Navegando pela minha cidade
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O certo é que lá tive de ir (ao tal gabinete da Segurança Social) para tratar de um assunto.
Para não apanhar a senha nº 253 e o atendimento ir na nº 57, saí cedo de casa para no caminho tomar um café rápido ao balcão de uma confeitaria qualquer.
E foi exactamente quando estava a entrar na Confeitaria Nobreza – e aqui começa falta dela - que ouvi o empregado do balcão dizer a uma cliente conhecida dele: morreu mais um adepto do Benfica! e começa a rir de gozo amarelo envelhecido.
Foi assim como fiquei a saber que uma unidade de elite do exército americano, ao fim de quase dez anos, tinha capturado e morto o Osama bin Laden.
E assim somos nós, portugueses. Diante da notícia da morte da mais recente incarnação do mal; do responsável máximo por tanto ódio; tanto sofrimento; tanta injustiça e tanta esperança inocente ceifada numa sangueira de matadouro global, gozamos em futebolês.
“ O entorpecimento da consciência tem consequências imediatas no pensamento que, por seu turno, entorpece sem remorsos. Por isso se diz que se pensa pouco em Portugal. Há como que uma ligeira estupidez reinante, um vapor de burgessismo que se nos cola à pele … O que é a grosseria? Resulta do esforço e da impossibilidade de dar forma a um fundo visceral sem forma… O pior, na grosseria, não é a ruína da forma, mas a arrogância em julgar-se forma: violência característica do burgesso; o qual, por isso, não chega a destruir completamente a forma, erigindo os seus borborigmos em linguagem única e livre” [i]
A frase com que fui informado sobre a morte de Bin Laden é paradigmática do burgessismo descrito pelo José Gil. Mas precisei de saber exactamente o que é que ele queria dizer com borborigmos pois não sabia o significado da palavra. E para isso fui ao dicionário.
Fiquei a saber que o empregado da confeitaria não tinha falado, tinha antes produzido um ruído por gases nos intestinos e dei total razão ao José Gil.
E o horror das explosões que só deixam sangue que jamais será estancado; pó que jamais será limpo e dor que jamais será suavizada, é traduzido em gozo.
Pequenino gozo que convive com pequeninos ódios. Ódio que se fomenta, que vive larvarmente e se exprime no futebolês das claques e dos adeptos que se enforcam com cachecóis azuis e brancos onde se pode ler em grandes letras: TODA A MERDA É BENFICA; BENFICA: ÓDIO ETERNO; FILHOS DA PUTA SLB; BENFICA ODEIO-TE. [ii]
Quando toda uma indústria de marketing e confecção vive da exploração do sentimento do ódio, pode-se perguntar: o que fariam com o poder do Bin Laden? Ou: o ódio grande não será o somatório de milhares de pequeninos ódios?
Irónica e tristemente não me posso esquecer que o livro GUERRA SEM FIM (Prémio Pulitzer) do repórter de guerra Dexter Filkins sobre reportagens no Afeganistão e no Iraque começa exactamente assim: Levaram o homem para um lugar situado no meio de um campo. Um campo de futebol, erva, mas principalmente terra na parte central, onde os jogadores passavam a maior parte do jogo. [iii]
Afinal, o mal é só um conceito abstracto ou é sempre a concreta negação do bem, seja ele muito pequeno ou muito grande?
Afinal, onde está a nossa liberdade? O livre arbítrio? A nossa escolha?
Penso que - como tudo na natureza - nada nasce grande. Tudo nasce pequeno e, se se deixar, cresce e cresce. Seja o ódio… seja o amor.
Afonso Cabral
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