11/12/2010

Inquietação pelo Além

Ramiro Pellitero,
 
Instituto Superior de Ciências 

Religiosas, Universidade de Navarra

Disse-se que no fundo de todos os medos está o de morrer. Parece que actualmente se coloca a possibilidade de pôr num computador (download) a "configuração" e "preferências" pessoais, de modo que ficassem nalgum lugar …
Resistimos desaparecer do mundo e penetrar no desconhecido. Isto explica-se porque, por um lado, a vida proporciona-nos a experiencia de que todos morremos, e, por outra lugar, ninguém voltou do além para nos contar o que acontece. Alem disso, está a separação dos entes queridos.
Também no cinema actual, como na película "Para além da vida" (Hereafter, Clint Eastwood 2010), pergunta-se pelo que existe depois e pela comunicação com os que já morreram, só que sem nomear Deus; nalgum momento evoca-se a fé cristã, mas de um modo desligado e pouco convincente. Todavia, a inquietação continua de pé, e toda a película é disso testemunho.
"Talvez escreve Bento XVI na sua encíclica sobre a esperança (2007) – muitas pessoas rejeitam hoje a fé simplesmente porque a vida eterna não lhes parece algo desejável. De modo algum querem a vida eterna, mas sim a presente e, para tal, a fé na vida eterna parece-lhes ser um obstáculo". Quereriam, prossegue, adiar a morte o mais possível. Mas – argumenta – continuar vivendo sem fim seria antes uma condenação ou uma carga, algo aborrecido e insuportável.
Santo Agostinho, que tratou o tema, conclui que no fundo só queremos uma coisa, chame-se vida bem-aventurada ou, simplesmente, felicidade. Com palavras do Papa, "dalgum modo desejamos a própria vida, a verdadeira, a que no se veja afectada nem sequer pela morte". Desejaríamos eternizar "o momento pleno de satisfação, no qual a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade.... ou o momento do submergir-se no oceano do amor infinito, no qual o tempo – o antes e o depois – já não existe". Este momento seria "a vida em sentido pleno, submergir-se sempre de novo na imensidade do ser, ao mesmo tempo que estamos transbordantes de alegria".
A fé na vida do mais além não é, certamente, exclusiva do cristianismo. As religiões sustentam-na. O que é próprio da fé bíblica é a ressurreição dos mortos. Quer dizer, a fé em que, no fim do tempo e da história, recuperaremos os nossos corpos para sermos nós mesmos de novo; e, se superamos o exame sobre o amor (São João da Cruz), viver para sempre. Não se trata da reencarnação (tomar "outra" carne ou outra figura, viver a vida de outra pessoa), mas de tomar a nossa própria carne.
Na canção que Eric Clapton compôs para o seu filho de quatro anos – que em 1991 caiu de um 53º andar em New York – perguntava-lhe: "saberias o meu nome se te visse no Céu? ¿Seria a mesma coisa se nos encontrássemos no céu?" (Tears in Heaven). Sim, nós cristãos temos a esperança em que nos encontraremos com os seres queridos na comunhão da família de Deus, assim como esperamos numa justiça definitiva e na renovação do mundo.
É importante insistir em que a esperança cristã nada tem que ver com o individualismo. Já nesta vida – escreve Bento XVI – "nenhum ser humano é uma ilha fechada cerrada em si mesma. As nossas existências estão em profunda comunhão entre si, entrelaçadas umas com as outras através de múltiplas interacções. Ninguém vive sozinho. Ninguém peca sozinho. Ninguém se salva sozinho. Na minha vida entra continuamente a dos outros: no que penso, digo, me ocupo ou faço. E vice-versa, a minha vida entra na vida de dos outros, tanto no bem como no mal".
Alcançar a fonte do conhecimento e do amor. Entrar em comunhão pessoal com a Verdade e o Bem, a Beleza e a Vida plena, juntamente com todos os que chegaram  a ela numa mesma família. Daí que todas as expressões (visão de Deus "cara a cara", beleza inimaginável, novidade incessante…) fiquem aquém para falar do que nos espera. E não só nos espera como que se nos oferece já agora incoadamente por meio da Eucaristia.
A esperança cristã não é um consolo fácil, nem uma evasão dos compromissos daqui de baixo. Pelo contrário, implica a responsabilidade pelo mundo inteiro, até à cruz, com a serenidade e inclusive o gozo de quem sabe que todas as coisas, até as mais pequenas, podem tornar-se eternas pelo amor.
"A morte – escreveu Gustave Thibon – espera-nos, segundo a altura dos nossos desejos, como uma noiva ou como um verdugo, e de todos os actos da nossa alma só subsistirá a nossa participação naquilo que, por não proceder do tempo, no morrerá com ele. Cronos só devora os seus próprios filhos" (Nuestra mirada cega ante a luz, Rialp, 1973). E recolhe as palavras de Santa Catarina de Sena a uma pessoa acabrunhada pelo peso das tarefas temporais: "Somos nós que as fazemos temporais, porque tudo procede da bondade divina". Assim, conclui Thibon, "tudo o que não é eternidade recuperada, é tempo perdido".

(in Fluvium) (trad. AMA)

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