Evangelho: Mt 10, 34 – 11, 1
34 «Não julgueis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz, mas a espada.
11 1 Tendo Jesus acabado de dar estas
instruções aos Seus doze discípulos, partiu dali para ir ensinar e pregar nas cidades
deles.
Comentário:
A
paz e a espada! Parece um contrassenso, algo, pelo menos, estranho!
A
espada associamo-la à luta, ao combate e, portanto, nada terá a ver com a paz.
Não…
não é assim.
A
paz no seu conceito mais abrangente, quer a paz pessoal como a paz entre os
povos, não se consegue sem luta porque, nós os homens, somos inclinados
justamente para o mal e, a paz é a consumação do bem.
Na
luta interior que cada um leva a cabo por dominar os seus defeitos e fraquezas,
ultrapassar as suas debilidades, travamos de facto uma batalha e, por vezes bem
árdua, para conseguir o que desejamos.
Para
viver em paz com os outros temos primeiro, que estar em paz connosco próprios
porque ninguém pode dar o que não tem.
(ama,
comentário sobre Mt 10, 34; 11, 1, 2013.07.15)
Leitura espiritual
Documentos do Magistério
CARTA ENCÍCLICA
LE PÈLERINAGE DE LOURDES
DO SUMO PONTÍFICE PAPA PIO XII
SOBRE O CENTENÁRIO
DAS APARIÇÕES DA SS. VIRGEM EM LOURDES
INTRODUÇÃO
1. A peregrinação a
Lourdes, que tivemos a alegria de realizar ao irmos presidir, em nome do nosso predecessor
Pio XI, as festas eucarísticas e marianas do encerramento do jubileu da
redenção, deixou em nossa alma profundas e doces recordações. Por isso,
particularmente agradável nos é saber que, por iniciativa do bispo de Tarbes e
Lourdes, a cidade marial se apresta para celebrar com brilho o centenário das
aparições da Virgem imaculada na gruta de Massabielle, e que um comitê
internacional foi, mesmo, constituído para esse fim sob a presidência do
eminente cardeal Eugène Tisserant, deão do Sacro Colégio. Convosco, caros
filhos e veneráveis irmãos, queremos agradecer a Deus o insigne favor feito à
vossa pátria, e tantas graças derramadas desde há um século sobre a multidão
dos peregrinos. Queremos igualmente convidar todos os nossos filhos a
renovarem, neste ano jubilar, a sua piedade confiante e generosa para com aquela
que, segundo a palavra de S. Pio X, se dignou estabelecer em Lourdes "a
sede da sua imensa bondade". 1
NOSSA
SENHORA NA HISTÓRIA DA FRANÇA
2. Toda terra cristã é uma
terra marial, e não há povo redimido pelo sangue de Cristo que não goste de
proclamar Maria sua mãe e sua padroeira. Relevo empolgante assume, todavia,
esta verdade quando se evoca a história da França. O culto da Mãe de Deus
remonta às origens da sua evangelização, e, entre os mais antigos santuários
marianos, Chartres ainda atrai os peregrinos em grande número, e milhares de
jovens. A Idade Média, que, notadamente com s. Bernardo, cantou a glória de
Maria e lhe celebrou os mistérios, viu a admirável eflorescência das vossas
catedrais dedicadas a Nossa Senhora: Le Puy, Reims, Amiens, Paris e tantas
outras... Essa glória da Imaculada anunciam-na elas de longe pelas suas flechas
esbeltas, fazem-na resplandecer na pura luz dos seus vitrais e na harmoniosa
beleza das suas estátuas; atestam elas sobretudo a fé de um povo a se alçar
acima de si mesmo num surto magnífico, para erguer no céu da França a homenagem
permanente da sua piedade mariana.
Os vários títulos de nossa
Senhora
3. Nas cidades e nos
campos, no topo das colinas ou dominando o mar, os santuários consagrados a
Maria humildes capelas ou esplêndidas basílicas cobriram pouco a pouco o país
com a sua sombra tutelar. Neles, príncipes, pastores e fiéis inúmeros afluíram,
ao longo dos séculos, para a Virgem santa, a quem saudaram com os títulos mais
expressivos da sua confiança ou da sua gratidão. Aqui se invoca nossa Senhora
da misericórdia, de todo auxílio ou do bom socorro; ali o peregrino refugia-se
ao pé de nossa Senhora da guarda, da piedade ou da consolação; alhures, a sua
prece sobe para nossa Senhora da luz, da paz, da alegria ou da esperança; ou,
ainda, implora ele nossa Senhora das virtudes, dos milagres ou das vitórias.
Admirável ladainha de invocações, cuja enumeração jamais acabada narra, de província
em província, os benefícios que a Mãe de Deus tem derramado, no correr dos
tempos, sobre a terra da França.
Nossa
Senhora das Graças e nossa Senhora de Lourdes
4. Devia, no entanto, o
século XIX, após a tormenta revolucionária, ser por muitos títulos o século das
predileções marianas. Para só citarmos um fato, quem é que não conhece hoje em
dia a "medalha milagrosa"? Revelada, no próprio coração da capital
francesa, a uma humilde filha de s. Vicente de Paulo que tivemos a alegria de
inscrever no catálogo dos santos, essa medalha cunhada com a efígie de
"Maria concebida sem pecado" espalhou por todos os lugares os seus
prodígios espirituais e materiais. E, alguns anos mais tarde, de 11 de
fevereiro a 16 de Julho de 1858, à bem-aventurada virgem Maria aprazia, por um
favor novo, manifestar-se na terra dos Pirineus a uma menina piedosa e pura,
saída de uma família cristã, trabalhadora na sua pobreza. "Ela vem a
Bernardete, dizíamos nós outrora, fá-la a sua confidente, a colaboradora, o
instrumento da sua ternura maternal e da misericordiosa onipotência de seu
Filho, para restaurar o mundo em Cristo por uma nova e incomparável efusão da
redenção". 2
Lourdes
5. Os acontecimentos que
então se desenrolaram em Lourdes, e cujas proporções espirituais melhor medimos
hoje, são-vos bem conhecidos. Sabeis, caros filhos e veneráveis irmãos, em que
condições estupendas, apesar de zombarias, de dúvidas e de oposições, a voz
daquela menina, mensageira da Imaculada, se impôs ao mundo. Sabeis a firmeza e
a pureza do testemunho, experimentado com sabedoria pela autoridade episcopal e
por ela sancionado desde 1862. Já as multidões haviam acorrido e não têm
cessado de precipitar-se para a gruta das aparições, para a fonte milagrosa,
para o santuário elevado a pedido de Maria. É o comovente cortejo dos humildes,
dos doentes e dos aflitos; é a imponente peregrinação de milhares de fiéis de
uma diocese ou de uma nação; é a discreta diligência de uma alma inquieta que
busca a verdade... Dizíamos nós: "Jamais num lugar da terra se viu semelhante
cortejo de sofrimento, jamais semelhante irradiação de paz, de serenidade e de
alegria!" 3 E, poderíamos acrescentar, jamais se saberá a soma
de benefícios de que o mundo é devedor à Virgem auxiliadora! "Ó gruta
feliz, honrada pela presença da Mãe de Deus! Rocha digna de veneração, da qual
brotaram abundantes as águas vivificadoras!" 4
Lourdes e a Santa Sé
6. Estes cem anos de culto
mariano teceram, ademais, entre a Sé de Pedro e o santuário pirenaico laços
estreitos, que nos apraz reconhecer. A própria virgem Maria não desejou essas
aproximações? "O que em Roma, pelo seu magistério infalível, o sumo
pontífice definia, a Virgem Imaculada Mãe de Deus, a bendita entre as mulheres,
quis, ao que parece, confïrmá-lo por sua boca, quando pouco depois se manifestou
por uma célebre aparição na gruta de Massabielle". 5 Certamente,
a palavra infalível do pontífice romano, intérprete autêntico da verdade
revelada, não necessitava de nenhuma confirmação celeste para se impor à fé dos
fiéis. Mas com que emoção e com que gratidão o povo cristão e seus pastores não
recolheram dos lábios de Bernardete essa resposta vinda do céu: "Eu sou a
Imaculada Conceição"!
7. Por isso, não é de
admirar que os nossos predecessores se hajam comprazido em multiplicar os seus
favores para com esse santuário. Desde 1860, Pio IX, de santa memória,
regozijava-se de que os obstáculos suscitados contra Lourdes pela malícia dos
homens houvessem permitido "manifestar com mais força e mais evidência a
clareza do fato". 6 E, forte dessa segurança, ele cumula de
benefícios espirituais a Igreja recém-educada, e faz coroar a estátua de nossa
Senhora de Lourdes. Leão XIII, em 1892, concede o oficio próprio e a missa da
festa "in apparitione Beatae Mariae Virginis Immaculatae", coisa que
o seu sucessor estenderá em breve à Igreja universal; o antigo apelo da
Escritura aí achará, de então por diante, aplicação nova: "Levanta minha
amada, formosa minha, vem a mim! Pomba minha, que se aninha nos vãos do
rochedo, pela fenda dos barrancos!" 7 Pelo fim da sua vida, o
grande pontífice fez questão de inaugurar e de benzer pessoalmente a reprodução
da gruta de Massabielle edificada nos jardins do Vaticano, e, na mesma época, a
sua voz se elevava para a Virgem de Lourdes por uma prece ardente e confiante:
"Que, no seu poder, a Virgem Mãe, que outrora cooperou por seu amor no
nascimento dos fiéis na Igreja, seja ainda agora o instrumento e a guardiã da
nossa salvação; ... restitua a tranquilidade da paz aos espíritos angustiados;
apresse enfim, na vida privada como na vida pública, o retorno a Jesus
Cristo". 8
8. O cinquentenário da
definição dogmática da imaculada conceição da santíssima Virgem ofereceu a s.
Pio X o ensejo de atestar num documento solene o liame histórico entre esse ato
do magistério e a aparição de Lourdes: "Apenas Pio IX definira de fé
católica que desde a origem Maria foi isenta de pecado, a própria Virgem
começava a operar maravilhas em Lourdes". 9 Pouco depois, cria
ele o título episcopal de Lourdes, ligado ao de Tarbes, e assina a introdução
da causa de beatificação de Bernardete. Reservado estava sobretudo a esse
grande papa da eucaristia frisar e favorecer a admirável conjunção que existe
em Lourdes entre o culto eucarístico e a oração marial. Nota ele: "A
piedade para com a Mãe de Deus ali fez florescer uma notável e ardente piedade
para com Cristo nosso Senhor". 10 Podia, aliás, ser
diversamente? Tudo em Maria nos leva para seu Filho, único salvador, na
previsão de cujos méritos ela foi imaculada e cheia de graças; tudo em Maria
nos eleva ao louvor da adorável Trindade, e bem-aventurada foi Bernardete
desfiando o seu terço diante da gruta, e dos lábios e do olhar da Virgem Santa
aprendendo a dar glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo! Por isso somos
felizes, neste centenário, de associar-nos a essa homenagem prestada por s. Pio
X: "A glória única do santuário de Lourdes reside no fato de nele serem os
povos atraídos de toda parte, por Maria, à adoração de Cristo Jesus no augusto
sacramento; de sorte que aquele santuário, ao mesmo tempo centro de culto
mariano e trono do mistério eucarístico, excede em glória, ao que parece, todos
os outros no orbe católico". 11
9. Aquele santuário já
cumulado de favores, Bento XV fez questão de enriquecê-lo de novas e preciosas
indulgências, e, se as trágicas circunstâncias do seu pontificado não lhe
permitiram multiplicar os atos públicos da sua devoção, todavia ele quis honrar
a cidade mariana concedendo ao seu bispo o privilégio do pálio no lugar das
aparições. Pio XI, que fora pessoalmente peregrino de Lourdes, prosseguiu a
obra dele, e teve a alegria de elevar aos altares a privilegiada da Virgem,
tornada, sob o véu, Irmã Maria Bernarda, da Congregação da caridade e da
instrução cristã. Por assim dizer, não autenticava ele por sua vez a promessa
da Imaculada à jovem Bernardete, "de ser feliz não neste mundo, mas no
outro"? E de então por diante Nevers, que se honra de guardar a urna
preciosa, atrai em grande número os peregrinos de Lourdes, desejosos de
aprender junto à santa a acolherem como convém a mensagem de nossa Senhora. Em
breve o ilustre pontífice, que a exemplo dos seus predecessores acabava de
honrar com uma Legação as festas de aniversário das aparições, decidia encerrar
o jubileu da redenção na gruta de Massabielle, lá onde, segundo os seus
próprios termos, "a Virgem Maria Imaculada várias vezes se mostrou à
bem-aventurada Bernardete Soubirous, onde com bondade exortou todos os homens à
penitência, naquele lugar mesmo da estupenda aparição que ela cumulou de graças
e prodígios". 12 Em verdade, concluía Pio XI, aquele santuário
"passa agora, a justo título, por ser um dos principais santuários
marianos do mundo". 13
10. A esse unânime
concerto de louvores como não haveríamos nós de unir a nossa voz? Fizemo-lo
especialmente na nossa encíclica Fulgens corona, relembrando, em seguimento aos
nossos predecessores, que, "ao que parece, a própria bem-aventurada virgem
Maria quis confirmar por um prodígio a sentença que o vigário de seu divino
Filho na terra acabava de proclamar com os aplausos da Igreja inteira". 14
E, naquela ocasião, lembrávamos como, cônscios da importância daquela
peregrinação, os pontífices romanos não haviam cessado de "enriquecê-la de
favores espirituais e dos benefícios da sua benevolência". 15 A
história destes cem anos, que acabamos de evocar a grandes traços, não é, com
efeito, uma constante ilustração dessa benevolência pontifícia, cujo último ato
foi o encerramento, em Lourdes, do ano centenário do dogma da imaculada
conceição? Mas a vós, caros filhos e veneráveis irmãos, gostamos de lembrar
especialmente um documento recente, pelo qual favorecíamos o surto de um apostolado
missionário na vossa cara Pátria. Nele quisemos evocar "os méritos
singulares que, no correr dos séculos, a França adquiriu para si no progresso
da fé católica", e, a este título, "volvíamos a nossa mente e o nosso
coração para Lourdes, onde, quatro anos após a definição do dogma, a própria
Virgem imaculada confirmou sobrenaturalmente, por aparições, conversas e
milagres, a declaração do doutor supremo". 16
11. Ainda hoje nos
volvemos para o célebre santuário que se prepara para acolher nas margens do
Gave a multidão dos peregrinos do centenário. Se, desde há um século, ardentes
súplicas, públicas e privadas, pela intercessão de Maria, ali têm obtido de
Deus tantas graças de cura e de conversão, temos a firme confiança de que neste
ano jubilar nossa Senhora quererá ainda com largueza corresponder à expectativa
de seus filhos; mas temos sobretudo a convicção de que ela nos exorte a
recolhermos as lições espirituais das aparições e a enveredarmos pela trilha
que ela tão claramente nos traçou.
II. AS LIÇÕES ESPIRITUAIS DAS APARIÇÕES
12. Essas lições, eco fiel
da mensagem evangélica, fazem ressaltar de maneira impressionante o contraste
que opõe os juízos de Deus à vã sabedoria deste mundo. Numa sociedade que não
tem lá muita consciência dos males que a corroem, numa sociedade que vela as
suas misérias e as suas injustiças sob aparências prósperas, brilhantes e
descuidosas, a Virgem imaculada, por quem o pecado jamais roçara, manifesta-se
à uma menina inocente. Com compaixão maternal percorre com o olhar este mundo
redimido pelo sangue de seu Filho, onde, infelizmente, o pecado faz cada dia
tantas devastações, e por três vezes lança o seu apelo premente:
"Penitência, penitência, penitência!" Gestos expressivos são, mesmo,
pedidos: "Ide beijar a terra em penitência pelos pecadores". E ao
gesto há que juntar a súplica: "Rogareis a Deus pelos pecadores". Tal
como no tempo de João Batista, tal como no início do ministério de Jesus, a
mesma injunção, forte e rigorosa, dita aos homens a trilha da volta a Deus:
"Arrependei-vos" (Mt 3, 2; 4, 17). E quem ousaria dizer que esse
apelo à conversão do coração perdeu, nos nossos dias, a sua actualidade?
13. Mas poderia a Mãe de
Deus vir a seus filhos senão como mensageira de perdão e de esperança? Já a
água lhe jorra aos pés: "Ó vós todos que tendes sede, vinde às águas e
recebereis do Senhor a salvação". 17 Àquela fonte onde, dócil,
Bernardete foi a primeira a ir beber e lavar-se, afluirão todas as misérias da
alma e do corpo. "Lá fui, lavei-me e vi" (Jo 9,11), poderá responder,
como o cego do evangelho, o peregrino agradecido. Mas, tal como para as turbas
que se comprimiam em volta de Jesus, a cura das chagas físicas ali fica sendo,
ao mesmo tempo que um gesto de misericórdia, o sinal do poder que o Filho do
Homem tem de perdoar os pecados (cf. Mc 2,10). Junto a gruta bendita, a Virgem
nos convida, em nome de seu divino Filho, à conversão do coração e à esperança
do perdão. Escutá-la-emos?
Enveredar pela trilha que
nossa Senhora nos traçou
14. Nessa humilde resposta
do homem que se reconhece pecador reside a verdadeira grandeza deste ano
jubilar. Que benefícios não estaríamos no direito de esperar para a Igreja se
cada peregrino de Lourdes - e mesmo todo cristão unido de coração às
celebrações do centenário - realizasse primeiramente em si mesmo essa obra de
santificação, "não em palavras e de língua, mas em atos e em verdade"
(1 Jo 3, 18)? Tudo, aliás, a isso ali o convida, pois em parte alguma, talvez,
tanto quanto em Lourdes, a gente se sente levado ao mesmo tempo à oração, ao
esquecimento de si e à caridade. A vermos a dedicação dos padioleiros e a paz
serena dos doentes; a verificarmos a fraternidade que congrega numa mesma
invocação fiéis de todas as origens; a observarmos a espontaneidade do auxílio
mútuo e o fervor, sem afetação, dos peregrinos ajoelhados diante da gruta, os
melhores são empolgados pelo atractivo de uma vida mais totalmente dada ao
serviço de Deus e de seus irmãos; os menos fervorosos tomam consciência da sua
tibieza e reencontram o caminho da oração; não raras vezes os pecadores mais
empedernidos e os próprios incrédulos são tocados pela graça, ou, ao menos, se
são leais, não ficam insensíveis ao testemunho daquela "multidão de
crentes que têm um só coração e uma só alma" (At 4, 32).
15. Geralmente,
entretanto, essa experiência de alguns breves dias de peregrinação não basta,
por si só, para gravar em caracteres indeléveis o apelo de Maria a uma
autêntica conversão espiritual. Por isso exortamos os pastores das dioceses e
todos os sacerdotes a rivalizarem em zelo para que as peregrinações do
centenário se beneficiem de uma preparação, de uma realização e sobretudo de
amanhãs, tanto quanto possível propícios, a uma ação profunda e duradoura da
graça. O retorno a uma prática assídua dos sacramentos, o respeito da moral
cristã em toda a vida, o ingresso, enfim, nas fileiras da Ação católica e das
diversas obras recomendadas pela Igreja: só nestas condições - não é verdade? -
o importante movimento de multidões previsto em Lourdes para o ano de 1958
dará, segundo a própria expectativa da Virgem imaculada, os frutos de salvação
tão necessários à humanidade presente.
16. Por mais primordial,
porém, que ela seja, a conversão individual do peregrino não poderia, aqui,
bastar. Neste ano jubilar, exortamo-vos, caros filhos e veneráveis irmãos, a
suscitardes entre os fiéis confiados aos vossos cuidados um esforço coletivo de
renovação cristã da sociedade, em resposta ao apelo de Maria: "Que os
espíritos obcecados... sejam iluminados pela luz da verdade e da justiça",
já pedia Pio XI por ocasião das festas marianas do jubileu da redenção;
"que os que se transviam no erro sejam reconduzidos ao reto caminho, que
uma justa liberdade seja em toda parte concedida à Igreja, e que uma era de
concórdia e de verdadeira prosperidade se levante sobre todos os povos" 18.
17. Ora, o mundo, que
tantos e tão justos motivos de ufania e de esperança oferece nos nossos dias,
conhece também uma terrível tentação de materialismo, muitas vezes denunciada
pelos nossos predecessores e por nós mesmos. Esse materialismo não está somente
na filosofia condenada que preside à política e à economia de uma porção da
humanidade; manifesta-se também no amor do dinheiro, cujas devastações se
amplificam à medida dos empreendimentos modernos, e que, infelizmente, comanda
tantas determinações que pesam sobre a vida dos povos; traduz-se pelo culto do
corpo, pela procura excessiva do conforto e pela fuga de toda austeridade de
vida; induz ao desprezo da vida humana, daquela, mesmo, que é destruída antes
de ver a luz; está na demanda desenfreada do prazer, que se ostenta sem pudor e
que mesmo, pelas leituras e pelos espetáculos, tenta seduzir almas ainda puras;
está na indiferença para com seu irmão, no egoísmo que o esmaga, na injustiça
que o priva dos seus direitos, numa palavra, nessa concepção da vida que regula
tudo em vista somente da prosperidade material e das satisfações terrenas.
"Minha alma, dizia um rico, tens quantidade de bens em reserva por longo
tempo; repousa, come, bebe, leva vida regalada. Mas Deus lhe diz: Insensato, esta
noite mesmo vão pedir-te a tua alma" (Lc 12, 19-20).
18. A uma sociedade que,
na sua vida pública, não raras vezes contesta os direitos supremos de Deus, que
quereria ganhar o universo ao preço de sua alma (cf. Mc 8, 36), e que assim
correria à sua perdição, a Virgem maternal lançou como que um brado de alarme.
Atentos ao seu apelo, ousem os sacerdotes a pregar a todos, sem temor, as
grandes verdades da salvação. Com efeito, não há renovação durável senão
fundada nos princípios infrangíveis da fé, e pertence aos sacerdotes formar a
consciência do povo cristão. Assim como, compassiva para com as nossas
misérias, mas clarividente sobre as nossas verdadeiras necessidades, a
Imaculada vem aos homens para lhes lembrar as diligências essenciais e austeras
da conversão religiosa, devem os ministros de Deus, com sobrenatural segurança,
traçar às almas a estrada estreita que conduz à vida (cf. Mt 7, 14). Fá-lo-ão
sem esquecer de que espírito de doçura e de paciência necessitam (cf. Lc 9,
55), mas sem nada quererem apelar das exigências evangélicas. Na escola de
Maria aprenderão a só viver para dar Cristo ao mundo, mas, se também preciso,
aprenderão a esperar com fé a hora de Jesus e a permanecer ao pé da cruz.
18. Em torno aos seus
sacerdotes, devem os fiéis colaborar nesse esforço de renovação. Lá onde a
Providência o colocou, quem é que não pode fazer algo mais pela causa de Deus?
O nosso pensamento volve-se primeiro para a multidão das almas consagradas,
que, na Igreja, se dedicam a inúmeras obras de bem. Os seus votos de religião
aplicam-nas mais do que outras a lutar vitoriosamente, sob a égide de Maria,
contra o desencadear, no mundo, dos apetites imoderados de independência, de
riqueza e de gozo; por isso, ante o apelo da Imaculada, ao assalto do mal
quererão elas opor-se pelas armas da oração e da penitência e pelas vitórias da
caridade. O nosso pensamento volve-se igualmente para as famílias cristãs, para
conjurá-las a permanecerem fiéis à sua insubstituível missão na sociedade.
Consagrem-se elas, neste ano jubilar, ao coração imaculado de Maria! Este ato
de piedade será para os esposos um auxílio espiritual precioso na prática dos
deveres da castidade e da fidelidade conjugais; conservará na sua pureza o
ambiente do lar, onde crescem os filhos; bem mais, da família vivificada pela
sua devoção mariana, fará uma célula viva da regeneração social e da penetração
apostólica. E certamente, para além do círculo familiar, as relações
profissionais e cívicas oferecem aos cristãos cuidadosos de trabalhar na renovação
da sociedade um campo de ação considerável. Congregados aos pés da Virgem,
dóceis às suas exortações, eles lançarão primeiro sobre si mesmos um olhar
exigente, e quererão extirpar da sua consciência os juízos falsos e as reações
egoístas, temendo a mentira de um amor de Deus que não se traduza em amor
efetivo de seus irmãos (cf.1 Jo 4, 20). Cristãos de todas as classes e de todas
as nações, procurarão encontrar-se na verdade e na caridade, banir as
incompreensões e as suspeitas. Sem dúvida, enorme é o peso das estruturas
sociais e das pressões econômicas que se faz sentir sobre a boa vontade dos
homens e que não raro a paralisa. Mas, se, como nossos predecessores e nós
mesmo com insistência o frisamos, é verdade que a questão da paz social e
política é, no homem, primeiramente uma questão moral, reforma nenhuma é
frutuosa, acordo algum é estável, sem uma mudança e uma purificação dos
corações. Lembra-o a todos a Virgem de Lourdes neste ano jubilar!
20. E se, na sua
solicitude, Maria se curva com alguma predileção sobre alguns de seus filhos,
não é, caros filhos e veneráveis irmãos, sobre os pequenos, sobre os pobres e
sobre os doentes, os quais Jesus tanto amou? "Vinde a mim vós todos que
estais cansados e onerados, e eu vos aliviarei", parece ela dizer com seu
divino Filho (Mt 11, 28). Ide a ela, vós a quem a miséria material esmaga, vós
sem defesa ante os rigores da vida e a indiferença dos homens; ide a ela, vós a
quem ferem os lutos e as provações morais; ide a ela, caros doentes e enfermos,
que em Lourdes sois verdadeiramente recebidos e honrados como membros
padecentes de nosso Senhor; ide a ela, e recebei a paz do coração, a força do
dever cotidiano, a alegria do sacrifício oferecido. A Virgem imaculada, que
conhece os encaminhamentos secretos da graça nas almas e o trabalho silencioso
desse fermento sobrenatural do mundo, sabe de que valor são aos olhos de Deus
os vossos sofrimentos unidos aos do Salvador. Podem eles grandemente concorrer,
disso não duvidamos, para essa renovação cristã da sociedade que de Deus
imploramos pela poderosa intercessão de sua Mãe. Que, a rogo dos doentes, dos
humildes, de todos os peregrinos de Lourdes, Maria volva igualmente o seu olhar
materno para aqueles que ainda permanecem fora do redil único da Igreja, para
os congregar na unidade! Lance o seu olhar sobre aqueles que buscam a verdade e
dela têm sede, para os conduzir à fonte das águas vivas! Percorra, enfim, com o
olhar esses continentes imensos e essas vastas zonas humanas onde,
infelizmente, Cristo é tão pouco conhecido, tão pouco amado, e obtenha para a
Igreja a liberdade e a alegria de, em todos os lugares, sempre jovem, santa e
apostólica, corresponder à expectativa dos homens!
21. Querereis ter a
bondade de vir...", dizia a ss. Virgem a Bernardete. Esse convite discreto
que não força, que se dirige ao coração e solicita com delicadeza uma resposta
livre e generosa, propõe-no de novo a Mãe de Deus aos seus filhos da França e
do mundo. Sem se impor, ela os preme a reformar-se a si próprios e a trabalhar
com todas as suas forças na salvação do mundo. Não hão de os cristãos ficar
surdos a esse apelo; irão a Maria. E é a cada um deles que, no termo desta
carta, quiséramos dizer com s. Bernardo: "Nos perigos, nas angústias, nas
incertezas, pensa em Maria. ... Seguindo-a não te perderás; rezando para ela
não desesperarás; pensando nela não te enganarás. Se ela te segurar não cairás;
se ela te proteger não temerás; se ela te guiar, não te cansarás; se ela te
conceder os seus favores, chegarás ao teu fim...". 19
22. Temos confiança, caros
filhos e veneráveis irmãos, de que Maria atenderá à vossa oração e à nossa.
Pedimos-lho nesta festa da Visitação, bem própria para celebrar aquela que, há
um século, dignou-se de visitar a terra da França. E, convidando-vos a cantar a
Deus, com a Virgem imaculada, o "Magnificat" da vossa gratidão, chamamos
sobre vós mesmos e sobre os vossos féis, sobre o santuário de Lourdes e sobre
os seus peregrinos, sobre todos aqueles que arcam com a responsabilidade das
festas do centenário, a mais larga efusão de graças, em penhor das quais, na
nossa constante e paternal benevolência, vos concedemos de todo coração a
bênção apostólica.
Dado
em Roma, junto a São Pedro, na festa da Visitação da Santíssima Virgem, no dia
2 de Julho do ano de 1957, XIX do nosso pontificado.
PIO
PP. XII
_________________________________________
Notas:
1 Carta de 12 de julho de 1914: AAS
6(1914), p. 376.
2 Discurso de 28 de abril de 1935 em
Lourdes: Eug. Card. Pacelli, Discursos e Panegíricos, 2° ed., Vaticano,1956, p.
435.
3 Ibidem, p. 437.
4 Ofício da festa das Aparições, Hino
das II Vésperas.
5 Decreto De Tuto para a canonização
de santa Bernardete, 2 de julho de 1933: AAS 25(1933), p. 377.
6 Carta de 4 de setembro de 1869 a
Henri Lasserre: Arquivo secreto vaticana, Ep. lat. an.1869, n. 388, f. 695.
7 Ct 2, 13-14. Gradual da Missa da
festa das Aparições.
8 Breve de 8 de setembro de 1901: Acta
Leonis XIII, vol. 21, pp.159-160.
9 Carta encíclica Ad diem illum, de 2
de fevereiro de 1904: Acta Pii X, vol. 1, p.149.
10 Carta de 12 de julho de 1914: AAS
6(1914), p. 377.
11 Breve de 25 de abril de 1911: Arch.
Brev. Ap., Pius X, an.1911, Div. Lib. IX, pars I, f. 337.
12 Breve de 11 de janeiro de 1933:
Arch. Brev. Ap. Pius XI, Ind. Perpet, f.128.
13 Ibidem.
14 Carta encíclica Fulgens corona, de
8 de setembro de 1953: AAS 45(1953), p. 578.
15 Ibidem.
16 Constituição apost. Omnium
Ecclesiarum, de 15 de agosto de 1954: AAS 46,1954, p. 567.
17 Ofício da festa das Aparições. 1°
Responso do III Noct.
18 Carta de 10 de janeiro de 1935; AAS
27, p. 7.
19 Hom. II super Missus est: PL 183,
70-71.
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