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15/04/2017

Leitura espiritual

A Cidade Deus
A CIDADE DE DEUS 


Vol. 2

LIVRO X

CAPÍTULO XXI

Acerca da ciência e da vontade eternas e imutáveis de Deus, em conformidade com as quais sempre lhe agradaram as obras que fez, tanto antes com o depois de as fazer.

Que se deve, na verdade, entender por esta frase repetida a propósito de tudo

Deus viu que isso era bom,[i]

senão a aprovação da obra realizada em conformidade com a arte que é a Sabedoria de Deus? Certamente que Deus não esperou acabar a sua obra para saber que ela era boa. Pelo contrário — nada teria feito se lhe fosse desconhecido. Para Ele, portanto, ver que a sua obra é boa — e se a não tivesse visto antes de a criar não a teria feito — não é aprender, mas ensinar-nos que é boa. E certo que Platão se atreveu a dizer que Deus exultou de alegria depois de ter acabado o Universo. Não era, todavia, tão louco que acreditasse que Deus com a novidade da sua obra se tornara mais feliz. Quis assim mostrar que esta obra, um a vez realizada, agradou ao seu artífice, tal qual como lhe tinha agradado no seu projecto antes de ser realizada. Não é que mude a ciência de Deus e opere nela de forma diferente o que ainda não é, o que já é e o que foi. Em Deus não há, como em nós, a previsão do futuro, a visão do presente e a recordação do passado, é totalmente diferente a sua m aneira de conhecer, ultrapassando, muito acima e de muito longe, os nossos hábitos mentais. Ele vê com um olhar absolutamente imutável, sem levar o seu pensamento de um objecto para outro. Por conseguinte, o que se passa no tempo compreende, certam ente, não só acontecimentos futuros que ainda não são, mas também presentes que já são e passados que já não são. Mas Ele abarca-os a todos na sua estável e sempiterna presença. Não os vê de forma diferente com os olhos do espírito pois não é com posto de corpo e alma. Nem agora de forma diferente de antes ou depois. Diferentemente do nosso, na verdade, o conhecimento que Ele tem dos três tempos — presente, passado e futuro — não está sujeito a mudança porque

nele não há vicissitude nem sombra de mudança2.[ii]

A sua atenção não passa de um pensamento para outro pensamento, mas ao seu olhar incorpóreo tudo o que sabe está simultaneamente presente. É que ele conhece os tempos sem qualquer representação temporal, assim como move o que está sujeito ao tempo sem sofrer qualquer movimento temporal.

Ele viu, pois, que a sua obra era boa precisamente quando viu que era bom realizá-la. E o facto de a ver, uma vez realizada, não dobrou nem aumentou a sua ciência com o se fosse menos sábio antes de criar o que veria; porque as suas obras não alcançariam toda a sua perfeição se não tivesse actuado por uma ciência de tal forma perfeita que a nenhuma delas nada poderia acrescer.

É por isso que, para nos ensinar que é o autor da luz, bastava dizer Deus fez a luz. E para nos ensinar, não apenas que a fez, mas também por que meio, bastaria anunciá-lo assim:

E disse Deus: Faça-se a luz e a luz fez-se.[iii]

Porque assim saberíamos que Deus fez a luz e que a fez pelo seu Verbo. Mas com o há três coisas a respeito das criaturas, dignas de serem conhecidas, que tinha de nos ensinar — quem a fez, por que meio a fez e porque a fez acrescenta:

E disse Deus: Faça-se a luz e a luz fez-se. E viu Deusque a luz era boa.[iv]

Se, portanto, perguntamos — quem a fez? Foi Deus; se perguntamos — por que meio a fez? Disse: Faça-se, e ela fez-se; se perguntam os — porque a fez? Porque é boa. Ora, não há autor mais perfeito do que Deus, nem arte mais eficaz do que o Verbo de Deus, nem causa melhor do que esta: o bem foi criado por um Deus bom! E o próprio Platão — quer porque o leu, quer, talvez, porque o aprendeu dos que o leram, quer porque o seu génio tão penetrante o levou a perceber pela sua inteligência as perfeições invisíveis de Deus através das realidades visíveis, quer porque o aprendeu dos que assim as tinham visto — considera justíssima esta razão da criação do mundo: que as obras sejam feitas por um Deus bom.


CAPÍTULO XXII

Dos que desprezam alguns dos seres do Universo, bem feitos pelo criador bom, e julgam que algumas naturezas são más.

Todavia, certos hereges não admitem esta causa, isto é, a bondade de Deus, que explica a criação dos seres bons, esta causa, repito, tão justa e tão conveniente que, considerada com cuidado e religiosamente m editada, põe termo a toda a controvérsia acerca da origem do mundo. E não a admitem porque há muitas coisas, tais como o fogo, o frio, os animais ferozes e outras deste teor que, quando se lhes faz oposição, ferem a pobre e frágil mortalidade desta carne, aliás, fruto de um justo castigo. Não reparam — quão cheias de vigor estão essas coisas na sua natureza e nos seus lugares próprios,

— em que bela ordem estão dispostas,

— que beleza conferem por suas proporções a todo o Universo como à sua com uma república,

— ou ainda que vantagens a nós próprios proporcionam se delas soubermos fazer um uso inteligente e apropriado: os próprios venenos, nocivos se tomados inconsideradamente, transformam-se em medicamentos salutares se aplicados com critério. Pelo contrário, mesmo as coisas com que nos deleitamos, como o alimento, a bebida e esta luz, tornam-se nocivas se usadas imoderada e inoportunamente. Por isso, nos adverte a Divina Providência para que não inculpemos à toa as coisas, mas indaguemos diligentemente a utilidade delas; e, quando falhar o nosso engenho ou a nossa debilidade, pensemos antes que essa utilidade está oculta como os segredos que dificilmente podemos descobrir. Porque o próprio segredo desta utilidade é uma provação para a nossa humildade ou uma mortificação para o nosso orgulho, pois uma natureza jamais é um mal e esta palavra mais não designa que uma privação de bem. Mas da Terra até ao Céu, do visível até ao invisível, há bens — uns superiores aos outros: tinham de ser desiguais para todos existirem. Mas Deus, que é um tão grande artífice nas coisas grandes, não o é menos nas pequenas, as quais se não devem medir pela sua grandeza (que é nula), mas segundo a sabedoria do seu autor. Assim, se se raspa um a só sobrancelha da face do homem, ao seu corpo bem pouco se tira mas quanto se tira à sua beleza! — porque esta não consiste no tamanho mas na semelhança e proporção dos membros.

Não é muito de admirar, com certeza, que aqueles que crêem na existência de um a natureza má, proveniente de e propagada por algum princípio contrário, se recusem a ver na bondade de Deus, autor dos seres bons, a causa da criação — preferindo crer que Deus foi levado a criar esta grande mole do Mundo pela extrema necessidade de repelir o mal que contra ele se levantava. E para o reprimir e superar, misturou ao mal a sua natureza boa, e esta, assim poluída da mais vergonhosa forma e oprimida pela mais cruel servidão, apenas pelo preço de pesados esforços consegue Deus purificá-la e libertá-la, não inteiramente, porém: mas a parte que não pôde ser purificada desta contaminação tornar-se-á envoltório e liame do inimigo vencido e aprisionado. Não teriam assim perdido o juízo os maniqueus, ou melhor, não teriam assim caído em delírio, se considerassem a natureza de Deus como ela é na realidade: imutável e absolutamente incorruptível, nada lhe podendo ser nocivo; e se a respeito da alma (que por sua vontade pode decair, pode corromper-se pelo pecado e ser assim privada da luz da verdade imutável), a considerassem com sentido cristão, não como uma parte de Deus nem da natureza de Deus, mas sim com o criada por ele, imensamente inferior ao seu Criador.



(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Gen., I, 4-10-12-18-21-25-30.
[ii] Tiago, I, 17.
[iii] Gen., I, 3.
[iv] Ibd.

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