As memórias de quem viveu
o pontificado do “Papa Bom”
No dia 16 de Outubro de
1978, Joaquín Navarro-Valls, correspondente em Roma do diário espanhol “ABC”,
estava na Praça de São Pedro com outros vaticanistas. Viveu com emoção o
anúncio do primeiro Papa polaco da história. Mas naquele dia, o jornalista
espanhol (e médico psiquiatra de formação) estava longe de imaginar o que lhe
viria a acontecer.
De facto, a sua vida mudou
quando, alguns anos depois, em 1984, recebeu um telefonema: “Recordo-me muito
bem. Um dia, recebi uma chamada telefónica no meu escritório de uma pessoa que
me disse ‘você tem que vir almoçar com o Papa’. Naturalmente, para mim, foi uma
grande surpresa. Fui e encontrei-me, frente a frente, com este homem que me
queria ouvir sobre o que eu sabia, o que pensava e se tinha alguma ideia para
melhorar o modo de comunicar. Não tanto de comunicá-lo a ele, mas de comunicar
todos aqueles valores específicos da Igreja Católica e que a estrutura do
Vaticano devia comunicar melhor.”
Navarro-Valls foi para
casa pensar, até que, alguns dias mais tarde, chegou um novo telefonema:
“Quando, pouco tempo depois, recebi a segunda chamada telefónica e me disseram
‘o Papa nomeou-o director da sala de imprensa da Santa Sé’, pode imaginar a
minha inquietação e as dúvidas que eu tinha. Porque pensava que era uma enorme
responsabilidade se fizessem aquilo que eu queria fazer e como eu achava que o
Papa queria fazer. Por fim, aceitei, pensando que seria um encargo por um par
de anos, mas, afinal, foi um pouco mais longo, porque acabou só no dia em que
ele morreu, ou seja, mais de 20 anos depois.”
Navarro-Valls tem, por
isso, muita coisa para contar. São mais de 20 anos ao lado de um homem notável,
que introduziu grandes novidades no modo de ser Papa. O porta-voz de João Paulo
II considera mesmo que aquele pontificado foi revolucionário, porque permitiu
relacionar a Igreja com a modernidade.
“Penso, na verdade, que o
pontificado de João Paulo II foi o primeiro pontificado da história da Igreja
que entrou plenamente, com enorme audácia e vivacidade naquele conjunto de
teorias e filosofias a que chamamos a modernidade. Ou seja, introduziu o
pontificado na modernidade histórica. Por isso, em tantos momentos, o seu
pontificado parecia revolucionário, que era uma coisa completamente nova; e é
verdade! Ele estava-o realmente actualizando, no sentido histórico da
expressão: o conteúdo daquilo que ele dizia que não mudava, mas o modo como o
exprimia e o exemplo da sua própria vida era totalmente novo na história da
Igreja”, considera
João Paulo II, com as suas
viagens pastorais, deu, por várias vezes, a volta ao mundo. Fez 104 viagens fora
de Itália e com visitas muito variadas. Houve de tudo um pouco: desde a Polónia
e Cuba, com forte pendor político, a Manila e a Jornadas Mundiais da Juventude
com milhões de fiéis, mas não esqueceu pequenas comunidades, como as do Pólo
Norte ou Azerbaijão.
“Recordo muito bem aquela
viagem ao Azerbaijão, que muita gente na Cúria o desaconselhou a fazer, mas ele
quis fazê-la. Como sabe, no Azerbaijão, na altura em que o Papa lá foi, em todo
aquele imenso país, havia 122 católicos. Somente 122 católicos. E, mesmo assim,
o Papa quis lá ir para se encontrar com esta pequena comunidade católica, não
obstante ter sido três anos antes da sua morte e o Papa já ser idoso, doente e
ter dificuldades em andar", diz o antigo jornalista.
“Recordo um pequeno
episódio simpático: quando chegámos ao aeroporto de Azerbaijão, aproximei-me
dele e disse ‘Santo Padre, parabéns’. E ele disse-me ‘parabéns, porquê? Você,
normalmente, dá-me os parabéns no final de uma viagem e não no início’. E eu respondi
‘parabéns porque, agora, consigo aqui, o número dos católicos subiu para 123’.
Ele fartou-se de rir com isto.”
O episódio é revelador da
intensidade com que João Paulo II cumpria a sua missão de pastor universal, uma
vez que o seu critério não dependia da quantidade de fiéis: “O critério era
sempre o mesmo: cada pessoa em particular. Ou seja, quer fossem 120, como no
Azerbaijão, ou milhões, noutro país qualquer, ele ia sempre. Penso que esta sua
característica de, perante uma grande multidão, não olhar para a multidão como
tal, mas para cada uma daquelas pessoas em particular, é aquilo que explica a
experiência de muita gente que ainda hoje diz: ‘eu senti que ele estava mesmo a
olhar para mim, para mim concretamente, e não para aquela enorme massa de duas
ou três milhões de pessoas’. Isto é porque o seu critério era o valor humano e
espiritual de cada pessoa”.
Óptimo sentido de humor
E, no dia-a-dia, como era
trabalhar com João Paulo II? “Era estupendo. Porque uma característica do seu
carácter era o óptimo sentido de humor que ele tinha. Humanamente falando, era
uma pessoa muito simpática. Por isso, trabalhar com ele era uma delícia, mesmo
quando havia problemas sérios da Igreja universal ou de um país, mesmo assim,
havia sempre espaço para o bom humor quando se trabalhava com ele.”
O facto de João Paulo II
ter sido um comunicador nato ajudava, claro: “Naturalmente. Ele era um grande
comunicador, mas a expressão ‘João Paulo II grande comunicador’, que é
verdadeira, pode levar ao engano, porque, normalmente, quando se diz que uma
pessoa é boa comunicadora, falamos de uma pessoa que tem uma boa voz, que tem
um estilo de comunicar eficaz. Mas eu penso que a sua virtude como comunicador
não estava principalmente no seu modo de comunicar, mas no conteúdo daquilo que
comunicava. Eram aquelas verdades que ele comunicava que convenciam as pessoas
e que faziam dele uma pessoa muito ouvida e muito seguida em todo o mundo.”
Tanto que, no fim do
pontificado, mesmo sem conseguir falar, o Papa continuava a comunicar: “Do meu
ponto de vista, nos últimos anos da sua vida estava a escrever a encíclica mais
bela do seu pontificado, ou seja, uma encíclica ainda mais bela porque não a
escrevia com palavras, mas com a sua própria vida. E as pessoas viam isso, o
que não o afastava as pessoas mas aproxima-se delas ainda mais.”
Mas a forma como o Papa se
expôs no seu estado mais debilitado, não agradou a todos e mereceu críticas
inclusivamente de dentro da Igreja: “Isso são os teóricos, não as pessoas que
vivem a vida mas os teóricos da existência! Sabe que a experiência humana mais
universal, aquela experiência que, mais tarde ou mais cedo, conhecemos ou
havemos de conhecer é o sofrimento. E desta experiência humana tão universal
ele estava a dar o sentido que também a dor, os limites físicos, o não
conseguir andar ou até mesmo no fim não poder falar, tudo tinha um sentido,
nada daquilo era absurdo, mas tinha um grande sentido. E isso era a grande
mensagem que Deus lhe tinha confiado para os seus últimos anos de vida.”
Ski às escondidas
Ao longo de quase 27 anos
de pontificado, muitas foram as peripécias, quebras de protocolo, episódios
divertidos, até então, pouco habituais na vida de um Papa. Navarro-Valls teve o
privilégio de os testemunhar na primeira pessoa: “Agora penso que se pode
contar tudo, já passaram tantos anos. Havia dias em que ele precisava, pela
enorme quantidade de trabalho e pelo cansaço, tirar um dia da semana em que não
havia audiências nem compromissos. Então, na véspera à noite, escolhíamos um
carro não blindado, nem com a matrícula do Vaticano e saíamos por uma porta
lateral do Vaticano em direcção à montanha. Pode imaginar às 18h, num dia de
trabalho, como é o trânsito romano em hora de ponta? Aquele carro parava em
todos os semáforos vermelhos da cidade e eu, que ia sentado ao lado do
condutor, dizia: ‘De certeza que nos descobrem!’. E no entanto ninguém nos
descobriu”.
Ainda por cima, explica o
antigo director da sala de imprensa, o Papa pouco fazia para se disfarçar: “Ia
vestido de branco com uma capa negra por cima, que era a capa que ele
conservava desde que era jovem padre na Polónia. E isso tapava-o um pouco.
Íamos para uma pequena cabana, relativamente próxima de Roma. Dormíamos lá e,
na manhã seguinte, depois das orações matinais e da missa, íamos para a
montanha fazer ski durante algumas horas. Como pode imaginar, eram ocasiões
magníficas para estar com ele, para o acompanhar, para rir muito com ele e,
depois, regressávamos tendo assim conseguido repousar um pouquinho. Agora, com
o passar dos anos, a única pena que tenho é a de não ter feito isto mais vezes
com ele.”
O fascínio de João Paulo
II passava também pela sua normalidade. Continuou a fazer ski e montanhismo
como na Polónia, mandou construir uma piscina para praticar desporto, convidava
amigos para tomar refeições com ele, no Vaticano: “Ele era completamente normal.
No processo de beatificação, que são cinco volumes enormes com os testemunhos
de todas as pessoas que foram chamadas a depor e a dizer algo sobre a sua vida,
há uma daquele presidente da Checoslováquia que era o Vaclav Havel, que já
morreu. Ele não era um cristão praticante, mas faz uma declaração muito
interessante, muito bonita. E diz no fim: ‘Eu não sou especialista em santidade
mas, se eu tiver que dizer como era a sua santidade, eu diria que ele era
humanamente santo’. É uma expressão quase ambígua e, no entanto, penso que ele
queria dizer que a santidade de João Paulo II era muito humana, era ver uma
pessoa, nas suas circunstâncias de cada dia, fazer tudo perfeitamente bem; não
fazer nada de extraordinário nem de estranho.”
Amigo de Portugal
É sabido que o Papa tinha
uma relação especial com Portugal, que começou no dia do atentado, a 13 de Maio
de 1981. Por causa disso, gostava de repetir que a sua vida tinha sido salva
por milagre de Nossa Senhora de Fátima. Foi nesse contexto que João Paulo II
visitou três vezes o santuário da Cova da Iria.
Mas a grande admiração por
Portugal não ficava por aí: “Ele via Portugal como um grande país com uma
grande história que ele conhecia perfeitamente porque tinha lido muito sobre
Portugal. Depois, havia a particularidade de Nossa Senhora de Fátima e a
certeza que ele tinha de que a Nossa Senhora de Fátima lhe tinha salvo a vida
num atentado que, segundo a lógica da medicina, devia tê-lo morto e, no
entanto, não aconteceu assim.”
“Por isso, das vezes em
que ele veio a Portugal, sentia-se em sua casa: antes de mais, como um filho
que vem agradecer a Nossa Senhora, à sua ‘mamã’, mas ao mesmo tempo a um país
com uma grande história que ele conhecia bem e que apreciava muito, quer os
lugares de Portugal, quer fora do âmbito geográfico do país: a sua presença em
África, no extremo Oriente, etc. Tudo isso estava bem presente nele.”
20 anos ao lado de um
santo
Uma vida ao lado de João
Paulo II, vivida ao longo mais de 20 anos, é uma experiência difícil de
definir? “Naturalmente uma experiência extraordinária, uma experiência fora do
comum; mas muitas vezes digo a mim mesmo que ter vivido ao lado de um santo não
foi só uma coisa bonita, foi também uma grande responsabilidade. É uma grande
responsabilidade porque não podes deixar que, tudo aquilo que viste, que
viveste e que ele comunicou, fique arrumado na tua vida. É um desafio
permanente a viver isto na própria vida.”
Um desafio de que tipo?
“Um desafio ético, um desafio moral, um desafio para se aproximar mais de Deus,
ou seja, penso que não podemos dizer de ninguém, nem de coisa nenhuma, que
‘isto é bom’, se esta afirmação não nos mudar por dentro; e deve mudar-nos por
dentro senão não acreditamos, de verdade, que isso era bom e isto, por maioria
de razão, pode-se dizer de João Paulo II: se acreditas a sério que ele era
santo, esta convicção deve-te mudar por dentro, no teu interior.”
É isto que, segundo
Navarro-Valls, explica a emoção que se sentiu quando João Paulo II morreu:
“Naturalmente. Dantes, na história da Igreja até há poucos séculos, os santos
eram proclamados por aclamação popular; era o povo que determinava quem era
santo. Nos últimos séculos, a Igreja exigiu um processo de beatificação e de
canonização. Mas, se a antiga tradição da Igreja ainda hoje vigorasse, João
Paulo II teria sido santo no dia a seguir à sua morte e não tantos anos
depois.”
Agora, Joaquín
Navarro-Valls, hoje com 77 anos, prepara-se para viver o grande momento da
canonização “Vivo, como direi, sem nenhuma surpresa porque eu já tinha a
certeza de que ele era santo. Às vezes, aqui em Itália, oiço dizer a algumas
pessoas que ‘a Igreja faz de João Paulo II santo’. Mas eu digo: ‘Não, a Igreja
não faz João Paulo II santo; a Igreja confirma e ratifica que a vida deste
homem quando era vivo, era a vida de um santo’. Porque, afinal de contas, ou um
santo o é enquanto é vivo, ou nunca o será. Por isso, não é que agora o faça um
santo, simplesmente confirma e ratifica que a vida desta pessoa - quando era
viva - era a vida de um santo. É com este espírito que estarei na Praça de São
Pedro”.
“E até já posso adiantar o
que decidi dizer nesse dia a João Paulo II na minha oração, durante a
canonização. Vou-lhe dizer: ‘Obrigado João Paulo II pela obra-prima que fizeste
da tua vida, com a ajuda de Deus. Mas fizeste-a com a tua vida!”. Penso que
será essa a minha oração nesse dia.
Joaquín Navarro-Valls foi
director da sala de imprensa da Santa Sé durante 20 anos, sempre ao lado de
João Paulo II. Duas décadas ao lado de um santo é uma experiência que deixa
muitas marcas.
(aura miguel, Pag. 1, 2014.04.22)
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.