Questão 85: Do modo e
da ordem de inteligir.
Em seguida deve
considerar-se o modo e a ordem de inteligir. E, sobre este ponto, oito artigos
se discutem:
Art.
1 — Se o nosso intelecto intelige as coisas corpóreas e materiais por abstracção
dos fantasmas.
Art.
2 — Se as espécies inteligíveis, abstraídas dos fantasmas, são o objecto que o
nosso intelecto intelige.
Art.
3 — Se o que é mais universal tem prioridade em o nosso conhecimento
intelectual.
Art.
4 — Se podemos inteligir muitas coisas simultaneamente.
Art.
5 — Se o nosso intelecto intelige compondo e dividindo.
Art.
6 — Se o intelecto pode ser falso.
Art.
7 — Se um pode inteligir melhor que outro uma mesma coisa.
Art.
8 — Se o intelecto intelige o indivisível antes do divisível.
Art. 1 — Se o nosso intelecto intelige
as coisas corpóreas e materiais por abstracção dos fantasmas.
(Supra,
q. 12, a. 4; II Cont. Gent., cap. LXXVII; II Metaphys., lect. 1).
O
primeiro discute-se assim. ― Parece que o nosso intelecto não intelige as
coisas corpóreas e materiais, por abstracção dos fantasmas.
1.
― Pois, o intelecto que intelige uma coisa diferentemente do que ela é, é
falso. Ora, as formas das coisas materiais não são abstraídas das coisas
particulares, cujas semelhanças são os fantasmas. Se, portanto, inteligimos as
coisas materiais abstraindo as espécies, dos fantasmas, haverá falsidade em
nosso intelecto.
2.
Demais. ― As coisas materiais são as coisas naturais, em cuja definição entra a
matéria. Ora, nada pode ser inteligido sem aquilo que entra na sua definição.
Logo, as coisas materiais não podem ser inteligidas sem a matéria. Ora, esta é
o princípio de individuação. Donde, as coisas materiais não podem ser
inteligidas, abstraindo o universal do particular, como seria o abstrair as
espécies inteligíveis, dos fantasmas.
3.
Demais. ― Os fantasmas estão para a alma intelectiva, como as cores para a
vista. Ora, esta não se exerce abstraindo, das cores, certas espécies, mas pela
impressão das cores, na vista. Logo, também o inteligir não resulta da abstracção
de alguma coisa, dos fantasmas, mas da impressão destes no intelecto.
4.
Demais. ― Há, na alma intelectiva, o intelecto possível e o agente. Ora, é
próprio do intelecto possível, não abstrair, dos fantasmas, as espécies
inteligíveis, mas receber as espécies já abstraídas. E essa abstracção, dos
fantasmas, também não é própria ao intelecto agente, que está para eles como a
luz para as cores; pois esta não abstrai nada das cores, mas, antes, influi
nelas. Logo, de nenhum modo inteligimos, abstraindo dos fantasmas.
5.
Demais. ― O Filósofo diz que o intelecto intelige as espécies nos fantasmas.
Logo, não é abstraindo-as.
Mas,
em contrário, na medida em que as coisas são separáveis da matéria, nessa mesma
se relacionam com o intelecto. Logo, é necessário que as coisas materiais sejam
inteligidas enquanto abstraídas, tanto da matéria, como das semelhanças
materiais, que são os fantasmas.
Como já se disse antes (q. 84, a. 7), o objecto cognoscível se
proporciona à virtude cognoscitiva. Ora, há tríplice grau nesta virtude. ― Há
uma virtude cognoscitiva que é acto de órgão corpóreo, a saber, do sentido. Donde,
o objecto de qualquer potência sensitiva é a forma, enquanto existente na
matéria corpórea. E como tal matéria é o princípio da individuação,
forçosamente toda potência da parte sensitiva é cognoscitiva só do particular.
― Há, porém, outra virtude cognoscitiva que nem é acto de órgão corpóreo, nem
está, de qualquer modo, conjunta com a matéria corpórea, como o intelecto dos
anjos. Donde, o objecto desta virtude é a forma subsistente sem a matéria.
Pois, embora os anjos conheçam as coisas materiais, só as vêm no imaterial a
saber, em si mesmos ou em Deus. ― O intelecto humano, porém, ocupa uma posição
média. Pois não é acto de nenhum órgão; contudo, é uma virtude da alma, a qual
é forma do corpo, como é claro pelo que já se demonstrou (q. 76, a. 1).
Donde, lhe é próprio conhecer a forma, existente, por certo, individualmente,
na matéria corpórea, mas não enquanto existente em tal matéria. Pois, conhecer
aquilo que existe na matéria individual, mas não enquanto está em tal matéria,
é abstrair a forma, da matéria individual, representada pelos fantasmas. Donde
é necessário concluir-se que o nosso intelecto intelige as coisas materiais,
abstraindo dos fantasmas; e por essas coisas assim consideradas, chegamos a um
certo conhecimento das imateriais; como, inversamente, os anjos conhecem as
coisas materiais pelos seres imateriais. ― Platão, porém, atendendo só à
imaterialidade do intelecto humano e não ao fato de estar unido, de certo modo,
a um corpo, disse que o objecto do intelecto são as ideias separadas; que
inteligimos, não, por certo, abstraindo, mas, antes, participando dos seres
abstratos, como se viu antes. (q. 84, a. 1)
DONDE
A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ― De dois modos se pode abstrair. De um modo,
compondo e dividindo; assim, quando inteligimos que uma coisa não está em outra
ou está separada desta. De outro, considerando simples e absolutamente; assim,
quando inteligimos uma coisa sem considerar nada de outra. Ora, abstrair, pelo
intelecto, causas que na realidade não estão separadas, conforme o primeiro
modo, não vai sem falsidade. Mas nenhuma falsidade há em abstrair, com o
intelecto, ao segundo modo, causas que na realidade, não estão separadas; como
se vê manifestamente, nos sensíveis. Se, pois, inteligirmos ou dissermos que a
cor não está no corpo colorido, ou está deste separada, haverá falsidade na
opinião ou na oração. Se, porém, considerarmos a cor e a sua propriedade, sem
considerar nada a respeito do pomo colorido; ou se exprimirmos com palavras o
que inteligimos, não haverá falsidade nem na opinião nem na oração. Pois, o
pomo, não fazendo parte da essência da cor, nada impede inteligir esta, sem
inteligir nada daquele. Semelhantemente, digo que o pertencente à essência da
espécie de qualquer causa material, por exemplo, da pedra, do homem ou do
cavalo, pode ser considerado sem os princípios individuais, que não são da
essência da espécie. E isto é abstrair o universal, do particular, ou a espécie
inteligível, dos fantasmas; isto é, considerar a natureza, sem considerar os
princípios individuais, representados pelos fantasmas. Donde, o dizer que o
intelecto é falso quando intelige uma coisa diferentemente do que ela é, é
verdade se diferentemente se referir à coisa inteligida. Pois, falso é o
intelecto quando intelige a causa de modo diferente do que ela é. Assim, seria
falso o intelecto se abstraísse, da matéria, a espécie da pedra, de modo a
inteligir que essa espécie não está na matéria, como ensinava Platão. Porém não
é verdadeiro esse dito se diferentemente se referir ao que intelige. Pois, não
há falsidade em ser um o modo do intelecto ao inteligir, e outro o da coisa,
enquanto existe; pois, a coisa inteligida está em quem intelige, imaterialmente,
ao modo do intelecto; não porém, materialmente, ao modo da coisa material.
RESPOSTA
À SEGUNDA. ― Alguns opinaram que a espécie de uma coisa natural é só a forma, e
que a matéria não faz parte da espécie. Ora, segundo esta opinião, a matéria
não entraria nas definições das coisas naturais. ― E portanto, deve se dizer,
de outro modo, que a matéria é dupla: a comum e a assignada ou individual. A
comum é, p. ex., a carne e o osso; a individual, estas carnes e estes ossos.
Ora, o intelecto abstrai a espécie de uma coisa natural, da matéria sensível
individual, e não da matéria sensível comum. Assim, abstrai a espécie do homem,
de tais carnes e tais ossos determinados, os quais não sendo da essência da
espécie, mas partes do indivíduo, como já se disse, a espécie pode ser
considerada, sem eles. Mas a espécie do homem não pode ser abstraída, pelo
intelecto, das carnes e dos ossos. Ao passo que as espécies matemáticas podem
ser abstraídas, pelo intelecto, da matéria sensível; e não só da individual,
mas também da comum; não, porém, da matéria inteligível comum, mas só da
individual. E a matéria sensível é chamada matéria corporal, enquanto está
sujeita às qualidades sensíveis, a saber, a calidez e a frieza a dureza e a
moleza e outras; ao passo que a matéria inteligível é chamada substância,
enquanto está sujeita à quantidade. Ora, como é manifesto, a quantidade existe
na substância antes das qualidades sensíveis. Donde, as quantidades, como os
números, as dimensões e as figuras, que são limites das quantidades, podem ser
consideradas sem as qualidades sensíveis; o que é abstraí-las da matéria sensível.
Mas não podem ser consideradas sem o intelecto da substância sujeita à
quantidade; o que seria abstraí-las da matéria inteligível comum. Mas podem ser
consideradas sem tal ou tal substância; o que é abstraí-las da matéria
inteligível individual. ― Há porém certas coisas que podem ser abstraídas mesmo
da matéria inteligível comum, como o ente, a unidade a potência e o acto e
outras semelhantes; e essas também podem existir sem nenhuma matéria, como se
vê claramente, nas substâncias imateriais. Ora, como Platão não considerou o
que acabamos de dizer sobre o duplo modo da abstracção, ensinando ser separado,
na realidade, tudo o que consideramos como abstraído pelo intelecto.
RESPOSTA
À TERCEIRA. ― As cores têm o mesmo modo de existir tanto na matéria corporal
individual, como na potência visiva, e por isso, podem imprimir a sua
semelhança na vista. Mas os fantasmas, sendo semelhanças de indivíduos, e
existindo em órgãos corpóreos, não têm o mesmo modo de existir que tem o
intelecto humano, como é claro pelo que já foi dito; e, portanto, não podem,
pela sua virtude, imprimir nada no intelecto possível. Mas, pela virtude do
intelecto agente, resulta uma certa semelhança, no intelecto possível, pela
reflexão do intelecto agente sobre os fantasmas, a qual representa os objectos
imaginados, só quanto à natureza da espécie. E deste modo, se diz que a espécie
inteligível é abstraída dos fantasmas; não, porém, que alguma forma,
numericamente a mesma, estivesse, antes, nos fantasmas, e viesse a estar,
depois, no intelecto possível, do modo por que um corpo é tirado de um lugar e
transferido para outro.
RESPOSTA
À QUARTA. ― Os fantasmas são iluminados pelo intelecto agente; e, depois, por
virtude desse mesmo intelecto, as espécies inteligíveis são abstraídas deles.
São, pois, iluminados, porque, assim como a parte sensitiva, pela união com a
intelectiva, torna-se de maior virtude; assim os fantasmas, por virtude do
intelecto agente, tornam-se aptos para que sejam deles abstraídas as intenções
inteligíveis. E, depois, o intelecto agente abstrai, dos fantasmas, as espécies
inteligíveis, enquanto, por virtude desse mesmo intelecto, podemos fazer
entrar, em a nossa consideração, as naturezas das espécies, sem as condições
individuais, pelas semelhanças das quais é informado o intelecto possível.
RESPOSTA
À QUINTA. ― O nosso intelecto não só abstrai as espécies inteligíveis, dos
fantasmas, considerando as naturezas das coisas, universalmente; mas também as
intelige, nos fantasmas, porque não pode inteligir as coisas, das quais abstrai
as espécies, senão voltando-se para os fantasmas, como antes se disse (q.
84, a. 7).
Nota:
Revisão da tradução para português por ama
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