Não abandones a tua leitura espiritual.
A leitura tem feito muitos santos.
(S. josemaria, Caminho 116)
Está aconselhada a leitura espiritual diária de mais ou menos 15 minutos. Além da leitura do novo testamento, (seguiu-se o esquema usado por P. M. Martinez em “NOVO TESTAMENTO” Editorial A. O. - Braga) devem usar-se textos devidamente aprovados. Não deve ser leitura apressada, para “cumprir horário”, mas com vagar, meditando, para que o que lemos seja alimento para a nossa alma.
Para ver, clicar SFF.
Evangelho: Mt 23, 13-39
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Evangelho: Mt 23, 13-39
13 «Ai de vós, escribas e
fariseus hipócritas, que fechais aos homens o Reino dos Céus, pois nem vós
entrais, nem deixais que entrem os que quereriam entrar. 14 Ai de
vós, escribas e fariseus hipócritas, que devorais as casas das viúvas a
pretexto de longas orações! Por isto sereis julgados mais severamente. 15
Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que correis o mar e a terra para
fazerdes um prosélito e, depois de o terdes feito, o tornais filho do inferno
duas vezes pior do que vós. 16 «Ai de vós, guias cegos, que dizeis:
“Se alguém jurar pelo templo, isso não é nada, mas o que jurar pelo ouro do
templo, fica obrigado!”. 17 Insensatos e cegos! Pois que é mais, o
ouro ou o templo, que santifica o ouro? 18 E dizeis também: “Se
alguém jurar pelo altar, isso não é nada, mas quem jurar pela oferenda que está
sobre ele, fica obrigado”. 19 Cegos! Qual é mais: a oferta ou o
altar que santifica a oferta? 20 Aquele, pois, que jura pelo altar,
jura por ele e por tudo o que está sobre ele, 21 e quem jura pelo
templo, jura por ele e por Aquele que habita nele, 22 e quem jura
pelo céu, jura pelo trono de Deus e por Aquele que está sentado sobre ele. 23
«Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã e do
endro e do cominho, e descuidais as coisas mais importantes da Lei: a justiça,
a misericórdia e a fidelidade! São estas coisas que era preciso praticar, sem
omitir as outras. 24 Condutores cegos, que filtrais um mosquito e
engolis um camelo! 25 «Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas,
que limpais o que está por fora do copo e do prato, e por dentro estais cheios
de rapina e de imundície! 26 Fariseu cego, purifica primeiro o que
está dentro do copo e do prato, para que também o que está fora fique limpo. 27
«Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que sois semelhantes aos sepulcros
branqueados, que por fora parecem formosos, mas por dentro estão cheios de
ossos de mortos e de toda a espécie de podridão! 28 Assim também vós
por fora pareceis justos aos homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia
e iniquidade. 29 «Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que
edificais os sepulcros dos profetas e adornais os túmulos dos justos, 30
e dizeis: “Se nós tivéssemos vivido nos dias de nossos pais, não teríamos sido
seus cúmplices no derramamento do sangue dos profetas!”. 31 Assim
dais testemunho contra vós mesmos de que sois filhos daqueles que mataram os
profetas, e 32 acabais de encher a medida de vossos pais. 33
Serpentes, raça de víboras!, como escapareis à condenação do inferno? 34
Por isso, vou enviar-vos profetas, sábios e escribas; matareis e crucificareis
uns e açoitareis outros nas vossas sinagogas e os perseguireis de cidade em
cidade, 35 para que caia sobre vós todo o sangue inocente que se tem
derramado sobre a terra, desde o sangue do justo Abel até ao sangue de
Zacarias, filho de Baraquias, a quem matastes entre o templo e o altar. 36
Em verdade vos digo que tudo isto há-de recair sobre esta geração. 37
«Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são
enviados! Quantas vezes quis juntar os teus filhos, como a galinha recolhe
debaixo das asas seus pintainhos, e tu não quiseste! 38 “Eis que
será deixada deserta a vossa casa”. 39 Porque Eu vos digo: Desde
agora não me tornareis a ver, até que digais: “Bendito O que vem em nome do
Senhor”».
Ioannes Paulus PP.
II
Fides et ratio
aos Bispos da
Igreja Católica
sobre as relações
entre Fé e Razão
…/2
12. A história torna-se, assim, o lugar
onde podemos constatar a acção de Deus em favor da humanidade. Ele vem ter
connosco, servindo-Se daquilo que nos é mais familiar e mais fácil de verificar,
ou seja, o nosso contexto quotidiano, fora do qual não conseguiríamos
entender-nos.
A encarnação do Filho de Deus permite ver
realizada uma síntese definitiva que a mente humana, por si mesma, nem sequer
poderia imaginar: o Eterno entra no tempo, o Tudo esconde-se no fragmento, Deus
assume o rosto do homem. Deste modo, a verdade expressa na revelação de Cristo
deixou de estar circunscrita a um restrito âmbito territorial e cultural,
abrindo-se a todo o homem e mulher que a queira acolher como palavra
definitivamente válida para dar sentido à existência. Agora todos têm acesso ao
Pai, em Cristo; de facto, com a sua morte e ressurreição, Ele concedeu-nos a
vida divina que o primeiro Adão tinha rejeitado (cf. Rom 5, 12-15).
Com esta Revelação, é oferecida ao homem a verdade última a respeito da própria
vida e do destino da história: «Na realidade, o mistério do homem só no mistério
do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente», afirma a Constituição Gaudium et spes. 12
Fora desta perspectiva, o mistério da existência pessoal permanece um enigma
insolúvel. Onde poderia o homem procurar resposta para questões tão dramáticas
como a dor, o sofrimento do inocente e a morte, a não ser na luz que dimana do
mistério da paixão, morte e ressurreição de Cristo?
2. A
razão perante o mistério
13. Entretanto, não se pode esquecer que a
Revelação permanece envolvida no mistério. Jesus, com toda a sua vida, revela
seguramente o rosto do Pai, porque Ele veio para manifestar os segredos de
Deus; 13 e contudo, o
conhecimento que possuímos daquele rosto, está marcado sempre pelo carácter
parcial e limitado da nossa compreensão. Somente a fé permite entrar dentro do
mistério, proporcionando uma sua compreensão coerente.
O Concílio ensina que, «a Deus que revela,
é devida a obediência da fé». 14
Com esta breve mas densa afirmação, é indicada uma verdade fundamental do
cristianismo. Diz-se, em primeiro lugar, que a fé é uma resposta de obediência
a Deus. Isto implica que Ele seja reconhecido na sua divindade, transcendência
e liberdade suprema. Deus que Se dá a conhecer na autoridade da sua
transcendência absoluta, traz consigo também a credibilidade dos conteúdos que
revela. Pela fé, o homem presta assentimento a esse testemunho divino. Isto significa
que reconhece plena e integralmente a verdade de tudo o que foi revelado,
porque é o próprio Deus que o garante. Esta verdade, oferecida ao homem sem que
ele a possa exigir, insere-se no horizonte da comunicação interpessoal e impele
a razão a abrir-se a esta e a acolher o seu sentido profundo. É por isso que o
acto pelo qual nos entregamos a Deus, sempre foi considerado pela Igreja como
um momento de opção fundamental, que envolve a pessoa inteira. Inteligência e
vontade põem em acção o melhor da sua natureza espiritual, para consentir que o
sujeito realize um acto no pleno exercício da sua liberdade pessoal. 15 Na fé, portanto, não basta a liberdade
estar presente, exige-se que entre em acção. Mais, é a fé que permite a cada um
exprimir, do melhor modo, a sua própria liberdade. Por outras palavras, a
liberdade não se realiza nas opções contra Deus. Na verdade, como poderia ser
considerado um uso autêntico da liberdade, a recusa de se abrir àquilo que
permite a realização de si mesmo? No acreditar é que a pessoa realiza o acto
mais significativo da sua existência; de facto, nele a liberdade alcança a
certeza da verdade e decide viver nela.
Em auxílio da razão, que procura a
compreensão do mistério, vêm também os sinais presentes na Revelação. Estes
servem para conduzir mais longe a busca da verdade e permitir que a mente possa
autonomamente investigar inclusive dentro do mistério. De qualquer modo, se,
por um lado, esses sinais dão maior força à razão, porque lhe permitem
pesquisar dentro do mistério com os seus próprios meios, de que ela justamente
se sente ciosa, por outro lado, impelem-na a transcender a sua realidade de
sinais para apreender o significado ulterior de que eles são portadores.
Portanto, já há neles uma verdade escondida, para a qual encaminham a mente e
da qual esta não pode prescindir sem destruir o próprio sinal que lhe foi proposto.
Chega-se, assim, ao horizonte sacramental
da Revelação e de forma particular ao sinal eucarístico, onde a união
indivisível entre a realidade e o respectivo significado permite identificar a
profundidade do mistério. Na Eucaristia, Cristo está verdadeiramente presente e
vivo, actua pelo seu Espírito, mas, como justamente diz S. Tomás, «nada vês nem
compreendes, mas t'o afirma a fé mais viva, para além das leis da Terra. Sob
espécies diferentes, que não passam de sinais, é que está o dom de Deus». 16 Temos um eco disto mesmo nas seguintes
palavras do filósofo Pascal: «Como Jesus Cristo passou despercebido no meio dos
homens, assim a sua verdade permanece, entre as opiniões comuns, sem diferença
exterior. O mesmo se dá com a Eucaristia relativamente ao pão comum».17
Em resumo, o conhecimento da fé não anula o
mistério; torna-o apenas mais evidente e apresenta-o como um facto essencial
para a vida do homem: Cristo Senhor, «na própria revelação do mistério do Pai e
do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime», 18 que é participar no mistério da vida
trinitária de Deus. 19
14. A doutrina dos primeiro e segundo
Concílios do Vaticano abre um horizonte verdadeiramente novo também ao saber
filosófico. A Revelação coloca dentro da história um ponto de referência de que
o homem não pode prescindir, se quiser chegar a compreender o mistério da sua
existência; mas, por outro lado, este conhecimento apela constantemente para o
mistério de Deus que a mente não consegue abarcar, mas apenas receber e acolher
na fé. Entre estes dois momentos, a razão possui o seu espaço peculiar que lhe
permite investigar e compreender, sem ser limitada por nada mais que a sua
finitude ante o mistério infinito de Deus.
A Revelação introduz, portanto, na nossa
história uma verdade universal e última que leva a mente do homem a nunca mais
se deter; antes, impele-a a ampliar continuamente os espaços do próprio
conhecimento até sentir que realizou tudo o que estava ao seu alcance, sem nada
descurar. Ajuda-nos, nesta reflexão, uma das inteligências mais fecundas e
significativas da história da humanidade, à qual obrigatoriamente fazem
referência a filosofia e a teologia: Santo Anselmo. Na sua obra, Proslogion, o
Arcebispo de Cantuária exprime-se assim: «Detendo-me com frequência e atenção a
pensar neste problema, sucedia umas vezes que me parecia estar para agarrar o
que buscava, outras vezes, pelo contrário, furtava-se completamente ao meu
pensamento; até que finalmente, desesperado de o poder achar, decidi deixar de
procurar algo que me era impossível encontrar. Mas, quando quis afastar de mim
tal pensamento para que a sua ocupação da minha mente não me alheasse de outros
problemas de que podia tirar algum proveito, foi então que começou a
apresentar-se cada vez mais teimoso. (...) Mas, pobre de mim, um dos pobres
filhos de Eva, longe de Deus, o que é que comecei a fazer e o que é que
consegui? O que é que visava e a que ponto cheguei? A que é que aspirava e por
que é que suspiro? (...) Ó Senhor, Vós não sois apenas algo acerca do qual não
se pode pensar nada de maior (non solum es quo maius cogitari nequit), mas sois
maior de tudo o que se possa pensar (quiddam maius quam cogitari possit) (...).
Se não fôsseis o que sois, poder-se-ia pensar algo maior do que Vós, mas isso é
impossível». 20
15. A verdade da revelação cristã, que se
encontra em Jesus de Nazaré, permite a quem quer que seja perceber o «mistério»
da própria vida. Enquanto verdade suprema, ao mesmo tempo que respeita a
autonomia da criatura e a sua liberdade, obriga-a a abrir-se à transcendência.
Aqui, a relação entre liberdade e verdade atinge o seu máximo grau, podendo-se
compreender plenamente esta palavra do Senhor: «Conhecereis a verdade e a
verdade libertar-vos-á» (Jo 8, 32).
A revelação cristã é a verdadeira estrela
de orientação para o homem, que avança por entre os condicionalismos da
mentalidade imanentista e os reducionismos duma lógica tecnocrática; é a última
possibilidade oferecida por Deus, para reencontrar em plenitude aquele projecto
primordial de amor que teve início com a criação. Ao homem ansioso de conhecer
a verdade — se ainda é capaz de ver para além de si mesmo e levantar os olhos
acima dos seus próprios projectos — é-lhe concedida a possibilidade de
recuperar a genuína relação com a sua vida, seguindo a estrada da verdade.
Podem-se aplicar a esta situação as seguintes palavras do Deuteronómio: «A lei
que hoje te imponho não está acima das tuas forças nem fora do teu alcance. Não
está no céu, para que digas: "Quem subirá por nós ao céu e no-la irá
buscar?" Não está tão pouco do outro lado do mar, para que digas:
"Quem atravessará o mar para no-la buscar e no-la fazer ouvir para que a
observemos?" Não, ela está muito perto de ti: está na tua boca e no teu
coração; e tu podes cumpri-la» (30, 11-14). Temos um eco deste texto
no famoso pensamento do filósofo e teólogo Santo Agostinho: «Noli foras ire, in
te ipsum redi. In interiore homine habitat veritas». 21
À luz destas considerações, impõe-se uma
primeira conclusão: a verdade que a Revelação nos dá a conhecer não é o fruto
maduro ou o ponto culminante dum pensamento elaborado pela razão. Pelo contrário,
aquela apresenta-se com a característica da gratuidade, obriga a pensá-la, e
pede para ser acolhida, como expressão de amor. Esta verdade revelada é a
presença antecipada na nossa história daquela visão última e definitiva de
Deus, que está reservada para quantos acreditam n'Ele ou O procuram de coração
sincero. Assim, o fim último da existência pessoal é objecto de estudo quer da
filosofia, quer da teologia. Embora com meios e conteúdos diversos, ambas apontam
para aquele «caminho da vida» (Sal 1615, 11) que, segundo nos diz a
fé, tem o seu termo último de chegada na alegria plena e duradoura da
contemplação de Deus Uno e Trino.
CAPÍTULO
II - CREDO UT INTELLEGAM
1. «A
sabedoria sabe e compreende todas as coisas» (Sab 9, 11)
16. Quão profunda seja a ligação entre o
conhecimento da fé e o da razão, já a Sagrada Escritura no-lo indica com
elementos de uma clareza surpreendente. Comprovam-no sobretudo os Livros
Sapienciais. O que impressiona na leitura, feita sem preconceitos, dessas
páginas da Sagrada Escritura é o facto de estes textos conterem não apenas a fé
de Israel, mas também o tesouro de civilizações e culturas já desaparecidas.
Como se de um desígnio particular se tratasse, o Egipto e a Mesopotâmia fazem
ouvir novamente a sua voz, e alguns traços comuns das culturas do Antigo Oriente
ressurgem nestas páginas ricas de intuições singularmente profundas.
Não é por acaso que o autor sagrado, ao
querer descrever o homem sábio, o apresenta como aquele que ama e busca a
verdade: «Feliz o homem que é constante na sabedoria, e que discorre com a sua
inteligência; que repassa no seu coração os caminhos da sabedoria, e que
penetra no conhecimento dos seus segredos; vai atrás dela como quem lhe segue o
rasto, e permanece nos seus caminhos; olha pelas suas janelas, e escuta às suas
portas; repousa junto da sua morada, e fixa um pilar nas suas paredes; levanta
a sua tenda junto dela, e estabelece ali agradável morada; coloca os seus
filhos debaixo da sua protecção, e ele mesmo morará debaixo dos seus ramos; à
sua sombra estará defendido do calor, e repousará na sua glória» (Sir 14,
20-27).
Para o autor inspirado, como se vê, o
desejo de conhecer é uma característica comum a todos os homens. Graças à
inteligência, é dada a todos, crentes e descrentes, a possibilidade de «saciarem-se
nas águas profundas» do conhecimento (cf. Prov 20, 5). Seguramente,
no Antigo Israel, o conhecimento do mundo e dos seus fenómenos não se realizava
pela via da abstracção, como já o fazia o filósofo jónico ou o sábio egípcio. E
menos ainda podia o bom israelita conceber o conhecimento nos parâmetros
próprios da época moderna, mais propensa à subdivisão do saber. Apesar disso, o
mundo bíblico fez confluir, para o grande mar da teoria do conhecimento, o seu
contributo original.
Qual? O carácter peculiar do texto bíblico
reside na convicção de que existe uma unidade profunda e indivisível entre o
conhecimento da razão e o da fé. O mundo e o que nele acontece, assim como a
história e as diversas vicissitudes da nação são realidades observadas,
analisadas e julgadas com os meios próprios da razão, mas sem deixar a fé
alheia a este processo. Esta não intervém para humilhar a autonomia da razão,
nem para reduzir o seu espaço de acção, mas apenas para fazer compreender ao
homem que, em tais acontecimentos, Se torna visível e actua o Deus de Israel.
Assim, não é possível conhecer profundamente o mundo e os factos da história,
sem ao mesmo tempo professar a fé em Deus que neles actua. A fé aperfeiçoa o
olhar interior, abrindo a mente para descobrir, no curso dos acontecimentos, a
presença operante da Providência. A tal propósito, é significativa uma
expressão do livro dos Provérbios: «A mente do homem dispõe o seu caminho, mas
é o Senhor quem dirige os seus passos» (16, 9). É como se dissesse
que o homem, pela luz da razão, pode reconhecer a sua estrada, mas percorrê-la
de maneira decidida, sem obstáculos e até ao fim, ele só o consegue se, de
ânimo recto, integrar a sua pesquisa no horizonte da fé. Por isso, a razão e a
fé não podem ser separadas, sem fazer com que o homem perca a possibilidade de
conhecer de modo adequado a si mesmo, o mundo e Deus.
17. Não há motivo para existir concorrência
entre a razão e a fé: uma implica a outra, e cada qual tem o seu espaço próprio
de realização. Aponta nesta direcção o livro dos Provérbios, quando exclama: «A
glória de Deus é encobrir as coisas, e a glória dos reis é investigá-las» (25,
2). Deus e o homem estão colocados, em seu respectivo mundo, numa relação
única. Em Deus reside a origem de tudo, n'Ele se encerra a plenitude do
mistério, e isto constitui a sua glória; ao homem, pelo contrário, compete o
dever de investigar a verdade com a razão, e nisto está a sua nobreza. Um novo
ladrilho é colocado neste mosaico pelo Salmista, quando diz: «Quão insondáveis
para mim, ó Deus, vossos pensamentos! Quão imenso o seu número! Quisera
contá-los, são mais que as areias; se pudesse chegar ao fim, estaria ainda convosco»
(139/ 138, 17-18). O desejo de conhecer é tão grande e comporta tal
dinamismo que o coração do homem, ao tocar o limite intransponível, suspira
pela riqueza infinita que se encontra para além deste, por intuir que nela está
contida a resposta cabal para toda a questão ainda sem resposta.
18. Podemos, pois, dizer que Israel, com a
sua reflexão, soube abrir à razão o caminho para o mistério. Na revelação de
Deus, pôde sondar em profundidade aquilo que a razão estava procurando alcançar
sem o conseguir. A partir desta forma mais profunda de conhecimento, o Povo
Eleito compreendeu que a razão deve respeitar algumas regras fundamentais, para
manifestar do melhor modo possível a própria natureza. A primeira regra é ter
em conta que o conhecimento do homem é um caminho que não permite descanso; a
segunda nasce da consciência de que não se pode percorrer tal caminho com o orgulho
de quem pensa que tudo seja fruto de conquista pessoal; a terceira regra
funda-se no «temor de Deus», de quem a razão deve reconhecer tanto a
transcendência soberana como o amor solícito no governo do mundo.
Quando o homem se afasta destas regras,
corre o risco de falimento e acaba por encontrar-se na condição do «insensato».
Segundo a Bíblia, nesta insensatez encerra-se uma ameaça à vida. É que o
insensato ilude-se pensando que conhece muitas coisas, mas, de facto, não é
capaz de fixar o olhar nas realidades essenciais. E isto impede-lhe de pôr
ordem na sua mente (cf. Prov 1, 7) e de assumir uma atitude correcta
para consigo mesmo e o ambiente circundante. Quando, depois, chega a afirmar
que «Deus não existe» (cf. Sal 1413, 1), isso revela, com absoluta
clareza, quanto seja deficiente o seu conhecimento e quão distante esteja ele
da verdade plena a respeito das coisas, da sua origem e do seu destino.
19. Encontramos, no livro da Sabedoria,
alguns textos importantes, que iluminam ainda melhor este assunto. Lá, o autor
sagrado fala de Deus que Se dá a conhecer também através da natureza. Para os
antigos, o estudo das ciências naturais coincidia, em grande parte, com o saber
filosófico. Depois de ter afirmado que o homem, com a sua inteligência, é capaz
de «conhecer a constituição do universo e a força dos elementos (...), o ciclo
dos anos e a posição dos astros, a natureza dos animais mansos e os instintos
dos animais ferozes» (Sab 7, 17.19-20), por outras palavras, que o
homem é capaz de filosofar, o texto sagrado dá um passo em frente muito
significativo. Retomando o pensamento da filosofia grega, à qual parece
referir-se neste contexto, o autor afirma que, raciocinando precisamente sobre
a natureza, pode-se chegar ao Criador: «Pela grandeza e beleza das criaturas, pode-se,
por analogia, chegar ao conhecimento do seu Autor» (Sab 13, 5).
Reconhece-se, assim, um primeiro nível da revelação divina, constituído pelo
maravilhoso «livro da natureza»; lendo-o com os meios próprios da razão humana,
pode-se chegar ao conhecimento do Criador. Se o homem, com a sua inteligência,
não chega a reconhecer Deus como criador de tudo, isso fica-se a dever não
tanto à falta de um meio adequado, como sobretudo ao obstáculo interposto pela
sua vontade livre e pelo seu pecado.
20. Nesta perspectiva, a razão é
valorizada, mas não superexaltada. O que ela alcança pode ser verdade, mas só
adquire pleno significado se o seu conteúdo for situado num horizonte mais
amplo, o da fé: «O Senhor é quem dirige os passos do homem; como poderá o homem
compreender o seu próprio destino?» (Prov 20, 24). A fé, segundo o
Antigo Testamento, liberta a razão, na medida em que lhe permite alcançar
coerentemente o seu objecto de conhecimento e situá-lo naquela ordem suprema
onde tudo adquire sentido. Em resumo, pela razão o homem alcança a verdade,
porque, iluminado pela fé, descobre o sentido profundo de tudo e,
particularmente, da própria existência. Justamente, pois, o autor sagrado
coloca o início do verdadeiro conhecimento no temor de Deus: «O temor do Senhor
é o princípio da sabedoria» (Prov 1, 7; cf. Sir 1, 14).
2. «Adquire
a sabedoria, adquire a inteligência» (Prov 4, 5)
21. Segundo o Antigo Testamento, o
conhecimento não se baseia apenas numa atenta observação do homem, do mundo e
da história, mas supõe como indispensável também uma relação com a fé e os
conteúdos da Revelação. Aqui se concentram os desafios que o Povo Eleito teve
de enfrentar e a que deu resposta. Ao reflectir sobre esta sua condição, o
homem bíblico descobriu que não se podia compreender senão como «ser em relação»:
relação consigo mesmo, com o povo, com o mundo e com Deus. Esta abertura ao
mistério, que provinha da Revelação, acabou por ser, para ele, a fonte dum verdadeiro
conhecimento, que permitiu à sua razão aventurar-se em espaços infinitos,
recebendo inesperadas possibilidades de compreensão.
Segundo o autor sagrado, o esforço da
investigação não estava isento da fadiga causada pelo embate nas limitações da
razão. Sente-se isso mesmo, por exemplo, nas palavras com que o livro dos Provérbios
denuncia o cansaço provado ao tentar compreender os misteriosos desígnios de
Deus (cf. 30, 1-6). Todavia, apesar da fadiga, o crente não desiste.
E a força para continuar o seu caminho rumo à verdade provém da certeza de que
Deus o criou como um «explorador» (cf. Coel 1, 13), cuja missão é
não deixar nada sem tentar, não obstante a contínua chantagem da dúvida.
Apoiando-se em Deus, o crente permanece, em todo o lado e sempre, inclinado
para o que é belo, bom e verdadeiro.
22. S. Paulo, no primeiro capítulo da carta
aos Romanos, ajuda-nos a avaliar melhor quanto seja incisiva a reflexão dos
Livros Sapienciais. Desenvolvendo com linguagem popular uma argumentação
filosófica, o Apóstolo exprime uma verdade profunda: através da criação, os «olhos
da mente» podem chegar ao conhecimento de Deus. Efectivamente, através das
criaturas, Ele faz intuir à razão o seu «poder» e a sua «divindade» (cf.
Rom 1, 20). Deste modo, é atribuída à razão humana uma capacidade tal que
parece quase superar os seus próprios limites naturais: não só ultrapassa o
âmbito do conhecimento sensorial, visto que lhe é possível reflectir
criticamente sobre o mesmo, mas, raciocinando a partir dos dados dos sentidos,
pode chegar também à causa que está na origem de toda a realidade sensível. Em
terminologia filosófica, podemos dizer que, neste significativo texto paulino,
está afirmada a capacidade metafísica do homem.
Segundo o Apóstolo, no projecto originário
da criação estava prevista a capacidade de a razão ultrapassar comodamente o
dado sensível para alcançar a origem mesma de tudo: o Criador. Como resultado
da desobediência com que o homem escolheu colocar-se em plena e absoluta
autonomia relativamente Àquele que o tinha criado, perdeu tal facilidade de
acesso a Deus criador.
O livro do Génesis descreve de maneira
figurada esta condição do homem, quando narra que Deus o colocou no jardim do
Éden, tendo no centro «a árvore da ciência do bem e do mal» (2, 17).
O símbolo é claro: o homem não era capaz de discernir e decidir, por si só,
aquilo que era bem e o que era mal, mas devia apelar-se a um princípio
superior. A cegueira do orgulho iludiu os nossos primeiros pais de que eram
soberanos e autónomos, podendo prescindir do conhecimento vindo de Deus. Nesta
desobediência original, eles implicaram todo o homem e mulher, causando à razão
traumas sérios que haveriam de dificultar-lhe, daí em diante, o caminho para a
verdade plena. Agora a capacidade humana de conhecer a verdade aparece ofuscada
pela aversão contra Aquele que é fonte e origem da verdade. O próprio apóstolo
S. Paulo nos revela como, por causa do pecado, os pensamentos dos homens se
tornaram «vãos» e os seus arrazoados tortuosos e falsos (cf. Rom 1, 21-22).
Os olhos da mente deixaram de ser capazes de ver claramente: a razão foi
progressivamente ficando prisioneira de si mesma. A vinda de Cristo foi o
acontecimento de salvação que redimiu a razão da sua fraqueza, libertando-a dos
grilhões onde ela mesma se tinha algemado.
Revisão da tradução portuguesa por ama
___________________________
Notas:
12 N. 22.
13 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm.
sobre a revelação divina Dei Verbum, 4.
14 Ibid., 5.
15 O Concílio Vaticano I, ao qual se refere
a sentença anteriormente citada, ensina que a obediência da fé exige o empenhamento
da inteligência e da vontade: « Dado que o homem depende totalmente de Deus,
enquanto seu Criador e Senhor, e a razão criada está submetida completamente à
verdade incriada, somos obrigados, quando Deus Se revela, a prestar-Lhe,
mediante a fé, a plena submissão da nossa inteligência e da nossa vontade »
[Const. dogm. sobre a fé católica Dei Filius, III: DS 3008].
16 Sequência, na Solenidade do Santíssimo
Corpo e Sangue de Cristo.
17 Pensées (ed. L. Brunschvicg), 789.
18 Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre
a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 22.
19 Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm.
sobre a revelação divina Dei Verbum, 2.
20 Proémio e nn. 1 e 15: PL 158,
223-224.226.235.
21 De vera religione, XXXIX, 72: CCL 32,
234.
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