07/11/2011

A turista e o engraxador

Navegando pela minha cidade
Há qualquer coisa de muito humilde em engraxar sapatos; em ser engraxador. 
Talvez este je ne sai quoi indefinido e intangível que aponta para a humildade, comece pelo nível (altitude) a que se trabalha. Que outra razão haverá para que os pilotos de avião tenham um status social elevado a não ser o de trabalharem em elevadas altitudes? Então não são eles apenas motoristas de autocarro? Sim, porque na verdade um avião não é mais do que um autocarro com asas.

Os pilotos de uma qualquer companhia de aviação conduzem um autocarro com asas a nove ou dez mil metros de altitude. O engraxador faz brilhar sapatos ao nível do chão. E é com os pés no chão que qualquer homem se firma e se afirma. E se a base - os pés bem calçados nuns sapatos bem engraxados – estiver bem tratada, prenuncia que o resto também o estará.

Aprendi o ritual de engraxar os sapatos com o meu Pai. Que importância tinha ir ao Café Avis num Domingo de manhã e tomar um café enquanto um dos engraxadores privativos do estabelecimento dava nova vida aos sapatos!

Aquelas caras sérias e marcadas pela vida dos engraxadores; aquelas cabeças de que, por estarem viradas para os sapatos – concentradas no trabalho – só se lhes via a parte de cima cheias de brilhantina; aquelas mãos polidas de tanto polirem que nos seus movimentos rápidos e mecânicos até se confundiam com os sapatos; aquelas grandes latas de graxa tão brilhantes que até pareciam de prata; aquele toquezinho na ponta do sapato indicando que o devia tirar do apoio e lá pôr o outro; aquelas tosses cavernosas de velhos fumadores; aquele final a fazer chiar o pano comprido no calcanhar e depois, para finalizar, fazê-lo estalar – tráz-tráz - no peito do pé era só para os mestres.

Tudo isto para dizer que os engraxadores sempre me inspiraram muito respeito e que os tenho em muito maior conta do que a qualquer piloto de avião.

O Sr. António, o último grande engraxador do Porto desapareceu há muitos meses. Recusava-se a cobrar mais de um euro e meio porque afasta os fregueses conforme dizia a quem lhe perguntava porque não cobrava dois euros como os outros. E quando lhe diziam que agora a vida está muito pior do que antes do vinte e cinco de Abril ele num tom muito baixo e calmo, levantava os seus olhos azuis e lacrimejantes e dizia: antigamente? Antigamente eu ia com o meu pai todos os dias à sopa na Trindade; era uma bicha de povo que dava quase a volta ao quarteirão. Não, não, agora nem é mau para quem não quer trabalhar.

Os que restam concentram-se na Praça da Liberdade aonde fui a semana passada numa manhã deste Outono que até parece Verão.

Bandos de turistas trazidos por pilotos da companhia de aviação Ryanair eram conduzidos pelos seus guias enquanto eu assentado num banco encostado à parede, via o engraxador a engraxar-me os sapatos e verificava se ele o estava a fazer com graxa neutra em vez de castanho para não escurecer demais os sapatos.

Quando levantei os olhos dos sapatos, verifiquei que estávamos – eu e o engraxador - a ser alvo de grande interesse e curiosidade de um bando de turistas cuja nacionalidade não consegui identificar, mas que eram europeus, talvez de um dos fragmentos da ex-Jugoslávia. Uns tiravam fotografias discretamente e menos discretamente; outros cochichavam e comentavam qualquer coisa olhando para nós os dois; ou talvez só para o engraxador.

A certa altura, quando o grupo já se estava a ir embora, uma rapariga magra, nova e séria, aproxima-se em passinhos curtos e hesitantes, discretos, baixa-se ao lado do engraxador e deposita junto à lata de graxa um montinho de moedas de vinte cêntimos e retira-se rapidamente.

O engraxador voltou a cabeça para ela que já ia a mais de três ou quatro metros, pára o movimento das mãos por cima dos meus sapatos e fica a olhar durante um bocado que pareceu imenso.

Depois olha para mim e eu olho para ele e rimos. Rimos talvez até mais por dentro. Rimos pelo equívoco; sorrimos pelo relativismo da riqueza.

Eu sorri pela generosidade de ambos: da turista e da do engraxador. Dela por ter dado e dele por ter aceitado.

Se este gesto não tivesse uma bondade intrínseca apetecer-me-ia ter-lhe perguntado se também iria pôr um montinho de euros no cockpit do piloto da Ryanair.

Afonso Cabral

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