A pessoa normal, corrente, morre tal qual como o mais importante ou notável dos homens. A sua alma apresenta-se perante o Juiz que lhe pergunta o que fez da sua vida.
"Estudei, trabalhei muito para sustentar a família e, de facto, não tive muito tempo livre para... Enfim... Para Deus!"
O Juiz permanece calado e a alma prossegue:
"Os meus filhos deram-me muito trabalho mas foi bem empregue, têm cada um o seu curso, um dos rapazes é engenheiro, o outro advogado e, a rapariga formou-se em medicina. Como deves saber, todos estão casados e são óptimos pais, pessoas equilibradas, trabalhadoras e competentes. Tenho muito orgulho na minha família".
Esta "sessão" do Tribunal caracteriza-se pelo monólogo. A alma fala de si, do que fez em vida, do que concretizou e fá-lo como se ignorasse que o Juiz sabe tudo, absolutamente tudo o que lhe diz respeito. É esta ignorância que, desde logo revela o distanciamento que tem de Deus, que provoca uma necessidade imperiosa de justificação e para tal alarga-se em detalhes e pormenores que pouco acrescentam.
O Juiz volta-se agora para os "assistentes" que, neste caso é apenas um: o Anjo da Guarda encarregado.
"Senhor, diz, o Manuel tem no activo uma vida de trabalho intenso e muito exigente. Quase sempre se portou bem e, as vezes que escorregou foi porque a tentação foi, de facto, muito forte e..." o Anjo emudece sem mais argumentos...
"Vejamos, então," começa o Juiz, "não trazes contigo mais que uma vida de trabalho e, por essa já foste recompensado em vida, recebeste bons ordenados, uma óptima morada, automóveis, férias em hotéis de luxo, viagens de distracção e prazer e outras compensações muitíssimo boas como os êxitos dos filhos. Sim já recebeste e, agora que pensas ter ainda a receber? Não me parece restar nada, já recebeste tudo!"
Faz-se silêncio o Anjo da Guarda avança novamente. Trava-se um diálogo com o Juiz:
"Senhor, daquela vez podia ter-se apropriado daquele dinheiro e... Não o fez".
"Sim, com efeito, mas isso não é fazer algo bom mas antes não praticar um acto mau".
"E daquela outra vez, naquela festa, na qual resistiu a aceitar mais uma bebida..."
"Isso foi uma atitude prudente para quem tinha de conduzir uns bons quilómetros no regresso a casa".
"Bem...houve aquela ocasião em que o convite implícito daquela mulher foi rejeitado e..."
O Juiz interrompe:
"O amor à esposa levou-o a ser fiel... Olha, diz ao Anjo, não argumentes com o que não fez de mal mas antes com o que praticou de bem".
A alma detém-se ora no Juiz ora no Anjo numa apreensão crescente. O à-vontade inicial desaparecera, a segurança com que iniciara o julgamento fora dando lugar a uma ansiedade desconhecida.
Começou, ela própria a fazer o exame que não fizera antes, e, a primeira conclusão a que chegou foi que nunca fizera um exame sobre os seus actos, a sua vida. Provavelmente, o Juiz que parecia saber tudo, consideraria o facto em seu desfavor.
Agora, o Anjo, calava-se de novo. Parecia sinceramente empenhado em favorecê-lo e, também, profundo conhecedor da sua vida.
Sim, lembrava-se vagamente de ouvir, em miúdo, a catequista falar destes personagens que acompanham a vida de cada um, mas realmente nunca tinha visto nenhum e, mesmo este, que parecia ser o seu "anjo privativo", nunca se apercebera da existência.
Estava um pouco aturdido porque estavam a passar-se muitas coisas que não conhecia nem entendia.
Não tinha a noção do tempo e embora parecesse que o julgamento durava há tempo considerável, vários sinais indicavam que se passara tão só um brevíssimo instante.
Seria o início da eternidade?
Sabia muito pouco – quase nada, aliás - sobre eternidade e coisas do género. Nas Missas de funerais, das várias a que assistira, ouvia dizer que Deus era amor, justo misericordioso e, se de facto era assim, certamente compreenderia que a sua total entrega ao trabalho não fora propriamente uma opção mas uma necessidade. Um estilo de vida, uma família, o estatuto, as obrigações sociais, enfim... um sem fim de exigências que o tinham mantido como que num turbilhão, uma lufa-lufa que aliás conduzira ao enfarto que o vitimara. Sim o Juiz compreenderia que não tinha culpa por se ter alheado de Deus. A verdade é que baptizara os filhos, também tinham feito a Primeira Comunhão - foram até ocasião para umas festas bem badaladas entre os familiares e amigos - ah! E os Crismas - seria esse o nome? - e os próprios casamentos celebrados com toda a pompa e circunstância em Igrejas lindamente enfeitadas com profusão de flores... Sim, afinal de contas, tinha muito a seu favor... Admirava-se de o Anjo não ter falado nisso... Porquê?
O Juiz não só sabia tudo a seu respeito como lia os pensamentos e, por isso, não ficou muito admirado quando as suas próximas palavras foram para se referir a isso mesmo:
"Repara bem, Manuel, tudo isso que fizeste foi muito bom, sem dúvida, mas totalmente vazio de sentido cristão, foram, no fim e ao cabo, meros actos sociais em que o religioso não passou do cumprimento de uma tradição e costume.”
As coisas estavam, definitivamente a correr mal e não conseguia lembrar-se de nada que pudesse inverter a situação.
O Juiz preparava-se para encerrar a audiência e, obviamente, proferir a sentença quando uma voz cristalina se fez ouvir: falta algo...
Fez-se um reverente silêncio e o semblante do Juiz deixou transparecer uma ternura incomensurável.
"Sim... Falta algo" repetiu o personagem.
O Manuel sempre usou a medalha do meu escapulário que lhe foi imposto em criança a instâncias do seu padrinho de Baptismo. Eu sei que este meu filho pouco se lembrava do motivo porque recebera o escapulário e o seu verdadeiro significado mas, o certo é que nunca deixou de o usar e, assim, quando a morte o surpreendeu.
Aqui estou, portanto, para cumprir a minha promessa de assistência nesta hora.”
O Juiz disse então:
"Como em Caná da Galileia fiz o que me pediu, faça-se agora como a Minha Mãe desejar".
ama, Novíssimos 2011.11.03
[i] Levanta-se a questão da vida para além da morte. É uma das grandes interrogações que alguma vez durante a sua vida o homem se coloca.
É natural porque o ser humano é dotado de espírito, alma, que tem preocupações mais para além do imediatamente sensível.
Para os cristãos a segurança da Fé fá-los compreender que está destinado à eternidade, ou seja, embora o corpo pereça e acabe a vida terrena, a sua alma não morrerá jamais e, naturalmente, tende a voltar para o seu Criador, Deus.
Sim... a lógica propõe o que a fé garante, porque não se concebe o Criador abandonar a criatura a um desaparecimento puro e simples.
O restante do problema é o que se refere ao "destino" da alma e que é "marcado" na conclusão do juízo a que é sujeita pelo próprio Criador, logo que, após a separação do corpo, se apresenta perante Si.
No imaginário livro da vida, ao contrário do que que é mais comum, não existem colunas de "deve" e "haver" onde é feita uma espécie de contabilidade, não! O que existe é uma lista completa dos bens recebidos em vida, os dons, graças, auxílios, inspirações e meios com que o Senhor foi dotando cada um de forma especial e única.
Cada ser humano recebe um "pacote" específico, para si em exclusivo.
Deus Nosso Senhor não dispensa os Seus benefícios adrede ou de uma forma sistemática ou mecânica. Cada ser humano é objecto de atenção exclusiva e única por parte do Criador que lhe concede os Seus dons e benefícios conforme a Sua Soberana Vontade determina.
Esta misteriosa magnitude de Deus tem uma razão de ser.
O homem não é capaz por si mesmo de evoluir, de melhorar sem que um estímulo o leve a tal.
Este estímulo surge exactamente no estreitamento das suas relações com Deus.
Quanto mais se relaciona mais recebe e, quanto mais se recebe mais se deseja intimar com Deus.
Por isso no Evangelho consta «àquele que tem, lhe será dado; e ao que não tem, ainda aquilo mesmo que julga ter, lhe será tirado» Lc 8, 16-18.
Para chegar a Deus, o caminho seguro, é Maria Sua e nossa Mãe!
Sancta Maria iter para tutum! (Santa Maria, prepara-me um caminho seguro)
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