Não abandones a tua leitura espiritual.
A leitura tem feito muitos santos.
(S. josemaria, Caminho 116)
Está aconselhada a leitura espiritual diária de mais ou menos 15 minutos. Além da leitura do novo testamento, (seguiu-se o esquema usado por P. M. Martinez em “NOVO TESTAMENTO” Editorial A. O. - Braga) devem usar-se textos devidamente aprovados. Não deve ser leitura apressada, para “cumprir horário”, mas com vagar, meditando, para que o que lemos seja alimento para a nossa alma.
Para ver, clicar SFF.
Para ver, clicar SFF.
Evangelho: Mt 11, 20-30; 12, 1-8
20 Então
começou a censurar as cidades em que tinham sido realizados muitos dos Seus
milagres, por não terem feito penitência. 21 «Ai de ti, Corozain! Ai
de ti, Betsaida! porque, se em Tiro e em Sidónia tivessem sido feitos os
milagres que se realizaram em vós, há muito tempo que teriam feito penitência
vestidos de saco e em cinza. 22 Por isso vos digo que haverá menor
rigor para Tiro e Sidónia no dia do juízo, que para vós. 23 E tu,
Cafarnaum, elevar-te-ás porventura até ao céu? Não, hás-de ser abatida até ao
inferno. Se em Sodoma tivessem sido feitos os milagres que se fizeram em ti,
ainda hoje existiria. 24 Por isso vos digo que no dia do juízo
haverá menos rigor para a terra de Sodoma que para ti». 25 Então
Jesus, falando novamente, disse: «Eu Te louvo ó Pai, Senhor do céu e da terra,
porque ocultaste estas coisas aos sábios e aos prudentes, e as revelaste aos
pequeninos. 26 Assim é, ó Pai, porque assim foi do Teu agrado. 27
«Todas as coisas Me foram entregues por Meu Pai; e ninguém conhece o Filho
senão o Pai; nem ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o
quiser revelar. 28 O «Vinde a Mim todos os que estais fatigados e
oprimidos, e Eu vos aliviarei. 29 Tomai sobre vós o Meu jugo, e
aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração, e achareis descanso para
as vossas almas. 30 Porque o Meu jugo é suave, e o Meu fardo leve».
12
1 Naquele tempo, num dia de sábado, passava Jesus
por umas searas, e Seus discípulos, tendo fome, começaram a colher espigas e a
comê-las. 2 Vendo isto os fariseus, disseram-Lhe: «Olha que os Teus
discípulos fazem o que não é permitido fazer ao sábado». 3 Jesus
respondeu-lhes: «Não lestes o que fez David e os seus companheiros, quando
tiveram fome? 4 Como entrou na casa de Deus, e comeu os pães
sagrados, dos quais não era lícito comer, nem a ele, nem aos que com ele iam,
mas só aos sacerdotes? 5 Não lestes na Lei que aos sábados os
sacerdotes no templo violam o sábado e ficam sem culpa? 6 Ora Eu
digo-vos que aqui está Alguém que é maior que o templo. 7 Se vós
soubésseis o que quer dizer: “Quero misericórdia e não sacrifício”, jamais
condenaríeis inocentes. 8 Porque o Filho do Homem é senhor do
próprio sábado».
Ioannes Paulus PP. II
Veritatis splendor
a todos os Bispos
da Igreja Católica
sobre algumas questões fundamentais
do Ensinamento Moral da Igreja
/…10
O «mal intrínseco»: não é lícito
praticar o mal para se conseguir o bem (cf. Rm 3, 8)
79.
Deve-se, portanto, rejeitar a tese, própria das teorias teleológicas e
proporcionalistas, de que seria impossível qualificar como moralmente má
segundo a sua espécie — o seu «objecto» —, a escolha deliberada de alguns
comportamentos ou actos determinados, prescindindo da intenção com que a
escolha é feita ou da totalidade das consequências previsíveis daquele acto
para todas as pessoas interessadas.
O
elemento primário e decisivo para o juízo moral é o objecto do acto humano, o
qual decide sobre o seu ordenamento ao bem e ao fim último que é Deus. Este
ordenamento é identificado pela razão no mesmo ser do homem, considerado na sua
verdade integral, e portanto, nas suas inclinações naturais, nos seus
dinamismos e nas suas finalidades que têm sempre também uma dimensão
espiritual: são exactamente estes os conteúdos da lei natural, e
consequentemente o conjunto ordenado dos «bens para a pessoa» que se põem ao serviço
do «bem da pessoa», daquele bem que é ela mesma e a sua perfeição. São estes os
bens tutelados pelos mandamentos, os quais, segundo S. Tomás, contêm toda a lei
natural. 130
80.
Ora, a razão atesta que há objectos do acto humano que se configuram como «não
ordenáveis» a Deus, porque contradizem radicalmente o bem da pessoa, feita à
Sua imagem. São os actos que, na tradição moral da Igreja, foram denominados
«intrinsecamente maus» (intrinsece malum): são-no sempre e por si mesmos, ou
seja, pelo próprio objecto, independentemente das posteriores intenções de quem
age e das circunstâncias. Por isso, sem querer minimamente negar o influxo que
têm as circunstâncias e sobretudo as intenções sobre a moralidade, a Igreja
ensina que «existem actos que, por si e em si mesmos, independentemente das
circunstâncias, são sempre gravemente ilícitos, por motivo do seu objecto».131 O mesmo Concílio Vaticano II, no quadro
do devido respeito pela pessoa humana, oferece uma ampla exemplificação de tais
actos: «Tudo quanto se opõe à vida, como são todas as espécies de homicídio,
genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a
integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e
mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto
ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas,
as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o
comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho,
em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como
pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são
infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais
aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem
gravemente a honra devida ao Criador».132
Sobre
os actos intrinsecamente maus, e referindo-se às práticas contraceptivas pelas
quais o acto conjugal se torna intencionalmente infecundo, Paulo VI ensina: «Na
verdade, se, por vezes, é lícito tolerar um mal menor com o fim de evitar um
mal mais grave ou de promover um bem maior, não é lícito, nem mesmo por
gravíssimas razões, praticar o mal para se conseguir o bem (cf. Rm 3, 8),
ou seja, fazer objecto de um acto positivo de vontade o que é intrinsecamente
desordenado e, portanto, indigno da pessoa humana, mesmo com o intuito de
salvaguardar ou promover bens individuais, familiares ou sociais».133
81.
Ao ensinar a existência de actos intrinsecamente maus, a Igreja cinge-se à
doutrina da Sagrada Escritura. O apóstolo Paulo afirma categoricamente: «Não
vos enganeis: Nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem
sodomitas, nem ladrões, nem avarentos, nem maldizentes, nem os que se dão à
embriaguez, nem salteadores possuirão o Reino de Deus» (1 Cor 6, 9-10).
Se
os actos são intrinsecamente maus, uma intenção boa ou circunstâncias
particulares podem atenuar a sua malícia, mas não suprimi-la: são actos
«irremediavelmente» maus, que por si e em si mesmos não são ordenáveis a Deus e
ao bem da pessoa: «Quanto aos actos que, por si mesmos, são pecados (cum iam
opera ipsa peccata sunt) — escreve S. Agostinho — como o furto, a fornicação, a
blasfémia ou outros actos semelhantes, quem ousaria afirmar que, realizando-os
por boas razões (causis bonis), já não seriam pecados ou, conclusão ainda mais
absurda, que seriam pecados justificados?». 134
Por
isso, as circunstâncias ou as intenções nunca poderão transformar um acto
intrinsecamente desonesto pelo seu objecto, num acto «subjectivamente» honesto
ou defensível como opção.
82.
De resto, a intenção é boa quando visa o verdadeiro bem da pessoa na
perspectiva do seu fim último. Mas os actos, cujo objecto é «não ordenável» a
Deus e «indigno da pessoa humana», opõem-se sempre e em qualquer caso a este
bem. Neste sentido, o respeito das normas que proíbem tais actos e que obrigam
semper et pro semper, ou seja, sem nenhuma excepção, não só não limita a boa
intenção, mas constitui mesmo a sua expressão fundamental.
A
doutrina do objecto como fonte da moralidade constitui uma explicitação
autêntica da moral bíblica da Aliança e dos mandamentos, da caridade e das
virtudes. A qualidade moral do agir humano depende desta fidelidade aos
mandamentos, expressão de obediência e amor. É por isso — repetimo-lo — que se
deve rejeitar como errónea a opinião que considera impossível qualificar
moralmente como má segundo a sua espécie, a opção deliberada de alguns
comportamentos ou de certos actos, prescindindo da intenção com que a escolha é
feita ou da totalidade das consequências previsíveis daquele acto para todas as
pessoas interessadas. Sem esta determinação racional da moralidade do agir
humano, seria impossível afirmar uma «ordem moral objectiva» 135 e estabelecer qualquer norma
determinada, do ponto de vista do conteúdo, que obrigasse sem excepção; e isto
reverteria em dano da fraternidade humana e da verdade sobre o bem, e em
prejuízo também da comunhão eclesial.
83.
Como se vê, na questão da moralidade dos actos humanos, e particularmente na da
existência dos actos intrinsecamente maus, concentra-se, de certo modo, a
própria questão do homem, da sua verdade e das consequências morais que daí
derivam. Ao reconhecer e ensinar a existência do mal intrínseco em determinados
actos humanos, a Igreja permanece fiel à verdade integral do homem, e,
portanto, respeita-o e promove-o na sua dignidade e vocação. Consequentemente,
ela deve recusar as teorias expostas acima, que estão em contraste com esta
verdade.
Porém,
é preciso que nós, Irmãos no Episcopado, não nos detenhamos só a admoestar os
fiéis sobre os erros e os perigos de algumas teorias éticas. Devemos, antes de
mais, mostrar o esplendor fascinante daquela verdade, que é Jesus Cristo.
N'Ele, que é a Verdade (cf. Jo 14, 6), o homem pode compreender
plenamente e viver perfeitamente, mediante os actos bons, a sua vocação à
liberdade na obediência à lei divina, que se resume no mandamento do amor de
Deus e do próximo. É o que acontece com o dom do Espírito Santo, Espírito de
verdade, de liberdade e de amor: n'Ele, é- -nos concedido interiorizar a lei,
percebê-la e vivê-la como o dinamismo da verdadeira liberdade pessoal: «a lei
perfeita é a lei da liberdade» (Tg 1, 25).
CAPÍTULO III
«PARA NÃO SE DESVIRTUAR A CRUZ DE
CRISTO»
(1
COR. 1, 17)
O bem moral para a vida da Igreja e do
mundo
«Cristo nos libertou, para que permaneçamos
livres» (Gál 5, 1)
84.
A questão fundamental, que as teorias morais acima referidas solevam mais
fortemente, é a da relação entre a liberdade do homem e a lei de Deus: é, em
última análise, a questão da relação entre a liberdade e a verdade.
Segundo
a fé cristã e a doutrina da Igreja, «somente a liberdade que se submete à
Verdade, conduz a pessoa humana ao seu verdadeiro bem. O bem da pessoa é estar
na Verdade e praticar a Verdade».136
O
confronto entre a posição da Igreja e a situação sociocultural de hoje põe
imediatamente a descoberto a urgência de se desenvolver precisamente sobre esta
questão fundamental um intenso labor pastoral por parte da própria Igreja:
«Este laço essencial entre Verdade-Bem-Liberdade foi perdido em grande parte
pela cultura contemporânea, e, portanto, levar o homem a redescobri-lo é hoje
uma das exigências próprias da missão da Igreja, para a salvação do mundo. A
pergunta de Pilatos: "O que é a verdade?" emerge também da desoladora
perplexidade de um homem que frequentemente já não sabe quem é, donde vem e
para aonde vai. E é assim que não raro assistimos à tremenda derrocada da
pessoa humana em situações de autodestruição progressiva. Se fôssemos dar
ouvidos a certas vozes, parece que não mais se deveria reconhecer o
indestrutível carácter absoluto de qualquer valor moral. Está patente aos olhos
de todos, o desprezo da vida humana já concebida e ainda não nascida; a violação
permanente de fundamentais direitos da pessoa; a destruição iníqua dos bens
necessários para uma vida verdadeiramente humana. Mas, algo de mais grave
aconteceu: o homem já não está convencido de que só na verdade pode encontrar a
salvação. A força salvadora do verdadeiro é contestada, confiando à simples
liberdade, desvinculada de toda a objectividade, a tarefa de decidir
autonomamente o que é bem e o que é mal. Este relativismo gera, no campo
teológico, desconfiança na sabedoria de Deus, que guia o homem com a lei moral.
Àquilo que a lei moral prescreve contrapõem-se as chamadas situações concretas,
no fundo, deixando de considerar a lei de Deus como sendo sempre o único
verdadeiro bem do homem».137
85.
A obra de discernimento destas teorias éticas por parte da Igreja não se limita
a denunciá-las e rejeitá-las, mas visa positivamente amparar com grande
solicitude todos os fiéis na formação de uma consciência moral, que julgue e
leve a decisões conformes à verdade, como exorta o apóstolo Paulo: «Não vos
conformeis com a mentalidade deste mundo, mas transformai-vos pela renovação da
vossa mente, a fim de conhecerdes a vontade de Deus: o que é bom, o que Lhe é
agradável e o que é perfeito» (Rm 12, 2). Esta obra da Igreja
encontra o seu ponto de apoio — o seu «segredo» formativo — não tanto nos
enunciados doutrinais e nos apelos pastorais à vigilância, como sobretudo em
manter o olhar fixo no Senhor Jesus. A Igreja cada dia olha com amor incansável
para Cristo, plenamente consciente de que só n'Ele está a resposta verdadeira e
definitiva ao problema moral.
De
modo particular, em Jesus crucificado, ela encontra a resposta à questão que
hoje atormenta tantos homens: como pode a obediência às normas morais
universais e imutáveis respeitar a unicidade e irrepetibilidade da pessoa, e
não atentar contra a sua liberdade e dignidade? A Igreja faz sua a consciência
que o apóstolo Paulo tinha da missão recebida: «Cristo (...) me enviou (...) a
pregar o Evangelho, não porém, com sabedoria de palavras, para não se
desvirtuar a Cruz de Cristo (...) Nós pregamos Cristo crucificado, escândalo
para os judeus e loucura para os gentios. Mas, para os eleitos, tanto judeus
como gregos, Cristo é o poder e a sabedoria de Deus» (1 Cor 1, 17.23-24).
Cristo crucificado revela o sentido autêntico da liberdade, vive-o em plenitude
no dom total de Si mesmo e chama os discípulos a tomar parte na Sua própria
liberdade.
86.
A reflexão racional e a experiência quotidiana demonstram a debilidade que
caracteriza a liberdade do homem. É liberdade real, mas finita: não tem o seu
ponto de partida absoluto e incondicionado em si própria, mas na existência em
que se encontra e que representa para ela, simultaneamente, um limite e uma
possibilidade. É a liberdade de uma criatura, ou seja, uma liberdade dada, que
deve ser acolhida como um gérmen e fazer-se amadurecer com responsabilidade. É
parte constitutiva daquela imagem de criatura que fundamenta a dignidade da
pessoa: nela ressoa a vocação original com que o Criador chama o homem ao
verdadeiro Bem, e mais ainda, com a revelação de Cristo, chama-o a estabelecer
amizade com Ele, participando na mesma vida divina. É inalienável propriedade
pessoal e, ao mesmo tempo, abertura universal a todo o vivente, com a saída de
si rumo ao conhecimento e ao amor do outro. 138
Portanto, a liberdade radica-se na verdade do homem e destina-se à comunhão.
A
razão e a experiência atestam não só a debilidade da liberdade humana, mas
também o seu drama. O homem descobre que a sua liberdade está misteriosamente
inclinada a trair esta abertura para o Verdadeiro e para o Bem, e que, com
bastante frequência, de facto, ele prefere escolher bens finitos, limitados e
efémeros. Mais ainda, por detrás dos erros e das opções negativas, o homem
detecta a origem de uma revolta radical, que o leva a rejeitar a Verdade e o
Bem para arvorar-se em princípio absoluto de si próprio: «Sereis como Deus» (Gn
3, 5). Portanto, a liberdade necessita de ser libertada. Cristo é o seu
libertador: Ele «nos libertou, para que permaneçamos livres» (Gál 5, 1).
87.
Cristo revela, antes de mais, que o reconhecimento honesto e franco da verdade
é condição para uma autêntica liberdade: «Conhecereis a verdade e a verdade
libertar-vos-á» (Jo 8, 32). 139
É a verdade que torna livre defronte ao poder e dá a força do martírio. Assim,
Jesus diante de Pilatos: «Para isto nasci e para isto vim ao mundo, a fim de
dar testemunho da verdade» (Jo 18, 37). Assim, os verdadeiros
adoradores de Deus devem adorá-lo «em espírito e verdade» (Jo 4, 23):
nesta adoração tornam-se livres. A ligação à verdade e a adoração de Deus
manifestam-se em Jesus Cristo como a raiz mais íntima da liberdade.
Além
disso, Jesus revela, com a sua própria existência e não apenas com as palavras,
que a liberdade se realiza no amor, ou seja, no dom de si. Ele que disse:
«Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos» (Jo
15, 13), caminha livremente para a Paixão (cf. Mt 26, 46) e,
na Sua obediência ao Pai sobre a Cruz, dá a vida por todos os homens (cf.
Fil 2, 6-11). Deste modo, a contemplação de Jesus crucificado é a
via-mestra pela qual a Igreja deve caminhar cada dia, se quiser compreender
todo o sentido da liberdade: o dom de si no serviço a Deus e aos irmãos. Mais,
a comunhão com o Senhor crucificado e ressuscitado é a fonte inesgotável, onde
a Igreja se sacia incessantemente para viver na liberdade, doar-se e servir.
Comentando o versículo 100do Salmo 99 «Servi ao Senhor com alegria», S.
Agostinho diz: «Na casa do Senhor, livre é a escravidão. Livre, visto que o
serviço não o impõe a necessidade, mas a caridade (...) A caridade te faça
servo, como a verdade te fez livre (...) És, ao mesmo tempo, servo e livre:
servo, porque tal te fizeste; livre, porque és amado por Deus, teu criador;
mais ainda, livre porque te foi concedido amar o teu criador (...) És servo do
Senhor e livre no Senhor. Não procures uma libertação que te leve para longe da
casa do teu libertador!». 140
Deste
modo, a Igreja, e nela cada cristão, é chamada a participar no munus regale de
Cristo na cruz (cf. Jo 12, 32), na graça e na responsabilidade do
Filho do Homem, que «não veio para ser servido, mas para servir e dar a Sua
vida pelo resgate de muitos» (Mt 20, 28). 141
Jesus
é, pois, a síntese viva e pessoal da perfeita liberdade na obediência total à
vontade de Deus. A Sua carne crucificada é a plena Revelação do vínculo
indissolúvel entre liberdade e verdade, tal como a Sua ressurreição da morte é
a suprema exaltação da fecundidade e da força salvífica de uma liberdade vivida
na verdade.
Caminhar na luz (cf.
1 Jo 1, 7)
88.
A contraposição, mais, a radical separação entre liberdade e verdade é consequência,
manifestação e realização de outra dicotomia, mais grave e perniciosa, que
separa a fé da moral.
Esta
separação constitui uma das mais sérias preocupações pastorais da Igreja no
actual processo de secularismo, onde demasiados homens pensam e vivem «como se
Deus não existisse». Encontramo-nos diante de uma mentalidade que atinge,
frequentemente de modo profundo, vasto e minucioso, as atitudes e os
comportamentos dos cristãos, cuja fé se debilita e perde a própria
originalidade de novo critério interpretativo e operativo para a existência
pessoal, familiar e social. Na verdade, os critérios de juízo e de escolha
assumidos pelos mesmos crentes apresentam-se frequentemente, no contexto de uma
cultura amplamente descristianizada, como alheios ou até mesmo contrapostos aos
do Evangelho.
Urge,
então, que os cristãos redescubram a novidade da sua fé e a sua força de
discernimento face à cultura predominante e insinuativa: «Se outrora éreis
trevas — admoesta o apóstolo Paulo —, agora sois luz no Senhor. Comportai-vos
como filhos da luz, porque o fruto da luz consiste na bondade, na justiça e na
verdade. Procurai o que é agradável ao Senhor, e não participeis das obras
infrutuosas das trevas; pelo contrário, condenai-as abertamente (...) Cuidai
pois, irmãos, em andar com prudência, não como insensatos, mas com circunspecção,
aproveitando o tempo, pois os dias são maus» (Ef 5, 8-11.15-16; cf. 1 Ts
5, 4-8).
Urge
recuperar e repropor o verdadeiro rosto da fé cristã, que não é simplesmente um
conjunto de proposições a serem acolhidas e ratificadas com a mente. Trata-se,
antes, de um conhecimento existencial de Cristo, uma memória viva dos seus
mandamentos, uma verdade a ser vivida. Aliás, uma palavra só é verdadeiramente
acolhida quando se traduz em actos, quando é posta em prática. A fé é uma
decisão que compromete toda a existência. É encontro, diálogo, comunhão de amor
e de vida do crente com Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida (cf. Jo 14,
6). Comporta um acto de intimidade e abandono a Cristo, fazendo-nos viver
como Ele viveu (cf. Gál 2, 20), ou seja, no amor pleno a Deus e aos
irmãos.
89.
A fé possui também um conteúdo moral: dá origem e exige um compromisso coerente
de vida, comporta e aperfeiçoa o acolhimento e a observância dos mandamentos
divinos. Como escreve o evangelista João, «Deus é luz e n'Ele não há trevas. Se
dissermos que temos comunhão com Ele e andarmos nas trevas, mentimos e não
praticamos a verdade (...) E sabemos que O conhecemos por isto: se guardarmos
os Seus mandamentos. Aquele que diz conhecê-Lo, e não guarda os Seus
mandamentos é mentiroso, e a verdade não está nele. Mas quem guarda a Sua
palavra, nesse, o amor de Deus é verdadeiramente perfeito; e, por isso,
conhecemos que estamos n'Ele. Aquele que diz que está n'Ele, deve também andar
como Ele andou» (1 Jo 1, 5-6; 2, 3-6).
Através
da vida moral, a fé torna-se «confissão» não só perante Deus, mas também diante
dos homens: faz-se testemunho. «Vós sois a luz do mundo — disse Jesus. Não se
pode esconder uma cidade situada sobre um monte; nem se acende a candeia para a
colocar debaixo do alqueire, mas sim em cima do velador, e assim alumia a todos
os que estão em casa. Brilhe a vossa luz diante dos homens, de modo que, vendo
as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai, que está nos Céus» (Mt 5,
14-16). Estas obras são, sobretudo, as da caridade (cf. Mt 25,
31-46) e da autêntica liberdade que se manifesta e vive no dom de si. Até
ao dom total de si, como fez Jesus que, sobre a cruz, «amou a Igreja e por ela
Se entregou» (Ef 5, 25). O testemunho de Cristo é fonte, paradigma e
força para o testemunho do discípulo, chamado a seguir pela mesma estrada: «Se
alguém quer vir após Mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, dia após dia, e
siga-Me» (Lc 9, 23). A caridade, segundo as exigências do
radicalismo evangélico, pode levar o crente ao supremo testemunho do martírio.
Sempre, segundo o exemplo de Jesus que morre na cruz: «Sede, pois, imitadores
de Deus, como filhos muito amados, — escreve Paulo aos cristãos de Éfeso — e
progredi na caridade, segundo o exemplo de Cristo, que nos amou e por nós Se
entregou a Deus como oferenda e sacrifício de agradável odor» (Ef 5, 1-2).
O martírio, exaltação da santidade
inviolável da lei de Deus
90.
A relação entre fé e moral transparece com todo o seu fulgor no respeito
incondicional devido às exigências inalienáveis da dignidade pessoal de cada
homem, àquelas exigências defendidas pelas normas morais que proíbem sem
excepção os actos intrinsecamente maus. A universalidade e imutabilidade da
norma moral, manifesta e, ao mesmo tempo, serve de tutela à dignidade pessoal,
ou seja, à inviolabilidade do homem, em cuja face brilha o esplendor de Deus (cf.
Gn 9, 5-6).
A
recusa das teorias éticas «teleológicas», «consequencialistas» e
«proporcionalistas», que negam a existência de normas morais negativas referentes
a determinados comportamentos e válidas sem excepção, encontra uma confirmação
particularmente eloquente no facto do martírio cristão, que sempre acompanhou e
ainda acompanha a vida da Igreja.
91.
Já na Antiga Aliança, encontramos admiráveis testemunhos de fidelidade à lei
santa de Deus, levada até à voluntária aceitação da morte. Emblemática é a
história de Susana: aos dois juízes injustos, que ameaçavam condená-la à morte
se se recusasse ceder às suas paixões impuras, assim responde: «A que aflições
me encontro submetida de todos os lados! Consentir? É para a mim a morte.
Negar-me? Nem mesmo assim vos escaparei. Não! É preferível para mim cair em
vossas mãos sem ter feito nada, do que pecar aos olhos do Senhor!» (Dn 13,
22-23). Susana, preferindo «cair inocente» nas mãos dos juízes,
testemunha não só a sua fé e confiança em Deus, mas também a sua obediência à
verdade e ao carácter absoluto da ordem moral: com a sua disponibilidade para o
martírio, proclama que não é justo praticar o que a lei de Deus qualifica como
mal para dele conseguir algum bem. Ela escolhe para si a «melhor parte»: um
claríssimo testemunho, sem qualquer reserva, à verdade do bem e ao Deus de
Israel; manifesta assim, nos seus actos, a santidade de Deus.
No
limiar do Novo Testamento, João Baptista, recusando-se a calar a lei do Senhor
e a comprometer-se com o mal, «deu a sua vida pela justiça e pela verdade»,142 e foi assim o precursor do Messias também
no martírio (cf. Mc 6, 17-29). Por isso, «foi encerrado na escuridão
do cárcere aquele que veio para dar testemunho da luz e que mereceu ser chamado
pela mesma luz, que é Cristo, lâmpada que arde e ilumina (...) E foi baptizado
no próprio sangue aquele a quem fora concedido baptizar o Redentor do mundo».143
Na
Nova Aliança, encontram-se numerosos testemunhos de seguidores de Cristo — a
começar pelo diácono Estêvão (cf. Act 6, 8-7, 60) e o apóstolo Tiago
(cf. Act 12, 1-2) —, que morreram mártires para confessar a sua fé e
o seu amor ao Mestre e para não O renegar. Nisto, eles seguiram o Senhor Jesus,
que, diante de Caifás e Pilatos, «deu um tão belo testemunho» (1 Tim 6,
13), confirmando a verdade da Sua mensagem com o dom da vida. Inumeráveis
os mártires que preferiram as perseguições e a morte, a cumprir o gesto
idólatra de queimar incenso perante a estátua do Imperador (cf. Ap 13,
7-10). Rejeitaram inclusive simular um tal culto, dando assim o exemplo
do dever de abster-se até de um mero comportamento exterior contrário ao amor
de Deus e ao testemunho da fé. Na obediência, eles confiaram e entregaram, como
Cristo, a sua vida ao Pai, Àquele que os podia livrar da morte (cf. Heb 5,
7).
A
Igreja propõe o exemplo de numerosos santos e santas que testemunharam e
defenderam a verdade moral até ao martírio ou preferiram a morte a um só pecado
mortal. Elevando-os à honra dos altares, a Igreja canonizou o seu testemunho e
declarou verdadeiro o seu juízo, segundo o qual o amor de Deus implica
obrigatoriamente o respeito dos seus mandamentos, inclusive nas circunstâncias
mais graves, e a recusa de atraiçoá-los, mesmo com a intenção de salvar a
própria vida.
92.
No martírio, enquanto afirmação da inviolabilidade da ordem moral, refulge a
santidade da lei divina e, conjuntamente, a intangibilidade da dignidade
pessoal do homem, criado à imagem e semelhança de Deus: é uma dignidade que
nunca é permitido aviltar ou contrariar, nem mesmo com boas intenções, sejam
quais forem as dificuldades. Jesus adverte-nos, com a máxima severidade: «Que
aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?» (Mc 8, 36).
O
martírio desautoriza como sendo ilusório e falso, qualquer «significado humano»
que se pretenda atribuir, mesmo em condições «excepcionais», ao acto em si
próprio moralmente mau; mais ainda, revela claramente a sua verdadeira face: a de
uma violação da «humanidade» do homem, antes ainda em quem o realiza do que
naquele que o padece. 144
Portanto, o martírio é também exaltação da perfeita «humanidade» e da
verdadeira «vida» da pessoa, como testemunha S. Inácio de Antioquia,
dirigindo-se aos cristãos de Roma, lugar do seu martírio: «Tende compaixão de
mim, irmãos: não me impeçais de viver, não queirais que eu morra (...) Deixai
que eu alcance a pura luz; chegado lá, serei verdadeiramente homem. Deixai que
eu imite a paixão do meu Deus». 145
93.
O martírio é, enfim, um preclaro sinal da santidade da Igreja: a fidelidade à
lei santa de Deus, testemunhada com a morte, é anúncio solene e compromisso
missionário usque ad sanguinem, a fim de que o esplendor da verdade moral não
seja ofuscado nos costumes e na mentalidade das pessoas e da sociedade. Um tal
testemunho oferece uma contribuição de valor extraordinário, para que, tanto na
sociedade civil como também no seio das próprias comunidades eclesiais, não se
caia na crise mais perigosa que pode afligir o homem: a confusão do bem e do
mal, que torna impossível construir e conservar a ordem moral dos indivíduos e
das comunidades. Os mártires, e mais em geral todos os santos da Igreja,
através do exemplo eloquente e fascinante de uma vida totalmente transfigurada
pelo esplendor da verdade moral, iluminam cada época da história despertando o
seu sentido moral. Dando pleno testemunho do bem, eles são uma viva censura
para os que transgridem a lei (cf. Sab 2, 12), e fazem ressoar, com
permanente actualidade, as palavras do profeta: «Ai dos que ao mal chamam bem,
e ao bem mal, que têm as trevas por luz e a luz por trevas, que têm o amargo
por doce e o doce por amargo» (Is 5, 20).
Se
o martírio representa o ápice do testemunho a favor da verdade moral, ao qual
relativamente poucos podem ser chamados, há, contudo, um testemunho coerente
que todos os cristãos devem estar prontos a dar cada dia, mesmo à custa de
sofrimentos e de graves sacrifícios. De facto, diante das múltiplas
dificuldades que, mesmo nas circunstâncias mais comuns, pode exigir a
fidelidade à ordem moral, o cristão é chamado, com a graça de Deus implorada na
oração, a um compromisso por vezes heróico, amparado pela virtude da fortaleza,
mediante a qual — como ensina S. Gregório Magno — ele até consegue «amar as
dificuldades deste mundo, em vista do prémio eterno».146
94.
Neste testemunho ao carácter absoluto do bem moral, os cristãos não estão sós:
encontram confirmação no sentido moral dos povos e nas grandes tradições
religiosas e sapienciais do Ocidente e do Oriente, não sem uma interior e
misteriosa acção do Espírito de Deus. Sirva de exemplo, a expressão do poeta
latino Juvenal: «Considera o maior dos crimes preferir a sobrevivência à honra
e, por amor da vida física, perder as razões de viver».147 A voz da consciência sempre invocou, sem
ambiguidades, a existência de verdades e valores morais, pelos quais se deve
estar pronto inclusive a dar a vida. Na palavra e sobretudo no sacrifício da
vida pelo valor moral, a Igreja reconhece o mesmo testemunho àquela verdade
que, já presente na criação, resplandece plenamente no rosto de Cristo:
«Sabemos — escreve S. Justino — que os seguidores das doutrinas dos estóicos
foram expostos ao ódio e mortos, quando deram prova de sabedoria no seu enunciado
moral (...) graças à semente do Verbo inscrita em todo o género humano».148
As normas morais universais e
imutáveis ao serviço da pessoa e da sociedade
95.
A doutrina da Igreja, e particularmente a sua firmeza em defender a validade
universal e permanente dos preceitos que proíbem os actos intrinsecamente maus,
é julgada frequentemente como sinal de uma intransigência intolerável,
sobretudo nas situações extremamente complexas e conflituosas da vida moral do
homem e da sociedade de hoje: uma intransigência que estaria em contraste com o
sentido materno da Igreja. Nesta, dizem, escasseiam a compreensão e a
compaixão. Mas, na verdade, a maternidade da Igreja nunca pode ser separada da
missão de ensinar que ela deve cumprir sempre como Esposa fiel de Cristo, a
Verdade em pessoa: «Como Mestra, ela não se cansa de proclamar a norma moral
(...) De tal norma, a Igreja não é, certamente, nem a autora nem o juiz. Em
obediência à verdade que é Cristo, cuja imagem se reflecte na natureza e na
dignidade da pessoa humana, a Igreja interpreta a norma moral e propõe-na a
todos os homens de boa vontade, sem esconder as suas exigências de radicalidade
e de perfeição».149
Na
realidade, a verdadeira compreensão e a genuína compaixão devem significar amor
pela pessoa, pelo seu verdadeiro bem, pela sua liberdade autêntica. E isto,
certamente, não acontece escondendo ou enfraquecendo a verdade moral, mas sim
propondo-a no seu íntimo significado de irradiação da Sabedoria eterna de Deus,
que nos veio por Cristo, e de serviço ao homem, ao crescimento da sua liberdade
e à consecução da sua felicidade. 150
Ao
mesmo tempo, a apresentação clara e vigorosa da verdade moral jamais pode
prescindir de um profundo e sincero respeito, animado por um amor paciente e
confiante, de que o homem sempre necessita na sua caminhada moral, tornada, com
frequência, cansativa pelas dificuldades, debilidades e situações dolorosas. A
Igreja, que jamais poderá renunciar ao «princípio da verdade e da coerência,
pelo qual não aceita chamar bem ao mal e mal ao bem», 151 deve estar sempre atenta para não partir
a cana já fendida e para não apagar a chama que ainda fumega (cf. Is 42,
3). Paulo VI escreveu: «Não diminuir em nada a doutrina salvadora de
Cristo constitui eminente forma de caridade para com as almas. Esta, porém,
deve ser sempre acompanhada da paciência e bondade, de que o próprio Senhor deu
exemplo ao tratar com os homens. Tendo vindo não para julgar mas para salvar (cf.
Jo 3, 17), Ele foi certamente intransigente com o mal, mas misericordioso
com as pessoas».152
96.
A firmeza da Igreja em defender as normas morais universais e imutáveis, nada
tem de humilhante. Fá-lo apenas ao serviço da verdadeira liberdade do homem:
dado que não há liberdade fora ou contra a verdade, a defesa categórica, ou
seja, sem concessões nem compromissos, das exigências absolutamente
irrenunciáveis da dignidade pessoal do homem, deve considerar-se caminho e
condição para a própria existência da liberdade.
Este
serviço é oferecido a cada homem, considerado na unicidade e irrepetibilidade
do seu ser e existir: só na obediência às normas morais universais, o homem
encontra plena confirmação da unicidade como pessoa e possibilidade de
verdadeiro crescimento moral. E, precisamente por isso, um tal serviço é
prestado a todos os homens: não só aos indivíduos, mas também à comunidade, à
sociedade como tal. Estas normas constituem, de facto, o fundamento inabalável
e a sólida garantia de uma justa e pacífica convivência humana, e, portanto, de
uma verdadeira democracia, que pode nascer e crescer apenas sobre a igualdade
de todos os seus membros, irmanados nos direitos e deveres. Diante das normas
morais que proíbem o mal intrínseco, não existem privilégios, nem excepções
para ninguém. Ser o dono do mundo ou o último «miserável» sobre a face da
terra, não faz diferença alguma: perante as exigências morais, todos somos
absolutamente iguais.
97.
Assim as normas morais, e primariamente as negativas que proíbem o mal,
manifestam o seu significado e a sua força, ao mesmo tempo, pessoal e social:
ao proteger a inviolável dignidade pessoal de cada homem, elas servem a própria
conservação do tecido social humano e o seu recto e fecundo desenvolvimento.
Particularmente os mandamentos da segunda tábua do Decálogo, lembrados também por
Jesus ao jovem do Evangelho (cf. Mt 19, 18), constituem as regras
primordiais de toda a vida social.
Estes
mandamentos são formulados em termos gerais. Mas, o facto de que «a pessoa
humana é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições
sociais», 153 permite precisá-los
e explicitá-los num código de comportamento mais pormenorizado. Neste sentido,
as regras morais fundamentais da vida social comportam exigências determinadas,
às quais se devem ater tanto as autoridades públicas, como os cidadãos.
Independentemente das intenções, por vezes boas, e das circunstâncias, amiúde
difíceis, as autoridades civis e os sujeitos particulares nunca estão
autorizados a transgredir os direitos fundamentais e inalienáveis da pessoa
humana. Assim, só uma moral que reconhece normas válidas sempre e para todos,
sem qualquer excepção, pode garantir o fundamento ético da convivência social,
tanto nacional como internacional.
A moral e a renovação da vida social e
política
98.
Perante as graves formas de injustiça social e económica e de corrupção
política, que gravam sobre povos e nações inteiras, cresce a reacção indignada
de muitíssimas pessoas oprimidas e humilhadas nos seus direitos humanos
fundamentais e torna-se sempre mais ampla e sentida a necessidade de uma
radical renovação pessoal e social, capaz de assegurar justiça, solidariedade,
honestidade, transparência.
É
certamente longa e dura, a estrada a percorrer; numerosos e ingentes são os
esforços a cumprir para levar a cabo uma tal renovação, inclusive pela
multiplicidade e gravidade das causas que geram e alimentam as situações de
injustiça hoje presentes no mundo. Mas, como ensina a história e a experiência
de cada um, não é difícil identificar na base destas situações, causas
propriamente «culturais», isto é, relacionadas com determinadas visões do
homem, da sociedade e do mundo. Na verdade, no âmago da questão cultural está o
sentido moral, que, por sua vez, se fundamenta e se realiza no sentido religioso.
154
99.
Só Deus, o Bem supremo, constitui a base irremovível e a condição
insubstituível da moralidade, e portanto dos mandamentos, em particular dos
negativos que proíbem, sempre e em todos os casos, o comportamento e os actos
incompatíveis com a dignidade pessoal de cada homem. Deste modo, o Bem supremo
e o bem moral encontram-se na verdade: a verdade de Deus Criador e Redentor e a
verdade do homem criado e redimido por Ele. Apenas sobre esta verdade é
possível construir uma sociedade renovada e resolver os complexos e gravosos
problemas que a abalam, sendo o primeiro deles vencer as mais diversas formas
de totalitarismo para abrir caminho à autêntica liberdade da pessoa. «O
totalitarismo nasce da negação da verdade em sentido objectivo: se não existe
uma verdade transcendente, na obediência à qual o homem adquire a sua plena
identidade, então não há qualquer princípio seguro que garanta relações justas
entre os homens. Com efeito, o seu interesse de classe, de grupo, de Nação
contrapõe-nos inevitavelmente uns aos outros. Se não se reconhece a verdade
transcendente, triunfa a força do poder, e cada um tende a aproveitar-se ao
máximo dos meios à sua disposição para impor o próprio interesse ou opinião,
sem atender aos direitos do outro (...) A raiz do totalitarismo moderno,
portanto, deve ser individuada na negação da transcendente dignidade da pessoa
humana, imagem visível de Deus invisível e, precisamente por isso, pela sua
própria natureza, sujeito de direitos que ninguém pode violar: seja indivíduo,
grupo, classe, Nação ou Estado. Nem tão pouco o pode fazer a maioria de um corpo
social, lançando-se contra a minoria, alienando, oprimindo, explorando ou
tentando destruí-la».155
Por
isso, a conexão indivisível entre verdade e liberdade — que exprime o vínculo
essencial entre a sabedoria e a vontade de Deus — possui um significado de
extrema importância para a vida das pessoas no âmbito sócio-económico e
sócio-político, como resulta da doutrina social da Igreja — a qual «pertence
(...) ao campo da teologia e, especialmente da teologia moral»,156 — e da sua apresentação de mandamentos
que regulam a vida social, económica e política, não só no que se refere a
atitudes gerais, mas também a precisos e determinados comportamentos e actos
concretos.
100.
Desta forma, o Catecismo da Igreja Católica, depois de ter afirmado que, «em
matéria económica, o respeito da dignidade humana exige a prática da virtude da
temperança, para moderar o apego aos bens deste mundo; da virtude da justiça,
para acautelar os direitos do próximo e dar-lhe o que é devido; e da
solidariedade, segundo a regra de ouro e conforme a liberalidade do Senhor, que
"sendo rico Se fez pobre para nos enriquecer com a Sua pobreza" (2
Cor 8, 9)», 157 apresenta
uma série de comportamentos e actos que vão contra a dignidade humana: o furto,
o reter deliberadamente coisas recebidas por empréstimo ou objectos perdidos, a
fraude no comércio (cf. Dt 25, 13-16), os salários injustos (cf.
Dt 24, 14-15; Tg 5, 4), o aumento dos preços, especulando sobre a
ignorância e a necessidade alheia (cf. Am 8, 4-6), a apropriação e o
uso privado dos bens sociais de uma empresa, os trabalhos mal executados, a
fraude fiscal, a falsificação de cheques e facturas, os gastos excessivos, o
desperdício, etc. 158 E ainda: «O
sétimo mandamento proíbe os actos ou empreendimentos que, seja por que motivo
for — egoísta ou ideológico, mercantil ou totalitário —, conduzam a escravizar
seres humanos, a desconhecer a sua dignidade pessoal, a comprá-los, vendê-los,
trocá-los como mercadoria. É um pecado contra a dignidade das pessoas e seus
direitos fundamentais reduzi-las, pela violência, a um valor utilitário ou a
uma fonte de lucro. S. Paulo ordenava a um amo cristão que tratasse seu
escravo, também cristão, "não como escravo, mas como irmão (...), como um
homem, no Senhor" (Flm 16)». 159
101.
No âmbito político, deve assinalar-se que a veracidade nas relações dos
governantes com os governados, a transparência na administração pública, a
imparcialidade no serviço das Instituições públicas, o respeito dos direitos
dos adversários políticos, a tutela dos direitos dos acusados face a processos
e condenações sumárias, o uso justo e honesto do dinheiro público, a recusa de
meios equívocos ou ilícitos para conquistar, manter e aumentar a todo o custo o
poder, são princípios que encontram a sua raiz primária — como também a sua
singular urgência — no valor transcendente da pessoa e nas exigências morais
objectivas de governo dos Estados. 160
Quando aqueles deixam de ser observados, esmorece o próprio fundamento da
convivência política e toda a vida social fica progressivamente comprometida,
ameaçada e votada à sua dissolução (cf. Sal 13 14, 3-4; Ap 18, 2-3. 9-24).
Após a queda, em muitos países, das ideologias que vinculavam a política a uma
concepção totalitária do mundo — sendo o marxismo, a primeira dentre elas —,
esboça-se hoje um risco não menos grave para a negação dos direitos
fundamentais da pessoa humana e para a reabsorção na política da própria
inquietação religiosa que habita no coração de cada ser humano: é o risco da
aliança entre democracia e relativismo ético, que tira à convivência civil
qualquer ponto seguro de referência moral, e, mais radicalmente, priva-a da
verificação da verdade. De facto, «se não existe nenhuma verdade última que
guie e oriente a acção política, então as ideias e as convicções políticas
podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder. Uma democracia sem
valores converte-se facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado, como a
história demonstra».161
Desta
forma, em qualquer campo da vida pessoal, familiar, social e política, a moral
— que se baseia sobre a verdade e na verdade se abre à autêntica liberdade —
presta um serviço original, insubstituível e de enorme valor não só para o
indivíduo e o seu crescimento no bem, mas também para a sociedade e o seu
verdadeiro progresso.
(Nota: Revisão da tradução para português por ama)
______________________________________________________
Notas (italiano):
130 Cf Summa Theologiae, I-II, q. 100, a.
1.
131 Esort. Ap. Post-sinodale Reconciliatio
et Paenitentia (2 dicembre 1984), 17: AAS 77 (1985), 221; cf Paolo VI,
Allocuzione ai membri della Congregazione del Santissino Redentore (settembre
1967): AAS 59 (1967), 962: «Si deve evitare di indurrre i fedeli a pensare
differentemente, come se dopo il Concilio fossero oggi permessi alcuni
comportamenti, che precedentemente la Chiesa aveva dichiarato intrinsecamente
cattivi. Chi non vede che ne deriverebbe un deplorevole relativismo morale, che
porterebbe facilmente a mettere in discussione tutto il patrimonio della
dottrina della Chiesa?»
132 Cost. past. Sulla Chiesa nel mondo
contemporaneo Gaudium et spes, 27.
133 Lett. enc. Humanae Vitae (25 luglio
1968), 14: AAS 60 (1968), 490-491.
134
Contra mendacium, VII, 18: PL 40, 528; cf S. Tommaso D’Aquino, Quaestiones
quodlibetales, XI, q. 7,a. 2; Catechismo della Chiesa Cattolica, nn. 1753-1755.
135
Conc. Ecum. Vat. II, Dich. Sulla libertà religiosa Dignitatis humanaei, 7.
136
Discorso ai partecipanti al Congresso internazionale di teologia morale (10
aprile 1986), 1: Insegnamenti IX, q. 7, a. 2; Catechismo della Chiesa
Cattolica, nn. 1753-1755.
137
Ibid. 2: l. c., 970-971.
138
Cf Conc. Ecum. Vat. II, Cost. past. Sulla Chiesa nel mondo contemporaneo
Gaudium et spes, 24.
139
Cf Lett. Enc. Redemptor hominis (4 marzo 1979), 21: AAS 71 (1979), 280-281.
140
Enarratio in Psalmum XCIX, 7: CCL 39, 1397.
141
Conc. Ecum. Vat. II, cost. dogm. sulla Chiesa Lumen gentium, 36; cf Lett. Enc.
Redemptor hominis (4 marzo 1979), 21: AAS 71 (1979), 316-317.
142
Missale Romanum, In Passione S. Ioannis Baptistae, Collecta.
143
S. Beda il Venerabile, Homeliarum Evangelii Libri, II, 23; CCL 122, 556-557.
144
Conc. Ecum. Vat. II, cost. past. sulla Chiesa nel mondo contemporaneo Gaudium
et spes, 27.
145
CAd Romanos, VI, 2-3: Patres Apostolici, ed. F. X. Funk, I, 260-261.
146
Moralia in Job, VII, 21, 24: PL 75, 778.
147
«Summun crede nefas animam praefette pudori / et propter vitam vivendi perdere
causas»: Satirae, VIII, 83-84.
148
Apologia II, 8: PG 6, 457-458.
149
Esort. ap. Familiaris consortio (22 novembre 1981), 33: AAS 74 (1982), 120.
150
Cfibid., 34: l. c., 123-125.
151
Esort. ap. post-sinodale Reconciliatio et Paenitentia (2 dicembre 1984), 34:
AAS 77 (1985), 272.
152
Lett. enc. Humanae vitae (25 luglio 1968), 29: AAS 60 (1968), 501.
153
Conc. Ecum. Vat. II, Cost. past. sulla Chiesa nel mondo contemporaneo Gaudium
et spes, 25.
154
Cf Lett. enc. Centesimus annus (1° maggio 1991), 24: AAS 85 (1991), 821-822.
155
Ibid., 44: l.c., 848-849; cf Leone XIII, Lett. enc. Libertas praestantissimum
(20 giugno 1888): Leonis XIII P.M. Acta, VIII, Romae 1889, 224-226.
156
Lett. enc. Sollicitudo rei socialis (30 dicembre 1987), 41: AAS 80 (1988), 571.
157
Catechismo della Chiesa Cattolica, n. 2407.
158
Cf ibid., nn. 2408-2413.
159
Ibid., n. 2414.
160
Cf Esort. ap. post-sinodale Christifideles laici (30 dicembre 1988), 42: AAS
81(1989), 472-476.
161
Lett. enc. Centesimus annus (1° maggio 1991), 46: AAS 83 (1991), 850.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.