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14/05/2016

Tratado da vida de Cristo 102

Questão 46: Da Paixão de Cristo

Art. 6 — Se a dor da paixão de Cristo foi maior que todas as outras dores.

O sexto discute-se assim. — Parece que a dor da paixão de Cristo não foi maior que todas as outras dores.

1. — Pois, a dor do paciente aumenta conforme a gravidade e a duração do sofrimento. Ora, certos mártires padeceram sofrimentos mais graves e mais longos do que Cristo; assim, Lourenço, assado em grelhas, e Vicente cujas carnes foram laceradas por unhas de ferro. Logo, parece que a dor dos sofrimentos de Cristo não foi a máxima.

2. Demais. — A força do espírito mitiga a dor, a ponto de os estoicos ensinarem que a alma do sábio não é susceptível de tristeza. E Aristóteles diz que a virtude moral faz conservar o justo meio nas paixões. Ora, Cristo teve a virtude perfeitíssima da alma. Logo, parece que Cristo sofreu a mínima das dores.

3. Demais. — Quanto mais sensível é um paciente, tanto maior é a dor da paixão. Ora, a alma é mais sensível que o corpo, pois, pela alma é que o corpo sente. E também, Adão parece ter tido, no estado de inocência, um corpo mais sensível que o de Cristo, que assumiu o corpo humano com as suas deficiências naturais. Logo, parece que a dor da alma padecente no purgatório ou no inferno, ou ainda a dor de Adão, se alguma sofreu, teria sido maior que a dor da paixão de Cristo.

4. Demais. — A perda de um maior bem causa uma dor maior. Ora, o pecador, pecando, perde um maior bem que Cristo, sofrendo, porque a vida da graça é melhor que a da natureza humana. Demais, Cristo, que perdeu a vida, havendo de ressurgir três dias depois, parece que perdeu um bem menor do que aqueles que perdem a vida, havendo de permanecer mortos. Logo, parece que a dor de Cristo não foi a máxima das dores.

5. Demais. — A inocência do paciente diminui a dor da paixão. Ora, Cristo sofreu inocentemente, segundo a Escritura: Eu era como um manso cordeiro que é levado a ser vítima. Logo, parece que a dor da paixão de Cristo não foi a máxima.

6. Demais. — Nada do que Cristo teve era supérfluo. Ora, uma dor mínima de Cristo bastaria para o fim da salvação humana, pois, teria uma virtude infinita, por causa da sua pessoa divina. Logo, foi supérfluo assumir a máxima das dores.

Mas, em contrário, a Escritura diz, da pessoa de Cristo: Atendei e vê-de se há dor semelhante à minha dor.

Como dissemos, quando tratamos das deficiências assumidas por Cristo, ele sofreu verdadeiramente a dor, na sua paixão. Tanto a sensível, causada pelos tormentos corpóreos, como a interior, causada pela apreensão do mal, que se chama tristeza. Ora, ambas essas dores foram máximas em Cristo, entre as dores da vida presente. O que se explica por quatro razões. Primeiro, pelas causas da dor. — Pois, a dor sensível teve como causa uma lesão corpórea cheia de acerbidade, tanto pela generalidade da paixão, de que já tratamos, como pelo género da mesma. Pois, a morte dos crucificados é acerbíssima, por serem trespassados em lugares nervosos e sobremaneira sensíveis, que são as mãos e os pés. E além disso, o próprio peso do corpo pendente aumenta a dor continuamente; acrescentando-se ainda a diuturnidade dela, pois, os crucificados não morrem logo como os mortos pela espada. — Quanto à dor interna teve as causas seguintes. Primeiro todos os pecados do género humano, pelos quais satisfazia com os seus sofrimentos; por isso como que os avocou a si, dizendo: Os clamores dos meus pecados. Segundo e especialmente, a culpa dos judeus e dos outros, que lhe infligiram a morte; e sobretudo a dos discípulos, que se escandalizaram com a paixão de Cristo. Terceiro, ainda, a perda da vida do corpo, naturalmente horrível à natureza humana. Em segundo lugar, a grandeza da dor pode ser considerada relativamente à sensibilidade do paciente. — Assim, o seu corpo tinha a melhor das compleições; pois, fora formado milagrosamente por obra do Espírito Santo. Porque nada é mais perfeito que o produzido por milagre, como nota S. João Crisóstomo, a propósito da água convertida em vinho por Cristo, nas bodas. Assim, o sentido do tacto, que serve para perceber a dor, era em Cristo extremamente delicado. — Também a alma, nas suas potências interiores, apreendia com grande eficácia todas as causas de tristeza. Terceiro, a grandeza da dor de Cristo na sua paixão, pode ser considerada quanto à pureza da mesma dor. Pois, nos outros pacientes, mitiga-se a tristeza interior e também a dor externa, pela reflexão racional, causando uma certa derivação ou redundância das potências superiores para as inferiores. O que não se deu na paixão de Cristo, pois a cada uma das potências permitia agir dentro do que lhe era próprio, como diz Damasceno. Em quarto lugar, a grandeza da dor de Cristo pode ser considerada quanto ao facto de ser a sua paixão e a sua dor assumidas voluntariamente, com o fim de livrar o homem do pecado. Por isso, assumiu uma dor tão grande, que fosse proporcional à grandeza do fruto dela resultante. Assim, pois, de todas essas causas simultaneamente consideradas resulta claro que a dor de Cristo foi a máxima das dores.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — A objecção colhe quanto a uma só das causas de sofrimento enumeradas, a saber, a lesão corpórea, causa da dor sensível, Mas, as outras causas aumentaram muito mais a dor de Cristo na sua paixão, como se disse.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A virtude moral não mitiga do mesmo modo a tristeza interior e a dor sensível externa, Assim, diminui directamente a tristeza interior, estabelecendo nela a mediação, como em matéria própria. Ao passo que a virtude moral constitui a mediação nas paixões, como estabelecemos na Segunda Parte, introduzindo nelas não uma quantidade real, mas uma quantidade proporcional, de modo que a paixão não ultrapasse a regra racional. E como os estoicos reputavam a tristeza totalmente inútil, por isso criam que ela se divorcia totalmente da razão e, por consequência, deve ser totalmente evitada pelo sábio, Mas, na verdade das causas, há uma certa tristeza digna de louvor, como o prova Agostinho: é a procedente de um amor santo, como quando nos entristecemos dos pecados próprios ou dos alheios, e também é considerada como útil quando tem por fim satisfazer pelas pecados, segundo aquilo do Apóstolo: A tristeza, que é segundo Deus, produz para a salvação uma penitência estável. Por isso Cristo, a fim de satisfazer pelos pecados de todos os homens, assumiu uma tristeza máxima pela sua quantidade absoluta, mas que não ultrapassava a regra racional. - Mas quanto à dor exterior do sentido, a virtude moral não a diminui directamente, porque essa dor não obedece à razão, mas resulta da natureza do corpo. Diminui-a, porém indirectamente pela redundância das potências superiores para as inferiores. O que não se deu com Cristo, como dissemos.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A dor da alma do padecente, separada, é própria do estado futuro de danação, que excede todos os males desta vida, como a glória dos Santos excede todos os bens da vida presente. Por isso, quando dizemos que a dor de Cristo foi máxima, não a comparamos com a dor da alma separada. - Quanto ao corpo de Adão, ele não podia sofrer se não tivesse pecado, tornando-se assim mortal e passível. E, sofrendo, padeceria menos que o corpo de Cristo, pelas razões referidas. — Donde também resulta que mesmo se, por impossível, considerássemos que Adão no estado de inocência sofreu, a sua dor teria sido menor que a de Cristo.

RESPOSTA À QUARTA. — Cristo não somente sofreu perdendo a vida do seu próprio corpo, mas também pelos pecados de todos os homens. Porque a dor de Cristo ultrapassou toda dor de qualquer paciente. Quer porque procedia de uma sabedoria e caridade maiores, que aumentam a dor do padecente; quer também porque sofreu simultaneamente por todos os pecados, segundo a Escritura: Verdadeiramente ele foi o que tomou sobre si as nossas fraquezas. — Mas a vida corporal de Cristo foi de tão grande dignidade, e, sobretudo, pela divindade que lhe estava unida, que sofreu mais, perdendo-a, mesmo momentaneamente, que qualquer outro homem perdendo a sua, por qualquer tempo que fosse. Donde o dizer o Filósofo, que o virtuoso tanto mais ama a sua vida, quanto mais a tem como melhor; e, contudo, a expõe pelo bem da virtude. E semelhantemente, Cristo, tendo uma vida amável por excelência, a expôs pelo bem da caridade, segundo a Escritura: Dei a minha amada alma às mãos de seus inimigos.

RESPOSTA À QUINTA. — A inocência do paciente diminui numericamente a dor da paixão; porque quando padece por culpa, sofre não só pela pena, mas também pela culpa; sendo inocente, porém, sofre só pela pena. Contudo a sua inocência aumenta-lhe a dor, porque sabe que não merece o mal que lhe é infligido. E por isso são tanto mais repreensíveis os que não se compadecem dele, conforme a Escritura: O justo perece e não há quem considere no seu coração.

RESPOSTA À SEXTA. — Cristo quis libertar o género humano dos pecados, não só pelo seu poder, mas ainda por justiça. Por isso, não só levou em conta a grandeza do poder que tinha a sua dor, em virtude da divindade que lhe estava unida, mas também o quanto bastava essa dor pela sua natureza humana, para tão grande satisfação.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.



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