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18/06/2013

Tratado das paixões da alma 55

Questão 34: Da bondade e da malicia dos prazeres

Em seguida devemos tratar da bondade e da malícia dos prazeres.

E sobre esta questão quatro artigos se discutem:
Art. 1 ― Se todo prazer é mau.
Art. 2 ― Se todo prazer é bom.
Art. 3 ― Se há algum prazer melhor que todos os outros.
Art. 4 ― Se o prazer é a medida ou a regra do bem e do mal.

Art. 1 ― Se todo prazer é mau.

(IV Sent., dist. XLIX, q. 3, a. 4, qa. 1, VII Ethic., lect. XI, XII, X, lect. I, III, IV, VIII).

O primeiro discute-se assim. ― Parece que todo prazer é mau.


1. ― Pois, o que corrompe a prudência e impede o uso da razão é, em si, mau, porque o bem do homem é o que está de acordo com a razão, como diz Dionísio 1. Ora, o prazer corrompe a prudência e impede o uso da razão, e tanto mais quanto maiores são os prazeres, por isso, nos prazeres venéreos, que são os mais intensos, a nossa razão fica completamente abolida, como diz Aristóteles 2. E Jerónimo também diz, que não haverá a presença do Espírito Santo no momento em que se realiza o acto conjugal, mesmo se for um profeta o que exerça o acto da geração 3. Logo, todo prazer é mau.

2. Aquilo de que foge o virtuoso e que busca o de virtude deficiente parece que é em si mau e deve ser evitado, pois, como diz Aristóteles, o homem virtuoso é quase a medida e a regra dos actos humanos, e o Apóstolo diz (1 Cor 2, 15): o espiritual julga todas as coisas 4. Ora, as crianças e os animas, não susceptíveis de virtude, buscam os prazeres, que são evitados pelo homem sóbrio. Logo, os prazeres são, em si mesmos, maus e devem ser evitados.

3. Demais. ― A virtude e a arte versam sobre o difícil e o bom, como diz Aristóteles 5. Ora, nenhuma arte é ordenada para o prazer. Logo, este não é um bem.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Sl 36, 4): Deleita-te no Senhor. Ora, como a autoridade divina não pode induzir a nenhum mal, conclui-se que nem todo prazer é mau.

Conforme diz Aristóteles 6, alguns ensinaram que todos os prazeres são maus e isso porque consideravam só os prazeres sensíveis e corpóreos, os mais manifestos. Pois no mais, os antigos filósofos não distinguiam o inteligível do sensível nem o intelecto, dos sentidos, como diz ainda Aristóteles 7. E assim, pensavam que devemos considerar maus, todos os prazeres corpóreos, de modo que os homens, inclinados aos prazeres imoderados chegam ao termo médio da virtude, abstendo-se dos prazeres. ― Mas esta opinião não é admissível. Pois, como ninguém pode viver sem algum prazer sensível e corpóreo, se os que têm todos os prazeres como maus forem surpreendidos no gozo de alguns deles, os outros homens mais se inclinarão aos prazeres, pelo exemplo das obras, e abandonarão a doutrina. Porque, no tocante às obras e às paixões humanas, onde vale sobretudo a experiência, os exemplos movem mais que as palavras.

Logo, devemos dizer que certos prazeres são bons e alguns, maus. Pois, o prazer é o repouso da potência apetitiva nalgum bem amado e é consequente a alguma operação. E disto podemos dar duas razões. ― Uma funda-se no bem em que, descansando, nos deleitamos. Pois, o bem e o mal, na ordem moral é o que convém à razão ou discorda dela, como já dissemos 8, assim como, na ordem da natureza, chama-se natural o que convém à natureza, e inatural o que dela discorda. Ora, assim como na ordem natural há um certo repouso natural, a saber, o que convém à natureza, p. ex., quando os graves repousam na parte inferior, e há outro inatural, a saber, o que repugna à natureza, como quando os graves repousam na parte superior, assim também na ordem moral, é bom o prazer que leva o apetite superior ou o inferior a repousar no que convém à razão, e é mau o que o leva a repousar no que discorda da razão e da lei de Deus. ― A outra razão funda-se nas acções, das quais umas são más e outras, boas. Ora, com as acções têm mais afinidade os prazeres que as acompanham, que os desejos que as precedem no tempo. Donde, sendo bons os desejos das boas acções e maus os das más, com maioria de razão hão-de ser bons os prazeres que acompanham as boas obras e maus os que acompanham as más.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. ― Como já dissemos 9, os prazeres fundados num acto racionável não obstruem a razão nem destroem a prudência, mas os prazeres estranhos, como os corpóreos, são os impedientes do uso da razão, segundo se disse 10. E isto ou por contrariedade do apetite, que repousa no repugnante à razão e torna o prazer moralmente mau, ou por uma certa obstrução da razão, como no concúbito conjugal onde, embora o prazer seja racional, impede contudo o uso da razão por causa da alteração corpórea concomitante. Mas daí não resulta a malícia moral, assim como o sono, impede do uso da razão, não é moralmente mau, se a ele nos entregamos conforme a razão o exige, pois, esta mesma exige que às vezes fique travado o seu uso. Dizemos contudo que a obstrução da razão, proveniente do prazer do concúbito conjugal, embora não implique malícia moral, porque não é pecado mortal nem venial, provém, entretanto, de uma certa malícia moral, a saber, do pecado do nosso primeiro pai, pois, no estado de inocência não era assim, como é patente pelo já dito na primeira parte 11.

RESPOSTA À SEGUNDA OBJECÇÃO. ― O homem sóbrio não evita todos os prazeres, mas só os imoderados e não convenientes à razão. E o facto de as crianças e os animais buscarem os prazeres não prova que estes sejam universalmente maus, porque aquelas e estes têm um apetite natural movido por Deus para o que lhes é conveniente.

RESPOSTA À TERCEIRA OBJECÇÃO. ― A arte não visa todo e qualquer bem mas, o das coisas realizadas exteriormente, como a seguir se dirá 12. E sobre as nossas operações e paixões versa mais a prudência e a virtude, do que a arte. E contudo, há certas artes ― a culinária e a pigmentaria ― que produzem o prazer, como diz Aristóteles 13.

Nota: Revisão da tradução portuguesa por ama.
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Notas:
1. IV cap. De Div. Nom., lect. XXII.
2. VII Ethic., lect. XI.
3. Cf. Orig. Hom. VI in Num.
4. X Ethic., lect. VIII.
5. II Ethic., lect. III.
6. X Ethic., lect. II.
7. II De anima, lect. IV.
8. Q. 18, a. 5.
9. Q. 33, a. 3.
10. Ibid.
11. Q. 98, a. 2.
12. Q. 57, a. 3.
13. VII Ethic., lect. XII.

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