“Sepultados com Ele no baptismo, foi também com Ele que ressuscitastes”. [1]
Amados irmãos e irmãs!
A Quaresma, que nos conduz à celebração da Santa Páscoa, é para a Igreja um tempo litúrgico muito precioso e importante, em vista do qual me sinto feliz por dirigir uma palavra específica para que seja vivido com o devido empenho. Enquanto olha para o encontro definitivo com o seu Esposo na Páscoa eterna, a Comunidade eclesial, assídua na oração e na caridade laboriosa, intensifica o seu caminho de purificação no espírito, para haurir com mais abundância do Mistério da redenção a vida nova em Cristo Senhor. [2]
1. Esta mesma vida já nos foi transmitida no dia do nosso Baptismo, quando, “tendo-nos tornado partícipes da morte e ressurreição de Cristo” iniciou para nós “a aventura jubilosa e exaltante do discípulo”. [3]
São Paulo, nas suas Cartas, insiste repetidas vezes sobre a singular comunhão com o Filho de Deus realizada neste lavacro. O fato que na maioria dos casos o Baptismo se recebe quando somos crianças põe em evidência que se trata de um dom de Deus: ninguém merece a vida eterna com as próprias forças. A misericórdia de Deus, que lava do pecado e permite viver na própria existência «os mesmos sentimentos de Jesus Cristo», é comunicada gratuitamente ao homem.
O Apóstolo dos gentios, na Carta aos Filipenses, expressa o sentido da transformação que se realiza com a participação na morte e ressurreição de Cristo, indicando a meta: que assim eu possa “conhecê-lo, a Ele, à força da Sua Ressurreição e à comunhão nos Seus sofrimentos, configurando-me com a Sua morte, para ver se posso chegar à ressurreição dos mortos”. [4] O Baptismo, portanto, não é um rito do passado, mas o encontro com Cristo que informa toda a existência do baptizado, doa-lhe a vida divina e chama-o a uma conversão sincera, iniciada e apoiada pela Graça, que o leve a alcançar a estatura adulta de Cristo.
Um vínculo particular liga o Baptismo com a Quaresma como momento favorável para experimentar a Graça que salva. Os Padres do Concílio Vaticano II convidaram todos os Pastores da Igreja a utilizar «mais abundantemente os elementos baptismais próprios da liturgia quaresmal» [5]. De facto, desde sempre a Igreja associa a Vigília Pascal à celebração do Baptismo: neste Sacramento realiza-se aquele grande mistério pelo qual o homem morre para o pecado, é tornado partícipe da vida nova em Cristo Ressuscitado e recebe o mesmo Espírito de Deus que ressuscitou Jesus dos mortos. [6]
Este dom gratuito deve ser reavivado sempre em cada um de nós e a Quaresma oferece-nos um percurso análogo ao catecumenato, que para os cristãos da Igreja antiga, assim como também para os catecúmenos de hoje, é uma escola insubstituível de fé e de vida cristã: deveras eles vivem o Baptismo como um ato decisivo para toda a sua existência.
2. Para empreender seriamente o caminho rumo à Páscoa e nos prepararmos para celebrar a Ressurreição do Senhor – a festa mais jubilosa e solene de todo o Ano litúrgico – o que pode haver de mais adequado do que deixar-nos conduzir pela Palavra de Deus? Por isso a Igreja, nos textos evangélicos dos domingos de Quaresma, guia-nos para um encontro particularmente intenso com o Senhor, fazendo-nos repercorrer as etapas do caminho da iniciação cristã: para os catecúmenos, na perspectiva de receber o Sacramento do renascimento, para quem é baptizado, em vista de novos e decisivos passos no seguimento de Cristo e na doação total a Ele.
O primeiro Domingo do itinerário quaresmal evidencia a nossa condição dos homens nesta terra. O combate vitorioso contra as tentações, que dá início à missão de Jesus, é um convite a tomar consciência da própria fragilidade para acolher a Graça que liberta do pecado e infunde nova força em Cristo, caminho, verdade e vida. [7] É uma clara chamada a recordar como a fé cristã implica, a exemplo de Jesus e em união com Ele, uma luta «contra os dominadores deste mundo tenebroso»[8], no qual o diabo é activo e não se cansa, nem sequer hoje, de tentar o homem que deseja aproximar-se do Senhor: Cristo disso sai vitorioso, para abrir também o nosso coração à esperança e guiar-nos na vitória às seduções do mal.
O Evangelho da Transfiguração do Senhor põe diante dos nossos olhos a glória de Cristo, que antecipa a ressurreição e que anuncia a divinização do homem. A comunidade cristã toma consciência de ser conduzida, como os apóstolos Pedro, Tiago e João, «em particular, a um alto monte», [9] para acolher de novo em Cristo, como filhos no Filho, o dom da Graça de Deus: «Este é o Meu Filho muito amado: n’Ele pus todo o Meu enlevo. Escutai-O»[10].
É o convite a distanciar-se dos boatos da vida quotidiana para se imergir na presença de Deus: Ele quer transmitir-nos, todos os dias, uma Palavra que penetra nas profundezas do nosso espírito, onde discerne o bem e o mal [11] e reforça a vontade de seguir o Senhor. O pedido de Jesus à Samaritana: “Dá-Me de beber”, [12] que é proposto na liturgia do terceiro domingo, exprime a paixão de Deus por todos os homens e quer suscitar no nosso coração o desejo do dom da “água a jorrar para a vida eterna” [13]: é o dom do Espírito Santo, que faz dos cristãos “verdadeiros adoradores” capazes de rezar ao Pai “em espírito e verdade”. [14] Só esta água pode extinguir a nossa sede do bem, da verdade e da beleza! Só esta água, que nos foi doada pelo Filho, irriga os desertos da alma inquieta e insatisfeita, “enquanto não repousar em Deus”, segundo as célebres palavras de Santo Agostinho.
O Domingo do cego de nascença apresenta Cristo como luz do mundo. O Evangelho interpela cada um de nós: ”Tu crês no Filho do Homem?”. “Creio, Senhor”, [15] afirma com alegria o cego de nascença, fazendo-se voz de todos os crentes. O milagre da cura é o sinal que Cristo, juntamente com a vista, quer abrir o nosso olhar interior, para que a nossa fé se torne cada vez mais profunda e possamos reconhecer n’Ele o nosso único Salvador. Ele ilumina todas as obscuridades da vida e leva o homem a viver como “filho da luz”.
Quando, no quinto Domingo, nos é proclamada a ressurreição de Lázaro, somos postos diante do último mistério da nossa existência: “Eu sou a ressurreição e a vida… Crês tu isto?”. [16] Para a comunidade cristã é o momento de depor com sinceridade, juntamente com Marta, toda a esperança em Jesus de Nazaré: “Sim, Senhor, creio que Tu és o Cristo, o Filho de Deus, que havia de vir ao mundo». [17]
A comunhão com Cristo nesta vida prepara-nos para superar o limite da morte, para viver sem fim n’Ele. A fé na ressurreição dos mortos a esperança da vida eterna abrem o nosso olhar para o sentido derradeiro da nossa existência:
A comunhão com Cristo nesta vida prepara-nos para superar o limite da morte, para viver sem fim n’Ele. A fé na ressurreição dos mortos a esperança da vida eterna abrem o nosso olhar para o sentido derradeiro da nossa existência:
Deus criou o homem para a ressurreição e para a vida, e esta verdade doa a dimensão autêntica e definitiva à história dos homens, à sua existência pessoal e ao seu viver social, à cultura, à política, à economia. Privado da luz da fé todo o universo acaba por se fechar num sepulcro sem futuro, sem esperança. O percurso quaresmal encontra o seu cumprimento no Tríduo Pascal, particularmente na Grande Vigília na Noite Santa: renovando as promessas babtismais, reafirmamos que Cristo é o Senhor da nossa vida, daquela vida que Deus nos comunicou quando renascemos “da água e do Espírito Santo”, e reconfirmamos o nosso firme compromisso em corresponder à acção da Graça para sermos Seus discípulos.
3. O nosso imergir-nos na morte e ressurreição de Cristo através do Sacramento do Baptismo, estimula-nos todos os dias a libertar o nosso coração das coisas materiais, de um vínculo egoísta com a “terra”, que nos empobrece e nos impede de estar disponíveis e abertos a Deus e ao próximo. Em Cristo, Deus revelou-se como Amor. [18] A Cruz de Cristo, a “palavra da Cruz” manifesta o poder salvífico de Deus, [19] que se doa para elevar o homem e dar-lhe a salvação: amor na sua forma mais radical. [20] Através das práticas tradicionais do jejum, da esmola e da oração, expressões do empenho de conversão, a Quaresma educa para viver de modo cada vez mais radical o amor de Cristo. O Jejum, que pode ter diversas motivações, adquire para o cristão um significado profundamente religioso: tornando mais pobre a nossa mesa aprendemos a superar o egoísmo para viver na lógica da doação e do amor; suportando as privações de algumas coisas – e não só do supérfluo – aprendemos a desviar o olhar do nosso «eu», para descobrir Alguém ao nosso lado e reconhecer Deus nos rostos de tantos irmãos nossos. Para o cristão o jejum nada tem de intimista, mas abre em maior medida para Deus e para as necessidades dos homens, e faz com que o amor a Deus seja também amor ao próximo. [21]
No nosso caminho encontramo-nos perante a tentação do ter, da avidez do dinheiro, que insidia a primazia de Deus na nossa vida. A cupidez da posse provoca violência, prevaricação e morte: por isso a Igreja, especialmente no tempo quaresmal, convida à prática da esmola, ou seja, à capacidade de partilha. A idolatria dos bens, ao contrário, não só afasta do outro, mas despoja o homem, torna-o infeliz, engana-o, ilude-o sem realizar aquilo que promete, porque coloca as coisas materiais no lugar de Deus, única fonte da vida.
Como compreender a bondade paterna de Deus se o coração está cheio de si e dos próprios projectos, com os quais nos iludimos de poder garantir o futuro? A tentação é a de pensar, como o rico da parábola: «Alma, tens muitos bens em depósito para muitos anos…». «Insensato! Nesta mesma noite, pedir-te-ão a tua alma…». [22] A prática da esmola é uma chamada à primazia de Deus e à atenção para com o próximo, para redescobrir o nosso Pai bom e receber a sua misericórdia.
Em todo o período quaresmal, a Igreja oferece-nos com particular abundância a Palavra de Deus. Meditando-a e interiorizando-a para a viver quotidianamente, aprendemos uma forma preciosa e insubstituível de oração, porque a escuta atenta de Deus, que continua a falar ao nosso coração, alimenta o caminho de fé que iniciamos no dia do Baptismo. A oração permite-nos também adquirir uma nova concepção do tempo: de facto, sem a perspectiva da eternidade e da transcendência ele cadencia simplesmente os nossos passos rumo a um horizonte que não tem futuro. Ao contrário, na oração encontramos tempo para Deus, para conhecer que “as suas palavras não passarão”, [23] para entrar naquela comunhão íntima com Ele “que ninguém nos poderá tirar” [24] e que nos abre à esperança que não desilude, à vida eterna.
Em síntese, o itinerário quaresmal, no qual somos convidados a contemplar o Mistério da Cruz, é «fazer-se conformes com a morte de Cristo», [25] para realizar uma conversão profunda da nossa vida: deixar-se transformar pela acção do Espírito Santo, como São Paulo no caminho de Damasco; orientar com decisão a nossa existência segundo a vontade de Deus; libertar-nos do nosso egoísmo, superando o instinto de domínio sobre os outros e abrindo-nos à caridade de Cristo. O período quaresmal é momento favorável para reconhecer a nossa debilidade, acolher, com uma sincera revisão de vida, a Graça renovadora do Sacramento da Penitência e caminhar com decisão para Cristo.
Queridos irmãos e irmãs, mediante o encontro pessoal com o nosso Redentor e através do jejum, da esmola e da oração, o caminho de conversão rumo à Páscoa leva-nos a redescobrir o nosso Baptismo. Renovemos nesta Quaresma o acolhimento da Graça que Deus nos concedeu naquele momento, para que ilumine e guie todas as nossas acções. Tudo o quanto o Sacramento significa e realiza, somos chamados a vivê-lo todos os dias num seguimento de Cristo cada vez mais generoso e autêntico. Neste nosso itinerário, confiemo-nos à Virgem Maria, que gerou o Verbo de Deus na fé e na carne, para nos imergir como ela na morte e ressurreição do seu Filho Jesus e ter a vida eterna.
Vaticano, 4 de Novembro de 2010
BENEDICTUS PP XVI
[1] (cf. Cl 2, 12)
[2] (cf. Prefácio I de Quaresma)
[3] (Homilia na Festa do Baptismo do Senhor, 10 de Janeiro de 2010)
[4] (Fl 3, 10- 11)
[5] (Const. Sacrosanctum Concilium, 109)
[6] (cf. Rm 8,)
[7] (cf. Ordo Initiationis Christianae Adultorum, n. 25)
[8] (Hb 6, 12)
[9] (Mt 17, 1)
[10] (v. 5)
[11] (cf. Hb 4, 12)
[12] (Jo 4, 7)
[13] (v. 14)
[14] (v. 23)
[15] (Jo 9, 35.38)
[16] (Jo 11, 25-26)
[17] (v. 27)
[18] (cf 1 Jo 4, 7-10)
[19] (cf. 1 Cor 1, 18)
[20] (cf. Enc. Deus cáritas est, 12)
[21] (cf. Mc 12, 31)
[22] (Lc 12, 19-20)
[23] (cf. Mc 13, 31)
[24] (cf. Jo 16, 22)
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