22/03/2012

Bazar Paris

Navegando pela minha cidade

O Bazar Paris já não é o que era. Claro que eu também já não sou o que era, mas sempre que entro no Bazar Paris sou quase o que era e o facto dele nem quase o ser deixa-me como se tivesse partido um comboio de corda, uma caixa da Mecano ou perdido um anel sagrado, a minha aliança.

E foi com esta sensação de perda e profundamente irritado pelas tristíssimas máscaras de carnaval feitas na China que enchiam o Bazar Paris, vazio de clientes e daquilo que já não era, que atravessei a Rua Sá da Bandeira para a Praça D. João I e fui diretamente para a Praça engraxar os sapatos; como que querendo escovar uma nostalgia ou uma mancha de pó no coração.

Assentei-me em cima da almofada velha e suja que cobria o tampo de um banco de madeira e pousei o pé no suporte da caixa. Deixei então a memória entregue à sensação de perda; o olhar varrer a Praça e os sapatos nas mãos do engraxador.

Um bom bocado depois, e porque o engraxador nem uma só palavra tinha dito, olhei para ele. Debruçado sobre os meus sapatos tratava-os com o carinho de uma suave e doce enfermeira cuidando das feridas dos meus pés.

E aquela atitude de prostração a meus pés que, aparentemente, tão humilde torna um trabalho que como qualquer outro, pode ser sublime e nobre quando feito com a perfeição com que aquele o estava a ser, lembrou-me uma história passada com Nelson Mandela e o director dos Serviços Secretos da África do Sul – Niel Barnard.

 “Ninguém do aparelho de Estado do apartheid sabia mais do que se passava na política sul-africana do que Barnard, que tinha informadores um pouco por todo o lado, alguns até bem no seio do ANC. Era um homem perspicaz e discreto, um funcionário público dos quatro costados com o sentido do dever enraizado. Durante os doze anos em que se manteve à frente do NIS (National Intelligence Service – Serviço Nacional de Informação) sul-africano – organização que a CIA americana e o MI6 britânico aprenderam a respeitar, se não mesmo a adorar – tornou-se tão conhecido como Mandela quando ainda estava na prisão. Não havia homem em quem Botha mais confiasse.” [1]

É este homem que inicia intensas e secretas negociações com Mandela com o objectivo de levar a África do Sul a acabar com o iníquo regime do apartheid e a conduzir à realização de eleições democráticas.

Em 5 de Julho de 1989, finalmente, Mandela ia encontrar-se com o Presidente da República Pick W. Botha: “Cerca de uma hora mais tarde, quando o líder do ANC saiu da viatura e se preparava para entrar no domínio de Botha, Barnard – que o esperava – fez uma coisa extraordinária. Desejoso de que o seu recomendado fizesse o melhor efeito, ajoelhou-se em frente de Mandela e apertou-lhe os atacadores dos sapatos” [2].

Talvez por me ter lembrado desta história e por ter pensado que só homens com a elevada categoria moral de serem capazes de se ajoelharem diante de outros e de outros - com a mesma ou ainda maior categorial moral – se deixarem ajudar a fazerem melhor efeito – é que conseguem construir a paz; talvez tivesse sido por isso que, do alto do meu banco me debrucei sobre o engraxador e comecei a elogiar o seu trabalho: estão impecáveis; parecem novos; essas escovas são muito boas.

O engraxador nem reagiu; nada disse. Agora, no toque final esfregava com a tira de ganga - castanha de um lado e preta do outro - para apurar o brilho final e dar por terminado o seu trabalho. Eu insistia na tecla do elogio: bom trabalho; quanto tempo lhe dura um pano desses? Mais uma vez: nada. Nem olhou para mim.

Terminada a engraxadela, levantei-me e ele abriu dois dedos da mão direita fazendo um V para me dizer que eram dois euros. Só então me apercebi que, na minha distração com o Bazar Paris me tinha assentado no banco do engraxador que era surdo-mudo que eu bem conhecia. Ri-me interiormente e levantei o polegar da mão direita para lhe dizer que os sapatos estavam óptimos.

Então sim. Então, naquela cara muito envelhecida, cheia de rugas escuras e fundas e uma enorme verruga no nariz, abriu-se um grande sorriso.


Afonso Cabral






[1] John CarlinINVICTUS – O TRIUNFO DE MANDELA – Editorial Presença – Lisboa 2010 – págs. 66 e 67
[2] Ibid. pág. 74

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