Navegando pela minha cidade
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Um vulto humano vagueava cinzento e furtivo dentro daquela humidade toda em plena auto-estrada junto ao nó de Santo Ovídio. Eram cinco da tarde de um dia de Dezembro. Mal se via aquela cinza humana na cinza da chuva daquele fim de um Domingo cinzento e húmido.
O meu amigo que me contou isto, parou o carro em plena auto-estrada e obrigou aquela cinza humana a entrar, antes que ela desaparecesse debaixo da poalha de água levantada pelas rodas dos carros que passavam sem a ver.
Dois dos filhos pequenos que iam no banco traseiro, encolheram-se e emudeceram perante aquele homem encharcado e de olhos perdidos num nevoeiro de tristeza que se sentou ao lado deles.
Os vidros do carro mais embaciaram com a humidade que se evaporou daqueles cabelos e barbas desgrenhados e compridas; das roupas sujas e esfarrapadas; dos olhos que se fixavam perdidos na angústia; daquela humanidade crucificada na demência; das suas palavras incoerentes e perladas de gotas de água.
Depois de deixar a família em casa, este meu amigo levou aquele destroço humano ao único abrigo que conhecia, ao Albergue Nocturno que fica na rua dos Mártires da Liberdade.
Foi por lá ter passado ontem que me lembrei desta história e também de como aquele homem ali foi acolhido, alimentado e lá dormiu nessa noite.
Nessa noite, porque no dia seguinte partiu para continuar a sua viagem ao fim da noite[1].
Este albergue está ali desde 1881 e abriga actualmente cerca de oitenta pessoas com pensão completa. Muitos são os voluntários que trabalham neste abrigo. Na porta principal daquela grande casa há uma pequena ranhura e sobre ela uma chapa esmaltada que diz: ALBERGUES NOCTURNOS DO PÔRTO – ESMOLAS – O VOSSO AUXILO É PRECIOSO (sic).
Quem dá precisa sempre de mais para mais dar, e por isso pede como um pedinte, fazendo brilhar a dádiva com adjectivos que se aplicam a jóias. E são-no de facto.
Esta rua, depois de décadas de decadência, começa agora a renascer pela progressão da movida portuense. E por isso, várias casas há muito abandonadas, estão a ser restauradas e a renascer entre outras entaipadas e cheias de posters publicitando dezenas de actividades artísticas.
Num deles, uma rapariga sorri levemente tendo ao colo um pequeno monstro em carne viva com um olho aflitivamente aberto diz: KEEP IT YOURS; outro diz simplesmente: DREAM THEATER. Mas do que mais gostei foi o que anunciava em azul a FEIRA DO LIVRO ANARQUISTA.
[Dedicamos um dos dias à crítica do desenvolvimento que o capitalismo e o Estado tentam impor. Partindo dos seus projectos e das suas investidas contra a Natureza e os locais onde vivemos, queremos discutir formas de travar esse “progresso” e passarmos nós ao ataque. Noutro dia questionamos as recentes manifestações de descontentamento nas ruas reflectindo sobre os caminhos que nos poderão levar a uma ruptura com o Estado e com a economia. Duas questões, que embora separadas, se cruzam inevitavelmente. Procuramos estimular a luta, a solidariedade e a reflexão como forma de ataque às várias faces da autoridade].
E gostei porque reflecte o inconformismo; a ruptura com o aburguesamento; a insatisfação e um anseio de libertação de um Estado sufocante.
Mas não é mais do que isso, porque o anarquismo nunca apresentou alternativas e sempre se esgotou nos meios. É o combate pelo combate. Basta-se a si próprio.
Quanto à invocada solidariedade seria melhor que a procurassem, nessa mesma rua, no Albergue Nocturno, no nº 237.
Afonso Cabral
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