válida para todos.
Por
sua vez, apresenta-se como fundamento filosófico da democracia. Esta edificar-se-ia
sobre a base de que ninguém pode ter a pretensão de conhecer a verdadeira via,
e se alimentaria do facto de que todos os caminhos se reconhecem mutuamente
como fragmentos do esforço por atingir o que é melhor. Por isso, esses caminhos
teriam de buscar no diálogo algum elemento comum e competir entre si quanto às
afirmações que não podem integrar-se numa crença comum a todos. Um sistema de
liberdades - dizem-nos - deveria, em essência, ser um sistema de posições que
se relacionassem entre si como relativas, e além disso dependentes de situações
históricas abertas a novos desenvolvimentos.
Uma
sociedade liberal seria, assim, uma sociedade relativista; só com essa condição
poderia permanecer livre e aberta ao futuro [x].
(cont)
(Revisão da versão portuguesa por ama)
[ii] O sal da terra,
pág. 18
[iii] Fe, verdad y
cultura
[iv] A Encíclica Fides
et ratio, de 14.09.1998, trata das relações entre fé e razão; entre outras
coisas, defende firmemente a capacidade da inteligência humana de chegar à
verdade (N. do T.)
[v] Ibid
[vi] O sal da terra,
págs. 26-27
[vii] II Dio vicino, pág.
105
[viii] Fe, verdad y cultura
[ix] Homilia da Missa
Pro Eligendo Pontífice
[x] Conferência no
encontro de presidentes de comissões episcopais da América Latina para a
doutrina da fé, Guadalajara (México), Nov 1996)
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