02/03/2011

A saudade (Afonso Cabral)


Navegando pela minha cidade
Selma Lagerlof (1858-1940) – Nobel da Literatura – escreveu um belíssimo e pungente livro intitulado A Saudade de João, Imperador (de Portugal) onde conta como um pai que tinha encontrado o sentido da vida com o nascimento da sua filha, acabou por enlouquecer de saudade depois de ela ter saído de casa e acabado por se prostituir. Nunca aquele pai aceitou as poucas notícias da sua filha a quem tinha dado o nome de Clara Aurélia. Ele achou que quem lhe tinha iluminado a existência fria e desesperada vivida até então, só podia ter um nome brilhante como o sol.
A saudade pode enlouquecer. Na verdade, quando nos deixamos dominar pela tristeza acabamos por não podermos viver sem ela e com o seu exigente cortejo de consolações; que sempre aviltam e empobrecem a nobreza humana.
Vem isto a propósito de uma pequena rua da minha cidade que se chama Rua da Saudade. Nasce na Rua Júlio Dinis - outro escritor – e acaba no pequeno Largo da Paz. Esta rua não tem mais de cinquenta metros e absolutamente nenhum interesse, excepto o nome. É daquelas ruas que só valem pelo nome. E que nome! E que estranho desígnio toponímico que a fez morrer no Largo da Paz; outro grande nome só por si. Mas não há também tanta gente que só tem o nome? E que vive convencida que o nome é o que a define e não o contrário? Na pergunta feita por Julieta a Romeu: What’s in a name? that wich we call a rose by any other name would smell as sweet[1], temos uma bela resposta.
Mas o sentimento da saudade pode traduzir-se em suave alegria e muitas vezes mais não é do que uma recordação daquilo que foi bom ou belo. Pois ninguém tem saudades do mau ou do feio. E assim, a recordação de um amor; de uma amizade; ou de uma época da vida há-de ser sempre um suave e doce sentimento. Como uma sonata de Beethoven.
Talvez a permanente inquietação e necessidade de superação inerente à natureza humana, seja o reflexo de uma saudade cósmica, um genético sentimento de perda por aquilo que já tivemos quando fomos criados. Que já tivemos e que perdemos.
Gosto de pensar que Deus também tem saudades nossas, porque gostou muito do que criou e gostou muito de viver connosco, apesar de O termos crucificado. Porque o Amor não tolera defeitos ou diminuições no objecto amado, e havendo-os transforma-os, sublima-os e desculpa-os.
O pai da Clara Aurélia, louco de saudade, quando ouviu a palavra monstruosa que lhe disseram sobre a sua filha, disse cheio de amor e sublime dignidade em estilo apocalíptico: “Quando surgir neste ancoradouro a Imperatriz Clara Aurélia de Portugal, com a coroa sobre a cabeça e virdes sete reis a segurarem-lhe a cauda e sete leões domesticados a seus pés e setenta e sete marechais atrás dela, todos de espadas desembainhadas, veremos então se te atreves a falar como hoje, Pratsber”[2].
Deus não nos ameaçou com a Sua vinda. Deus amou-nos tanto, perdoou-nos tanto e tem tantas saudades nossas que – numa imensa alegria – nos disse: Então verão o Filho do Homem vir sobre uma nuvem com grande poder e majestade. Quando começarem, pois, a suceder estas coisas, erguei-vos e levantai as vossas cabeças, porque está próxima a vossa libertação.[3]

Afonso Cabral

















[1] William Shakespear – Romeo and  Juliet
[2] Selma Lagerlof – A Saudade de João, Imperador – Editorial O SECULO – pág. 114
[3] Lc, 21, 28

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