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28/08/2014

Tratado da Graça 08

Questão 109

Art. 8 — Se o homem pode, sem a graça, não pecar.

(Supra, q. 63, a. 2, ad 2, q. 74, a. 3, ad 2, II Sent., dist. XX, q. 2, a. 3, ad 5, dist. XXIV, q. 1, a. 4, dist. XXVIII, a. 2, III Cont. Gent., cap. CLX, De Verit., q. 22, a. 5, ad 7, q. 24, a. 1, ad 10, 12, a. 12, 13, De Malo, q. 3, a. 1, ad 9, I Cor., cap. XII, lect. I, Ad Hebr., cap. X, lect. III).

O oitavo discute-se assim. — Parece que o homem pode, sem a graça, não pecar.

1. — Pois, ninguém peca, fazendo o inevitável, como diz Agostinho. Se portanto, o homem, em estado de pecado mortal, não pode evitá-lo resulta que, pecando, não peca. O que é inadmissível.

2. Demais. — O homem é punido afim de não pecar. Se pois, o estado de pecado mortal não pode deixar de pecar, resulta que é punido em vão. O que é inadmissível.

3. Demais. — A Escritura diz (Sr 15, 18): Diante do homem estão à vida e a morte, o bem e o mal, o que lhe agradar, isso lhe será dado. Ora, quem peca não deixa de ser homem. Logo, pode escolher entre o bem e o mal, e portanto, sem a graça evitar o pecado.

Mas, em contrário, diz Agostinho: Não duvido que por ninguém deve ser ouvido e deve ser por todos anatematizado quem nega que devemos orar, para não cairmos em tentação, pois, quem o faz nega seja necessário ao homem, para não pecar, o auxílio da graça de Deus, bastando só a vontade humana, com a aceitação da lei.

Podemos encarar o homem a dupla luz: no estado da natureza íntegra e no da natureza corrupta. — No primeiro, podia, mesmo sem a graça habitual, não pecar, nem mortal nem venialmente. Pois, pecar não é senão afastar-se do que é natural, o que o homem, no estado de natureza íntegra, podia evitar. Não o podia, porém, sem o auxílio de Deus que conserva no bem, pois, subtraído esse auxílio, a própria natureza voltaria ao nada.

No estado, porém, da natureza corrupta, o homem precisa da graça habitual, que restaura a natureza, para abster-se completamente do pecado. E essa restauração faz-se, primeiro, pelo espírito, no estado da vida presente, em que o apetite carnal ainda não está completamente purificado. Por isso, o Apóstolo, personificando o homem redimido diz (Rm 7, 25): Eu mesmo sirvo a lei de Deus segundo o espírito, e sirvo a lei do pecado, segundo a carne. E nesse estado, o homem pode abster-se de todo pecado mortal, que se funda no espírito, como já estabelecemos (q. 74, a. 5). Não pode, porém, livrar-se de todo pecado venial, por causa da corrupção do apetite inferior da sensualidade. Pois, a razão pode certamente reprimir-lhe cada um dos movimentos, em particular, sendo, por isso, que estes constituem essencialmente pecados e actos voluntários. Mas não reprimi-los a todos, porque, enquanto se esforça por resistir a um, pode surgir outro. E também porque a razão nem sempre pode estar vigilante para evitar tais movimentos, como já dissemos (q. 74, a. 3 ad 2).

Semelhantemente, antes de a razão humana, onde se radica o pecado mortal, ter sido reparada pela graça santificante, podia o homem evitar todo pecado mortal, num determinado tempo, pois, não havia, por força, de pecar, actual e continuamente. Não podia, porém, durante muito tempo permanecer sem pecado mortal. Por isso, Gregório diz: o pecado que não é logo detido pela penitência, arrasta, com o seu peso, para outro. E a razão disto é que, assim como o apetite inferior deve estar sujeito à razão, assim também a razão deve estar sujeita a Deus e colocar nele o fim da sua vontade. Ora, é necessariamente, pelo fim, que se hão-de reger todos os movimentos humanos, assim como, pelo juízo da razão, todos os movimentos do apetite inferior. Donde, não estando o apetite inferior totalmente sujeito à razão, hão-de surgir movimentos desordenados nesse apetite sensitivo, e assim também, não estando a razão humana totalmente sujeita a Deus, consequentemente, muitas desordens hão-de viciar-lhe os actos. Ora, o homem não tem o coração firmado em Deus, a ponto de não querer separar-se dele, por conseguir qualquer bem ou evitar qualquer mal, desprezando-lhe os preceitos. Por isso, peca mortalmente, e sobretudo porque, nos seus actos súbitos, obra de acordo com um fim preconcebido e um hábito preexistente, no dizer do Filósofo. Embora, com premeditação da razão, possa agir contrariamente à ordem do fim preconcebido e à inclinação do hábito. Mas como não pode viver em estado de contínua premeditação, não lhe é possível permanecer muito tempo sem agir de acordo com a vontade desordenadamente afastada de Deus, senão for, logo, reconduzido, pela graça, à ordem devida.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — O homem pode evitar cada um dos actos do pecado, singularmente, não, porém, todos, senão com o auxílio da graça, conforme já dissemos. E contudo, como é por falta sua, que não se prepara a receber a graça, não pode escusar-se do pecado, pois, sem a graça, é incapaz de evitá-lo.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A punição é útil para, com a dor que provoca, fazer nascer na vontade a regeneração. Contanto, que o punido seja filho da promessa, de modo que, simultâneo com o estrépito da mesma, que repercute exteriormente, e flagela, Deus mova a vontade, interiormente, com inspiração oculta, como diz Agostinho. Logo, a correcção é necessária, pois a vontade humana a exige, para poder abster-se do pecado, porém, não é suficiente, sem o auxílio de Deus. Por isso, a Escritura diz (Ecle 7, 14): Considera as obras de Deus, porque ninguém pode corrigir, a quem ele desprezou.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz Agostinho, o lugar citado da Escritura entende-se do homem, no estado da natureza íntegra, quando ainda não era escravo do pecado e podia portanto pecar e não pecar. No estado actual, porém, é-lhe dado tudo quanto quer, mas só com o auxílio da graça pode querer o bem.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


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