Em seguida, temos de tratar da união da alma e do corpo. E, sobre esta questão, oito artigos se discutem:
Art.
1 ― Se o princípio intelectivo está unido ao corpo como forma.
Art.
2 ― Se o princípio intelectivo se multiplica com a multiplicação dos corpos, ou
se há um só intelecto para todos os homens.
Art.
3 ― Se, além da alma intelectiva, há no homem, outras almas essencialmente
diferentes, a saber, a sensitiva e a nutritiva.
Art.
4 ― Se há, no homem, além da alma intelectiva, outra forma.
Art.
5 ― Se a alma intelectiva deve estar unida a um corpo humano.
Art.
6 ― Se a alma intelectiva está unida ao corpo mediante certas disposições
acidentais.
Art.
7 ― Se a alma está unida ao corpo do animal mediante algum outro corpo.
Art.
8 ― Se a alma está toda em qualquer parte de todo.
Art. 1 ― Se o princípio intelectivo
está unido ao corpo como forma.
(II
Cont. Gent., capo LVI, LVII, LIX, LXVIII seqq.; De Spirit.Creat., a, 2; Qu. De
Anima, a. 1, 2; De Unit:. Intell.; II De Anima, lect. IV; III, lect. VII).
O
primeiro discute-se assim. ― Parece que o princípio intelectivo não está unido
ao corpo como forma.
1.
― Pois, diz o Filósofo que o intelecto é separado e não é acto de nenhum corpo.
Logo, não está unido ao corpo como forma.
2.
Demais. ― Toda forma é determinada pela natureza da matéria a que pertence; de
contrário não seria preciso a proporção entre aquela e esta. Se, pois, o
intelecto estivesse unido ao corpo como forma, como todo corpo tem uma natureza
determinada, seguir-se-ia que também o intelecto a teria e, então, não seria
cognoscitivo, como é claro pelo que já foi dito (q. 75, a. 2). Ora,
isto é contra a sua natureza; e, logo, não está unido ao corpo como forma.
3.
Demais. ― Toda potência receptiva, que é acto de algum corpo, recebe a forma
material e individualmente; porque o recebido está no recipiente ao modo deste.
Ora, a forma da causa inteligida não é recebida no intelecto, material e
individualmente, mas antes, imaterial e universalmente; de contrário, o
intelecto não seria cognoscitivo do imaterial e do universal, senão só do
singular, como os sentidos. Logo, não está unido ao corpo como forma.
4.
Demais. ― Pertencem ao mesmo ser a potência e o acto; pois, é o mesmo ser que
pode agir e que age. Mas, como resulta do já dito (Ibid), a acção
intelectual não pertence a um determinado corpo. Logo, nem a potência
intelectiva é potência de nenhum corpo determinado. Ora, a virtude ou potência
não pode ser mais abstrata ou mais simples do que a essência, da qual deriva.
Logo, também a substância do intelecto não é forma do corpo.
5.
Demais. ― O que tem o ser em si não se une ao corpo como forma; pois esta,
sendo causa de alguma causa existir, o seu próprio ser não é o ser da forma em
si. Ora, o princípio intelectivo tem o ser em si e é subsistente, Como já antes
se disse (Ibid). Logo, não está unido ao corpo como forma.
6.
Demais. ― O inerente a uma causa em si existe sempre nela. Ora, é inerente à
forma em si estar unida à matéria; e não por algum acidente, mas por essência,
é o acto da matéria; do contrário, a matéria e a forma não constituiriam
unidade substancial, mas acidental. Logo, a forma não pode existir sem a
matéria própria. Ora, o princípio intelectivo, sendo incorruptível, como antes
se demonstrou (Ibid, a. 6), permanece não unido ao corpo, uma vez
este corrompido. Logo, não está unido ao corpo como forma.
Mas,
em contrário, segundo o Filósofo, a diferença é deduzida da forma da causa.
Ora, a diferença constitutiva do homem é ser racional, qualidade esta que se
lhe atribui em virtude do princípio intelectivo. Logo este é a forma do homem.
Deve-se admitir que o intelecto, princípio da operação intelectual, é a forma
do corpo humano. Pois, aquilo que faz, primariamente, com que um ser opere, é a
forma do ser ao qual se atribui à operação; assim, aquilo pelo que,
primariamente, o corpo são é a saúde, e o pelo que, primariamente, a alma sabe
é a ciência; donde, a saúde é a forma do corpo e a ciência é, de certo modo, a
forma da alma. E a razão disto está em nenhum ser agir senão como actual; donde,
o que torna um ser actual também o faz agir. Ora, é manifesto que a alma é o princípio
primário da vida do corpo. E como a vida se manifesta por operações diversas
nos diversos graus de viventes, aquilo que produz, primariamente, cada uma das
obras da vida é a alma. Pois é pela alma que, primariamente nos nutrimos,
sentimos, movemo-nos localmente e, semelhantemente, inteligimos. Logo, esse
princípio pelo qual primariamente inteligimos, quer se chame intelecto, quer
alma intelectiva, é a forma do corpo. E tal é a demonstração de Aristóteles. E
quem pretender que a alma intelectiva não é a forma do corpo, é necessário
encontrar o modo pelo qual o acto de inteligir seja o acto de um determinado
homem. Pois, cada um de nós sente que é o nosso próprio ser que intelige.
Ora,
uma acção pode ser atribuída a alguém de tríplice modo, como se vê claramente
no Filósofo. Assim, diz-se que um ser move ou age, totalmente, como o médico
cura; parcialmente, como o homem vê com os olhos; acidentalmente, como se diz
que o branco constrói porque acontece que um construtor é branco. Quando, pois,
dizemos que Sócrates ou Platão intelige, é manifesto que isso não lhe é atribuído
por acidente; pois, o que dele essencialmente se predica é-lhe atribuído
enquanto homem. Ou então, forçoso é dizer-se que Sócrates intelige por si
mesmo, na sua totalidade, como ensinava Platão, dizendo que o homem é a alma
intelectiva; ou que o intelecto é uma parte de Sócrates
Ora,
a primeira posição não se pode sustentar, como já se demonstrou antes (q.
75, a. 4), porque o homem que percebe o seu inteligir é o mesmo que
percebe o seu sentir. Ora, sentir não vai sem o corpo. Portanto, necessário é este
seja uma parte do homem.
Resta,
portanto, que o intelecto, com o qual Sócrates intelige, seja parte deste, a
ponto que lhe esteja, de certo modo, unido ao corpo. E esta união, diz o
Comentador, realiza-se pela espécie inteligível, que tem duplo sujeito: o
intelecto possível e os fantasmas, que estão nos órgãos corpóreos. Assim, pela
espécie inteligível, une-se o intelecto possível ao corpo de tal ou tal homem.
― Mas esta continuidade ou união não basta para a acção do intelecto ser a acção
de Sócrates. O que se torna patente pela semelhança com o sentido, do qual
Aristóteles parte para considerar as coisas do intelecto. Ora, os fantasmas
estão para o intelecto, diz, como as cores para a vista. Pois, assim como as
espécies das cores estão na vista, assim as dos fantasmas, no intelecto
possível. Mas é evidente que, pelo facto de as cores estarem numa parede, cujas
semelhanças estão na vista, não se atribui à parede o acto da visão; e por
isso, não dizemos que a parede vê, mas antes, que é vista. Assim também, do facto
de estarem as espécies dos fantasmas no intelecto possível, não se segue que
Sócrates, em quem estão os fantasmas, intelija; mas antes, que ele ou os seus
fantasmas são inteligidos.
Outros
ensinaram que o intelecto está unido ao corpo como um motor, constituindo ambos
uma unidade, de modo que a acção do intelecto pode ser atribuída ao todo. ― Mas
esta opinião é, de muitas maneiras, vã. ― Primeiro, porque o intelecto não move
o corpo senão pelo apetecer, cujo movimento pressupõe a operação do intelecto.
Pois, não é porque Sócrates é movido pelo intelecto, que ele intelige, mas
antes, inversamente, porque intelige é que é movido pelo intelecto. ― Segundo,
porque, sendo Sócrates um determinado indivíduo da natureza, cuja essência é
una, composta de matéria e forma, se o intelecto não for à forma dele, resulta
que lhe estranha à essência; e, então, o intelecto há-de comparar-se com Sócrates
todo, assim como o motor com o movido. Ora, inteligir é acção imanente no
próprio sujeito e não transeunte para outro, como a calefação. Logo, inteligir
não pode ser atribuído a Sócrates por que este seja movido pelo intelecto. ―
Terceiro, porque a acção do motor nunca se atribui ao movido senão como a um
instrumento; assim, a acção do carpinteiro é atribuída à serra. Se, portanto,
inteligir é atribuído a Sócrates, porque é a acção do motor deste, segue-se que
lhe é atribuído como instrumento; o que vai contra o Filósofo, ensinando que o
inteligir não é por meio de um instrumento corpóreo. Quarto, porque, embora a acção
da parte seja atribuída ao todo, como a acção dos olhos ao homem, contudo, esta
nunca é atribuída a outra parte qualquer, a não ser, talvez, por acidente;
pois, não dizemos que a mão vê porque os olhos vêm. Se, portanto, é do modo
supradito que intelecto e Sócrates constituem unidade, a acção daquele não pode
ser atribuída a este. Se, porém, Sócrates é um todo composto da união do intelecto
com tudo o mais que é de Sócrates; e, contudo, o intelecto não se une a este
mais, senão como motor, então resulta que Sócrates não é um, absolutamente; e,
por consequência, não é ser absolutamente, pois, uma coisa é ser do mesmo modo
pelo qual é uma.
Resta,
portanto, só o modo ensinado por Aristóteles, a saber, que tal homem intelige
porque o princípio intelectivo é a sua forma. Assim, pois, da própria operação
do intelecto resulta que o princípio intelectivo está unido ao corpo como
forma.
E
isso mesmo também pode ser deduzido da natureza da espécie humana. Pois, a
operação de um ser indicando-lhe a natureza, e a operação própria do homem,
como tal, sendo inteligir; por ela transcende todos os animais. Donde vem que
Aristóteles faz constituir a felicidade última nessa operação, como própria do
homem. Ora, é necessário que o homem pertença a uma espécie determinada pelo
princípio dessa operação; pois cada ser pertence à espécie que lhe é
determinada pela forma da mesma. Resulta daí, portanto, que o princípio
intelectivo é a forma própria do homem.
Mas
devemos notar que, quanto mais nobre for a forma, tanto mais dominará a matéria
corpórea, tanto menos nesta estará imersa e tanto mais a excederá pela sua
operação ou virtude; donde, vemos que a forma do corpo misto tem uma certa
operação não causada pelas qualidades elementares. E quanto mais avançarmos na
nobreza das formas, tanto mais veremos a virtude da forma exceder a matéria
elementar; assim, a alma vegetativa é mais que a forma do metal e a alma
sensível, mais que a vegetativa. Ora, a alma humana é a última em a nobreza das
formas. Donde, excede, pela sua virtude, a matéria corpórea, na própria medida
em que tem uma operação e uma virtude, das quais de nenhum modo participa a
matéria corpórea. E essa virtude chama-se intelecto.
Deve,
porém, atender-se a que, se alguém disser que a alma é composta de matéria e
forma, de nenhum modo poderá dizer que ela é a forma do corpo. Pois, sendo a
forma acto, e a matéria, ser somente potencial, de nenhum modo o que é composto
de matéria e forma poderá ser, em si e totalmente, forma de outro ente. Se,
porém, for forma só quanto a uma parte de si, então chamamos alma ao que é
forma; e primeiro animado, ao ser de que é forma, como antes já ficou dito (q.
75, a. 5).
DONDE
A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ― Como diz o Filósofo, a última das formas
naturais, com a qual termina a consideração do Filósofo natural, quer dizer, a
alma humana, é certamente separada; contudo, está unida à matéria. E a prova
está em que o homem, juntamente com o sol, gera outro homem, da matéria. Porém,
é separada quanto à virtude intelectiva; porque esta não é virtude de nenhum
órgão corpóreo, como a virtude visiva é acto dos olhos; pois, inteligir é acto
que não pode ser exercido por um órgão corpóreo, como se exerce a visão. Está,
porém, na matéria, porque a própria alma, a que pertence tal virtude, é forma
do corpo e o termo da geração humana. Assim, pois, o Filósofo diz, que o
intelecto é separado por não ser virtude de nenhum órgão corpóreo.
E
daqui se deduzem as RESPOSTAS À SEGUNDA E À TERCEIRA OBJEÇÕES. Pois, para o
homem inteligir todas as coisas pelo intelecto, e também os seres imateriais e
universais, basta que a virtude intelectiva não seja acto do corpo.
RESPOSTA
À QUARTA. ― A alma humana, por causa da sua perfeição, não é forma imersa na
matéria corpórea, ou por esta totalmente compreendida; donde, nada impede que
alguma virtude sua não seja acto do corpo, embora, na sua essência, seja a
forma deste.
RESPOSTA
À QUINTA. ― A alma comunica à matéria corpórea o ser no qual subsiste; e, deste
e da alma intelectiva constitui-se uma unidade, de modo que o ser de todo o
composto é também o da própria alma; o que não se dá com as outras formas não
subsistentes. E por isso, a alma humana permanece no ser, destruído o corpo;
não, porém, as outras formas.
RESPOSTA
À SEXTA. ― Em si, convém à alma estar unida ao corpo, assim como, em si, convém
ao corpo leve o elevar-se. E assim como este permanece certamente leve, quando
separado do lugar próprio, conservando, contudo, a aptidão e a inclinação para
esse lugar; assim a alma humana permanece no ser, quando separada do corpo,
conservando a aptidão e a inclinação natural para a união com o mesmo.
Nota: Revisão da tradução para português por ama
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