Questão 87: Como a alma
intelectiva se conhece a si mesma e àquilo que nela existe.
Em seguida deve considerar-se como a alma intelectiva se conhece a si mesma e
àquilo que nela existe.
E,
sobre estes pontos, quatro artigos se discutem:
Art.
1 — Se a alma intelectiva se conhece a si mesma pela sua essência.
Art.
2 — Se o nosso intelecto conhece os hábitos da alma pela essência deles.
Art.
3 — Se o nosso intelecto conhece o acto próprio.
Art.
4 — Se o intelecto intelige o acto da vontade.
Art. 1 — Se a alma
intelectiva se conhece a si mesma pela sua essência.
(Supra, q. 14, a. 2, ad 3; II
Cont. Gent., cap. LXXV; III, cap. XLVI; De Verit., q. 8, a.
6; q. 10, a. 8; Qu. De Anima, a. 16, ad 8; II De Anima, lect. VI; III, lect.
IX).
O
primeiro discute-se assim. ― Parece que a alma intelectiva se conhece a si
mesma, pela sua essência.
1.
― Pois diz Agostinho, que a mente incorpórea conhece a si mesma por si mesma.
2.
Demais. ― O anjo e a alma humana convêm no género da substância intelectual
comum. Ora, o anjo se intelige a si mesmo, pela sua essência. Logo, também a
alma humana.
3.
Demais. ― No que não há matéria, o intelecto identifica-se com o que é
inteligido, como diz Aristóteles. Ora, a alma humana, não sendo acto de nenhum
corpo (q. 76, a. 1), não tem matéria. Logo, nessa alma, o intelecto
se identifica com o que é inteligido; e, portanto, ela se intelige pela sua
essência.
Mas,
em contrário, como diz Aristóteles, o intelecto intelige-se tanto a si mesmo
como às outras coisas. Ora, estas ele as intelige, não pela essência, mas pelas
semelhanças delas. Logo, também não se intelige a si, pela sua essência.
É cognoscível o que é actual e não o que é potencial, como diz Aristóteles;
assim, um ser conhecido é ente e verdadeiro, enquanto actual. O que
manifestamente se vê, nas coisas sensíveis; pois, a vista não percebe o
colorido potencial, mas só o actual. E, semelhantemente, é manifesto que o
intelecto, como cognoscitivo das coisas materiais, só conhece o que é actual;
donde vem que não conhece a matéria-prima, senão enquanto esta tem proporção
com a forma, como diz Aristóteles. Donde, as substâncias imateriais, na medida
em que são actualizadas pela própria essência, nessa mesma são inteligíveis por
essa essência.
Ora,
a essência de Deus; que é acto puro e perfeito, é, em si e perfeitamente, por
si mesma inteligível. Donde, Deus, pela sua essência, intelige, não só a si
mesmo, como a todas as causas. ― A essência do anjo, porém, pertence ao género
dos inteligíveis, como acto que é, mas não como acto puro e completo. Donde, o
inteligir angélico não é completo, pela essência do anjo; pois embora este se
intelija a si mesmo, pela sua essência, contudo não pode conhecer tudo, por
essa mesma essência; mas conhece as coisas diferentes de si pelas semelhanças
delas. ― Ao passo que o intelecto humano se comporta, no género das coisas
inteligíveis, somente como ser potencial, assim como a matéria-prima se
comporta no género das coisas sensíveis; e, por isso ele se chama possível.
Assim, pois, considerado na sua essência, comporta-se como potência
inteligente. Donde, tem, de si mesmo, virtude para inteligir, não, porém, para
ser inteligido, senão quando se actualiza. E assim, até os próprios Platónicos
admitiam a ordem dos entes inteligíveis como superior à dos intelectos; porque,
o intelecto não intelige senão pela participação do inteligível; ora, o que
participa é inferior ao que é participado, na opinião deles.
Se,
pois, o intelecto humano se actualizasse por participação das formas
inteligíveis separadas, como ensinavam os Platónicos, por uma tal participação
das coisas incorpóreas o intelecto humano se inteligiria a si mesmo. Ora, como
é conatural ao nosso intelecto, no estado da vida presente, referir-se às
coisas materiais e sensíveis, como se disse antes (q. 84, a. 7), é consequente
que ele se intelija a si mesmo, na medida em que é actualizado pelas espécies
abstraídas das coisas sensíveis, pela luz do intelecto agente, que é o acto dos
próprios inteligíveis e, mediante estes, acto do intelecto possível. Logo, não
é pela sua essência, mas pelo seu acto, que o nosso intelecto se conhece a si
mesmo. E isto, de dois modos. ― Particularmente, enquanto Sócrates ou Platão
percebe a si mesmo como tendo uma alma intelectiva, porque percebe o inteligir
próprio. ― De outro modo, universalmente, enquanto consideramos a natureza da
mente humana, pelo acto do intelecto.
É
verdade, porém, que o juízo e a eficácia deste conhecimento, pelo qual
conhecemos a natureza da alma, nos compete pela derivação da luz do nosso
intelecto, da verdade divina, na qual se contêm as razões de todas as coisas,
como antes se disse (q. 84, a. 5). Donde, Agostinho diz:
Contemplamos a verdade inviolável, pela qual, tão perfeitamente quanto podemos,
definimos, não qual seja a mente de cada homem, mas qual deva ser, pelas razões
sempiternas.
Ora,
há diferença entre estes dois conhecimentos. ― Pois, para se ter o primeiro
conhecimento da alma, basta a própria presença desta, que é o princípio do acto,
pelo qual a alma se percebe a si mesma. ― Mas, para ter da alma o segundo
conhecimento, não basta a presença da mesma, mas requer-se diligente e sutil
inquisição. Donde vem que muitos ignoram a natureza da alma, e muitos erraram
também sobre a natureza dela. Pelo que Agostinho diz, falando de tal inquisição
da alma: Que a alma não procure considerar-se como ausente, mas cure de se
discernir como presente, isto é, conhecer a sua diferença, das outras coisas, o
que é conhecer a sua quidade e natureza.
DONDE
A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ― A alma conhece-se a si mesma por si mesma,
porque, afinal, chega ao conhecimento de si mesma, embora por acto seu. Pois, é
ela mesma que é conhecida, porque se ama a si mesma, como no mesmo passo citado
se acrescenta. Uma coisa, porém, pode ser considerada como conhecida por si
mesma, de dois modos: porque lhe adquirimos o conhecimento sem ser pelo
intermédio de nenhuma outra e, assim, é que se consideram os primeiros
princípios conhecidos por si mesmos; ou porque não é cognoscível por acidente,
como a cor é visível por si e a substância, por acidente.
RESPOSTA
À SEGUNDA. ― A essência do anjo está, como acto, no género dos inteligíveis; e
portanto, se comporta como intelecto e como causa inteligida. Donde, o anjo
apreende a sua essência, por si mesmo. Não porém o intelecto humano, que, ou é
absolutamente potencial, em relação aos inteligíveis, como intelecto possível;
ou é o acto dos inteligíveis abstratos dos fantasmas, como intelecto agente.
RESPOSTA
À TERCEIRA. ― O passo citado do Filósofo é, universalmente, verdadeiro de todo
intelecto. Pois, assim como o sentido em acto é o sensível em acto, por causa
da semelhança do sensível, que é a forma do sentido em acto; assim o intelecto
em acto é a coisa inteligida em acto, por causa da semelhança da coisa
inteligida que é a forma do intelecto em acto. Donde, o intelecto humano, actualizado
pela espécie da coisa inteligida, é inteligido pela mesma espécie, como pela
sua forma. Pois, dizer que, nos seres que não têm matéria, o intelecto é
idêntico ao inteligido, é o mesmo que dizer que, nas coisas inteligidas em acto,
o intelecto é idêntico ao que é inteligido. Porquanto, o que é inteligido em acto
não tem matéria. Mas a diferença está em que as essências de certos seres não
têm matéria; assim, as substâncias separadas, a que chamamos anjos, das quais
cada uma tanto é inteligida como inteligente. Há porém certas coisas das quais
as essências não são sem matéria, mas só as semelhanças abstratas delas. Donde
diz o Comentador, que a proposição induzida só é verdadeira das substâncias
separadas; verifica-se de certo modo, nelas, o que não se verifica em outros
seres, como já se disse.
Nota:
Revisão da tradução portuguesa por ama
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