Páginas

06/05/2014

Tratado dos vícios e pecados 81

Questão 87: Do reato da pena.

Art. 4 — Se ao pecado é devida uma pena quantitativamente infinita.

(II Sent., dist. XLII, a. 1, a. 5, ad 2; IV, dist. XLVI, q. 1, a. 3).

O quarto discute-se assim. — Parece que ao pecado é devida uma pena quantitativamente infinita.

1. — Pois, diz a Escritura (Jr 10, 24): Castiga-me, Senhor; porém seja isto segundo o teu juízo, e não no teu furor, para que não suceda que tu me reduzas a um nada. E a ira ou o furor de Deus significa metaforicamente a vindicta da justiça divina. Ora, ser reduzido ao nada é uma pena infinita, assim como é próprio de um poder infinito fazer uma coisa do nada. Logo, pela vindicta divina, o pecado é punido com pena infinita, quantitativamente.

2. Demais. — À quantidade da culpa corresponde a da pena, segundo a Escritura (Dt 25, 2): O número dos golpes regular-se-á pela qualidade do pecado. Ora, o pecado cometido contra Deus é infinito. Pois, tanto mais grave ele é quanto maior é a pessoa contra quem se peca; assim, é pecado mais grave ofender o príncipe do que um homem particular. Ora, como a grandeza de Deus é infinita, é devida uma pena infinita ao pecado contra ele cometido.

3. Demais. — O infinito pode sê-lo em duração e em quantidade. Ora, pela duração, a pena é infinita. Logo, também pela quantidade.

Mas, em contrário, se assim fosse, as penas de todos os pecados mortais seriam iguais, pois não pode um infinito ser maior que outro.

A pena é proporcionada ao pecado. Ora, nestes dois elementos devem considerar-se: Um, a aversão do bem imutável, que é infinito; e portanto, por este lado, o pecado é infinito. O outro é a conversão desordenada para o bem mutável. E por aí o pecado é finito, quer por ser finito esse próprio bem mutável, quer por ser também finita a conversão para ele, pois os actos da criatura não podem ser infinitos. Donde, no concernente à aversão corresponde-lhe a pena do dano, também infinita, por ser a perda de um bem infinito, Deus. No concernente à conversão desordenada, corresponde-lhes a pena do sentido, finita.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Não se coaduna com a justiça divina reduzir totalmente ao nada o pecador; pois isso repugna à perpetuidade da pena, exigida pela justiça divina, como já dissemos (a. 3). Mas se dize­mos que é reduzido ao nada quem fica privado dos bens espirituais, conforme (1 Cor 13, 2): se não tiver a caridade, não sou nada.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — A objecção colhe concernente à aversão; pois, por aí, o homem peca contra Deus.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A duração da pena corresponde à da culpa, não certo quanto ao acto, mas quanto à mácula, que, enquanto perdura, permanecerá o reato da pena. Mas a acerbidade da pena corresponde à gravidade da culpa. Ora, como em si mesma, a culpa irreparável há-de perdurar perpetuamente, é-lhe devida uma pena eterna. Mas no concernente à conversão desordenada, não tem infinidade, e portanto não lhe é devido, por aí, uma pena quantitativamente infinita.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


Tantos anos a lutar...

Surgiram nuvens negras de falta de vontade, de perda de entusiasmo. Caíram aguaceiros de tristeza, com a clara sensação de te encontrares atado. E, como remate, vieram os desânimos, que nascem de uma realidade mais ou menos objectiva: tantos anos a lutar... e ainda estás tão atrasado, tão longe! Tudo isso é necessário, e Deus conta com isso. Para conseguirmos o "gaudium cum pace" – a paz e a alegria verdadeiras – havemos de acrescentar à certeza da nossa filiação divina, que nos enche de optimismo, o reconhecimento da nossa própria fraqueza pessoal. (Sulco, 78)

Mesmo nos momentos em que percebemos mais profundamente a nossa limitação, podemos e devemos olhar para Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo, sabendo-nos participantes da vida divina. Nunca existe razão suficiente para voltarmos atrás: o Senhor está ao nosso lado. Temos que ser fiéis, leais, encarar as nossas obrigações, encontrando em Jesus o amor e o estímulo para compreender os erros dos outros e superar os nossos próprios erros. Assim, todos esses desalentos – os teus, os meus, os de todos os homens – servem também de suporte ao reino de Cristo.


Reconheçamos as nossas fraquezas, mas confessemos o poder de Deus. O optimismo, a alegria, a convicção firme de que o Senhor quer servir-se de nós têm de informar a vida cristã. Se nos sentirmos parte dessa Igreja Santa, se nos considerarmos sustentados pela rocha firme de Pedro e pela acção do Espírito Santo, decidir-nos-emos a cumprir o pequeno dever de cada instante: semear todos os dias um pouco. E a colheita fará transbordar os celeiros. (Cristo que passa, 160)

As sete palavras de Cristo na Cruz 6

Capítulo 1: Explicação literal da Primeira Palavra: «Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.» 5

Pois não sabem o que fazem. Para que sua oração seja razoável, Cristo diminui-se, ou, mais ainda, dá a desculpa que possa pelos pecados de seus inimigos. Ele certamente não podia desculpar a injustiça de Pilatos, ou a crueldade dos soldados, ou a ingratidão da gente, ou o falso testemunho daqueles que perjuraram. Então, não restou a Ele mais que desculpar-lhes a falta alegando ignorância. Pois com verdade o Apóstolo observa: “porque, se a tivessem conhecido, nunca teriam crucificado o Senhor da glória” 12. Nem Pilatos, nem os sumos sacerdotes, nem o povo sabiam que Cristo era o Senhor da Glória. Ainda assim, Pilatos o sabia um homem justo e santo, que fora entregue pela inveja dos sumos sacerdotes, e os sumos sacerdotes sabiam que Ele era o Cristo prometido, como ensina Santo Tomás, porque não podiam — nem o fizeram — negar que tinha operado muitos dos milagres que os profetas tinham predito que o Messias operaria. Enfim, a gente sabia que Cristo tinha sido condenado injustamente, pois Pilatos publicamente lhe dissera: “não encontrei nele culpa alguma” 13, e “Eu sou inocente do sangue deste justo” 14.

Mas, conquanto os judeus, tanto o povo como os sacerdotes, não soubessem o fato de que Cristo era Senhor da Glória, ainda assim não teriam permanecido neste estado de ignorância se sua malícia não os tivesse cegado. De acordo com as palavras de São João: “E, tendo ele feito tantos milagres em sua presença, não criam nele, para se cumprir a palavra do profeta Isaías, quando disse: [...] Obcecou-lhes os olhos e endureceu-lhes o coração para que não vejam com os olhos e não entendam com o coração, e não se convertam, e eu não os sare” 15.

são roberto belarmino

(Tradução: Permanência, revisão ama).
________________________________________________
Notas:
12. 1Cor 2,8.
13. Lc 23,14.
14. Mt 27,24.
15. Jo 12,37-40.
As sete palavras de Cristo na Cruz 7


Pequena agenda do cristão



Terça-Feira

(Coisas muito simples, curtas, objectivas)

Propósito: Aplicação no trabalho.

Senhor, ajuda-me a fazer o que devo, quando devo, empenhando-me em fazê-lo bem feito para to poder oferecer.

Lembrar-me: Os que estão sem trabalho.

Senhor, lembra-te de tantos e tantas que procuram trabalho e não o encontram, provê às suas necessidades, dá-lhes esperança e confiança.

Pequeno exame: Cumpri o propósito que me propus ontem?


Temas para meditar 97

Vocação

Não tenhas medo. Aqui radica o elemento constitutivo da vocação. O homem, de facto, teme. Teme não somente ser chamado ao sacerdócio, como também ser chamado à vida, às suas obrigações, a uma profissão, ao matrimónio. Este temor mostra um sentido de responsabilidade imatura. Há que superar o temor para aceder a uma responsabilidade madura: há que aceitar a chamada, escutá-la, assumi-la, ponderá-la segundo as nossas luzes, e responder: sim, simNão temas, não temas, pois encontraste a graça, não temas a vida, não temas a tua maternidade, não temas o teu matrimónio, não temas o teu sacerdócio, pois encontraste a graça.
Esta certeza, esta consciência ajuda-nos da mesma forma que ajudou Maria. Com efeito, ”a terra e o paraíso esperam pelo teu sim, oh Virgem Puríssima”. São palavras de São Bernardo, famosas e formosíssimas palavras. Espera o teu sim, Maria. Espera o teu sim, mãe que vais ter um filho; espera o teu sim, homem que deves assumir uma responsabilidade pessoal, familiar, social.
Esta é a resposta de Maria, a resposta de uma mãe, a resposta de um jovem: um sim para toda a vida.

(btº joão Paulo IIAlocução, 1982.03.25) 

Evangelho diário, comentário e leitura espiritual (Humildade)

Tempo de Páscoa

III Semana 


Evangelho: Jo 6, 30-35

30 Mas eles disseram-Lhe: «Que milagre fazes Tu, para que o vejamos e acreditemos em Ti? Que fazes Tu? 31 Nossos pais comeram o maná no deserto, segundo está escrito: “Deu-lhes a comer o pão do céu”». 32 Jesus respondeu-lhes: «Em verdade, em verdade vos digo: Moisés não vos deu o pão do céu, mas Meu Pai é que vos dá o verdadeiro pão do céu. 33 Porque o Pão de Deus é Aquele que desceu do céu e dá a vida ao mundo». 34 Então disseram-Lhe: «Senhor, dá-nos sempre desse pão». 35 Jesus respondeu-lhes: «Eu sou o pão da vida; aquele que vem a Mim não terá jamais fome, e aquele que crê em Mim não terá jamais sede.

Comentário:

A verdade é que o homem tem fome de Deus!

Pode não o saber exactamente, nem identificar o que é esse sentimento que por vezes o atormenta.

Essa insatisfação que não se explica.
O sentido de vazio que não entende.

Nesses momentos tem de fazer uma paragem, deter-se na sua agitação, cair em si e, se o fizer com o espírito aberto, sem preconceitos ou falsos critérios, então… encontrará:
Só Cristo sacia, preenche e justifica a vida humana!

(ama, comentário sobre Jo 6, 30-35, 2012.04.24)


Leitura espiritual





Temas para leitura espiritual







Humildade

A humildade mantém a direção da intencionalidade pessoal de fundo para o valor e para o amor, sem o qual até o que aparentemente é virtude pode não o ser na realidade.

1. A humildade como virtude moral

As virtudes morais são hábitos que gravam firmemente, na pessoa que as possui, os critérios reguladores das tendências humanas, de modo que os impulsos e os atos que procedem delas, nem excedam nem fiquem abaixo da medida requerida para o bem próprio e o bem dos outros. Como a sobriedade regula a tendência para a alimentação, e a castidade modera a tendência sexual, a humildade regula duas importantes tendências do indivíduo: a necessidade de reconhecimento e de estima dos outros, e o sentimento do próprio valor (autoestima) 1. São duas tendências que fazem parte da condição humana: existem em todo o ser humano, e não se podem nem devem suprimir-se, como também não é possível eliminar a alimentação e a tendência sexual. A sua real educação é extremamente importante para preservar o equilíbrio e o crescimento moral pessoal e, indiretamente, a boa ordem das relações interpessoais, pois as injustiças, a violência, os fracassos matrimoniais e os conflitos no campo profissional, para citar só alguns exemplos, são frequentemente consequência do orgulho, da suscetibilidade, ou do rancor. Também nas relações do homem com Deus a humildade desempenha um papel importante: a vida espiritual pressupõe uma ideia adequada da posição que o homem tem perante Deus.

A humildade tem sido muitas vezes mal interpretada e até considerada uma qualidade negativa e desprezível, própria de moral de escravos, ou o resultado do ressentimento dos fracos. Que alguém queira fazer passar por humildade formas falsas de compensar debilidades e desequilíbrios, é de facto perfeitamente possível, como é possível que se pretendam disfarçar comportamentos viciosos sob o nome de qualquer outra virtude (a prepotência pode dissimular-se sob o aspeto da dignidade ou da justiça e a cobardia como bondade, etc.). Mas isso, nada tem a ver com la humildade que responde à inegável necessidade de regular e educar duas tendências fundamentais que tem todo o ser humano.

2. Importância e tarefas da humildade

É possível investigar, historicamente e também a partir da análise teórica, qual tem sido a situação da humildade fora do cristianismo. Na antiguidade pagã a humildade era mais vista como um vício que como uma virtude, embora haja algumas exceções. Mas deixando de lado essa questão, é preferível parar para mostrar quais são as suas raízes antropológicas, antes de ver as formas próprias da humildade como virtude cristã.

A regulação ética das duas tendências a que se refere a humildade, consiste em ajustá-las à realidade de cada pessoa, considerando-a em si mesma ou vista no seu ambiente familiar, profissional e social, mas também na sua relação com Deus. Aristóteles assim o vê quando escreve: O que merece e pretende coisas pequenas, é modesto (...). Aquele que, sendo indigno, se julga a si mesmo digno de coisas grandes, é vaidoso (...) O que se julga menos digno do que vale, é pusilânime (fraqueza de ânimo ou cobardia), quer seja muito ou regular o que mereça, ou pouco e creia que merece ainda menos 2. O importante não é aspirar a muito ou a pouco, mas em cada caso ao que é razoável segundo uma apreciação objetiva e serena da realidade, não forçada pela paixão.

A humildade é importante, não tanto por realizar positivamente alguma das dimensões do bem humano, mas porque a ela lhe corresponde proteger as realizações do conhecimento, do amor, do trabalho, etc., de deformações, que podem privá-las do seu verdadeiro valor. O orgulhoso é egocêntrico e dificilmente é capaz de amar verdadeiramente; vê o trabalho profissional apenas como uma forma de autoafirmação, e não como uma modalidade de auto-transcendência que enriquece o mundo e contribui para o bem dos outros

É natural no homem a capacidade de olhar para si mesmo, como se olha para alguém que é portador de um valor. Do ponto de vista evolutivo, a percepção do próprio valor passa através do julgamento que merecemos ante os nossos semelhantes (pais, amigos, etc.). O ser humanos precisa de um certo reconhecimento alheio, e isso reflete a tendência que chamamos necessidade de autoestima. Com o desenvolvimento psicológico e moral, a pessoa, mesmo sem poder, nem dever, ser completamente indiferente às reações que o nosso ser ou o nosso comportamento causam nos outros, adquire uma maturidade de avaliação suficiente para formar uma imagem realista de si mesma e do próprio valor (autoestima), conhecendo as qualidades positivas e negativas, o que se é, e o que se pode chegar a ser. Na medida em que o sentimento do próprio valor depende de um juízo próprio, objetivo e realista, a pessoa pode representar adequadamente as suas relações com os outros (dependência - independência, liberdade - autoridade, etc.).

A deterioração da razoável direção (da humildade) pode afectar as duas tendências mencionadas: a necessidade de estima, quando a pessoa não adquire um distanciamento suficientemente equilibrado do julgamento dos outros; a autoestima quando, mesmo dispondo de suficiente autonomia de julgamento, este baseia-se sobre uma percepção pouco realista do próprio valor, seja por excesso, seja por defeito.

A dependência excessiva do julgamento dos outros dá origem a fenómenos como a ânsia de notoriedade, vaidade, teimosia e rigidez, isolamento, simulação de doença, etc. Todos eles implicam sofrimento para quem o padece, e muitas vezes, também para os outros. O desejo de notoriedade é típico de uma personalidade frágil e imatura que precisa de sentir-se, constantemente, aprovada e elogiada por aqueles que estão à sua volta. Busca satisfazer essa necessidade por todos os meios ao seu alcance: usa os seus bens, e instrumentaliza o seu saber e o seu trabalho, para conseguir o prestígio e a estima pública; ou quer dar que falar, mediante condutas chamativas ou mesmo absurdas; ou busca a aprovação do grupo, aceitando as ideias e os costumes dominantes, embora contrários às suas próprias convicções profundas. Outras vezes opta pela vaidade, ou seja, aparenta o que não é, adotando com esse objetivo comportamentos falsos ou pouco autênticos. Quando tem de trabalhar sob a autoridade de outros, ou em estreita colaboração com eles, chama a atenção sobre si mesmo mediante a teimosia, a intransigência ou a rigidez. Em casos extremos, busca a atenção ou o afeto dos outros, simulando uma doença e estando conscientes da astúcia, ou perdendo até essa consciência (fenómenos do tipo histérico). Quem sofre estas deformações acaba por arruinar as suas relações sociais e a sua sensibilidade ante os valores objetivos. A pessoa está sempre ocupada consigo mesma, porque o seu desordenado desejo de estima é insaciável. No outro extremo, tão pouco seria justo que uma pessoa não fosse suficientemente sensível ante as reações que produz nos outros, o que levaria a contínuas faltas de atenção, de respeito ou de educação.

O segundo problema ocorre quando o sentimento de autoestima depende de uma avaliação autónoma, mas não suficientemente realista. Surgem então os sentimentos, bastante irracionais de inferioridade e insegurança num extremo, ou no outro extremo de orgulho e autossuficiência. A personalidade do orgulhoso é diversa da condicionada pelo afã de notoriedade. Por detrás deste último fenómeno, apesar das aparências, esconde-se uma personalidade frágil e pobre, que frequentemente se tortura com comparações e invejas. O orgulhoso tem por sua vez uma personalidade dura, geradora de conflitos, com frequência agressiva ou violenta: julga tudo e todos (espírito crítico); pensa que tem sempre razão; sente-se superior a tudo e a todos; talvez recompense quem se lhe submete, mas dificilmente ama e se entrega a alguém; e apesar de temido dificilmente pode ser amado. Apenas se admira e respeita a si mesmo: tende para o narcisismo. O orgulhoso é muitas vezes susceptível ou arrogante. Tem conflitos com os outros e com a própria realidade, porque o seu nível de aspirações é superior às suas verdadeiras capacidades. Às vezes, as suas capacidades são realmente elevadas, mas falta-lhe a sabedoria para governar e evitar o que lhe vai subindo à cabeça.

Esta breve descrição mostra a importância da humildade para o equilíbrio e desenvolvimento pessoal, e também a sua dificuldade. A humildade mantém a direção da intencionalidade pessoal de fundo para o valor e para o amor, sem o qual até o que aparentemente é virtude pode não o ser na realidade. A dificuldade da humildade está em que as tendências que regula não se podem suprimir nem dominar com a vontade. Devem ser educadas, ou seja, ajustadas à realidade e abertas à participação, ao serviço e ao amor. Não é possível deixar, completamente, de se olhar a si mesmo, mas pode aprender-se a fazê-lo com uma mistura de realismo e sentido de humor, sobretudo sem que se oculte a percepção do que está fora e do que está por cima de nós, pois nessa dimensão adquire sentido tanto o que somos como o que não somos.

3. A virtude cristã da humildade

Não é possível deter-se no estudo dos muitos aspetos em que a humildade aparece no Antigo Testamento. A ideia predominante está ligada à profissão da fé em Deus, que nas suas intervenções na história dos homens abate os soberbos, enquanto escolhe e resgata os humildes e os que foram humilhados. É a ideia que reaparece no cântico de la Mãe de Jesus: o Senhor olhou para sua pobre serva, manifestou o poder do seu braço, desconcertou os corações dos soberbos. Derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes 3, assim como na Primeira Carta de S. Pedro e na de S. Tiago 4. Mas a razão de fundo dos ensinamentos do Novo Testamento sobre a humildade está em que Jesus Cristo andou pelos caminhos da humildade; que Ele mesmo Se propõe como exemplo quando diz: recebei a minha doutrina, porque Eu sou manso e humilde de coração 5, e que S. Pablo ilustra no hino de la Carta aos Filipenses 6. Esta dinâmica de humilhação e exaltação inspira os ensinamentos do Senhor quando convida a não escolher para si os primeiros lugares 7, na parábola do fariseu e do publicano 8, na exortação para sermos como meninos9, em diversos discursos polémicos contra os chefes do povo 10, e na recomendação de servir aos demais e não se deixar servir por eles 11.

O critério, segundo o qual a virtude cristã da humildade regula as tendências humanas de que vimos falando, continua a ser o da verdade. A humildade não tolera a falsidade acerca das próprias qualidades positivas ou negativas. Mas à luz dos ensinamentos do Senhor é possível compreender com maior exactidão qual é a nossa verdadeira posição ante Deus e ante os demais. O cristão está bem consciente de que tudo recebeu gratuitamente de Deus, tanto o ser e a vida, como a justiça e a graça. Com a sua doutrina acerca da justificação, S. Paulo põe em evidência que, vendo as coisas em toda a sua profundidade, não existe em nós nenhuma verdadeira justiça, senão aquela pela qual Deus mesmo nos faz justos por meio de Jesus Cristo. Nada temos que não tenhamos recebido 12. Somente nos podemos gloriar da Cruz de Cristo 13. Quaisquer que sejam as nossas obras, corresponde-nos assumir diante de Deus uma atitude, de profunda adoração e de amorosa gratidão, porque só em virtude da sua gratuita ação salvífica em Cristo podemos ser por Ele aceites. Qualquer atitude presumida e de autossuficiência nos privaria da sua graça e deixar-nos-ia encerrados na nossa pobre miséria. A humildade vem a ser assim a outra face do amor de Deus, a da caridade. O orgulhoso nem ama a Deus, nem consegue receber o amor que Deus lhe dá. Deo omnis gloria: para Deus toda a glória; isso significa que nada temos de bom que não venha de Deus, Verdade e Amor subsistente.

A humildade ensinada pelo Senhor é também o outro lado da caridade para com o próximo. Quem está consciente de ser nada diante da majestade de Deus, evita o orgulho e o desprezo dos outros, sabe compreender os outros, incluindo os seus erros. Somente alguém que pensa que nunca se equivocou, se horroriza com os erros dos outros (se os outros fossem como eu, as coisas não iriam tão mal). A humildade é em todo o caso verdade, verdadeiro conhecimento de si mesmo, e por isso não impede reconhecer as boas qualidades que se possuem, mas leva a não esquecer que foram recebidas de Deus como dons para pôr generosamente ao serviço dos outros. O Senhor condena a falsa humildade de quem esconde o talento recebido 14, que se devia ter feito frutificar ao serviço de Deus e dos demais. Essa fecundidade chega através da direção espiritual, onde o Espirito Santo modela a alma: sicut lutum in manus figuli 15 (como o barro nas mãos do oleiro). Os ensinamentos de S. Paulo acerca dos fortes e dos débeis na fé e na ciência 16 mostram, eloquentemente, que as próprias qualidades e até o bem precioso da legítima liberdade cristã, não se hão-de ver como barreira que nos protege das exigências dos demais, mas como um recurso que se põe gostosamente ao seu serviço. Cristo carregou sobre si o peso dos nossos pecados, entregando a sua vida por nós, e também assim nos deu o exemplo da humildade de coração.

Em termos práticos a humildade tem múltiplas manifestações, que não é possível tratar aqui em detalhe. Sobre elas escreveram coisas de grande valor os Padres da Igreja, os Santos e os que se têm ocupado ao longo da história da teologia espiritual. Para concluir estas reflexões, limitar-nos-emos a reproduzir uma página de S. Josemaria Escrivá, cuja eloquência torna inútil quaisquer comentário. Deixa-me que te recorde, entre outros, alguns sinais evidentes de falta de humildade:

- pensar que o que fazes ou dizes está mais bem feito ou mais bem dito do que o que os outros fazem ou dizem;
- querer levar sempre a tua avante;
- discutir sem razão ou, quando a tens, insistir com teimosia e de maus modos;
- dar a tua opinião sem ta pedirem ou sem a caridade o exigir;
- desprezar o ponto de vista dos outros;
- não encarar todos os teus dons e qualidades como emprestados;
- não reconhecer que és indigno de toda a honra e estima, inclusive da terra que pisas e das coisas que possuis;
- citar-te a ti mesmo como exemplo nas conversas;
- falar mal de ti mesmo, para fazerem bom juízo de ti ou te contradizerem;
- desculpar-te quando te repreendem;
- ocultar ao Director algumas faltas humilhantes, para que não perca o conceito que faz de ti;
- ouvir com complacência quem te louva, ou alegrar-te por terem falado bem de ti;
- doer-te que outros sejam mais estimados do que tu;
- negar-te a desempenhar ofícios inferiores;
- procurar ou desejar singularizar-te;
 - insinuar na conversa palavras de louvor próprio, ou que dão a entender a tua honradez, o teu engenho ou destreza, o teu prestígio profissional...;
 - envergonhar-te por careceres de certos bens... 17.

a. rodríguez luño
2012/03/16

Bibliografia básica:
Gioacchino Pecci (León XIII), A prática da humildade, Nebli, Madrid 2007.
S. Josemaria, Amigos de Deus, nn. 94-109.
S. Josemaria, Caminho, capítulo sobre a humildade (nn. 589-613).
Angel Rodríguez Luño, Ética General, 4ª ed., Eunsa, Pamplona 2001, pp. 163-164 (sobre as tendências reguladas pela humildade) e 250-253 (sobre a virtude da humildade) estas páginas não existem nas edições anteriores.
Enrique Colom - Angel Rodríguez Luño, Scelti in Cristo per essere santi. I. Morale fondamentale, 1ª ristampa della 3ª edizione, Edizioni Università della Santa Croce, Roma 2008, pp. 153-154 (sobre as tendências reguladas pela humildade; essas páginas não existem na 1ª e na 2ª edição italianas nem na edição em língua espanhola).
Angel Rodríguez Luño, Scelti in Cristo per essere santi. III. Morale speciale, Edizioni Università della Santa Croce, Roma 2008, pp. 333-337 (sobre a virtude da humildade).
Joseph Pieper, As virtudes fundamentais, Rialp, Madrid 1980, pp. 276-281

© ISSRA, 2009 (original em espanhol publicado em www.collationes.org)

 Nota: Revisão gráfica e da tradução por ama.
________________________________
Notas:
1 Era clássica a definição de humildade, como virtude que tem como objeto moderar o apetite (o desejo, a tendência) da própria excelência. Não é distinto do que se diz no texto, porque a própria excelência, refletida no juízo dos demais ou no próprio é o objeto das duas tendências mencionadas. S. Tomás de Aquino considera que a humildade está ligada à temperança, porque os desejos suscitados pela própria excelência têm necessidade sobretudo de freio e moderação, que é o formalmente caraterístico da temperança e das demais virtudes relacionadas com ela. Cfr. S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 161.
2 Aristóteles, Ética a Nicómaco, IV, 3:1123 b 5 ss.
3 Lc 1, 48;51-52.
4 Cfr. 1Pe 5, 5 e Tg 4, 6.
5 Mt 11,29.
6 (Fl 2, 5-11): Dedicai-vos mutuamente a estima que se deve em Cristo Jesus. Sendo Ele de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens. E, sendo exteriormente reconhecido como homem, humilhou-se ainda mais, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso Deus o exaltou soberanamente e lhe outorgou o nome que está acima de todos os nomes, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho no céu, na terra e nos infernos. E toda língua confesse, para a glória de Deus Pai, que Jesus Cristo é Senhor.
7 Cfr. Lc 14, 7-11.
8 Cfr. Lc 18, 9-14.
9 Cfr. Lc 18, 16-17.
10 Cfr. Mt 23.
11 Cfr. Mt 20, 24-28.
12 Cfr. 1 Cor 4, 4 e Rm 3, 27-28.
13 Cfr. Gl 6, 14.
14 Cfr. Mt 25, 24-28.
15 Jr 18, 6; cfr. 18, 1, 1-6.
16 Cfr. Rm 14 e 1 Co 8.
17 S. Josemaria, Sulco, n. 263.